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Mortalidade infantil de indios urbanos e maior

FSP, Brasil, p.A10
14 de Dez de 2005

Estudo do IBGE revela diferenças entre indicadores sociais de indígenas e do restante da população
Mortalidade infantil de índios "urbanos" é maior
Antônio Gois
DA SUCURSAL DO RIO
A população indígena brasileira ficou mais visível em 2000, mas suas condições de vida continuam muito piores quando comparadas com o restante do país. É o que mostra estudo do IBGE divulgado ontem sobre os 734 mil brasileiros que, há cinco anos, se identificaram como indígenas.
Um dos indicadores que mais marca o abismo entre essa população e o resto do país é a mortalidade infantil. Entre indígenas, chega a 51,4 crianças mortas por mil nascidas vivas. A média brasileira é de 30,1 e, entre brancos, é de menos da metade: 22,9.
Considerando apenas esses 734 mil brasileiros, a mortalidade infantil apresentaria padrões semelhantes ao de Botsuana, país africano que ocupa a 127ª posição no ranking de 192 países da ONU, com taxa de 51 por mil.
Outro indicador que ressalta a desigualdade é a taxa de analfabetos entre quem tem mais de 15 anos. A proporção de analfabetos entre indígenas era de 26,1% em 2000, quase o dobro da do total da população em 2000, de 13,6%.
A dificuldade de analisar dados de uma população relativamente pequena para um país de 169 milhões de habitantes em 2000, mas com uma diversidade cultural enorme, levou o instituto a estudar também separadamente a população que se declarou indígena e que vivia em municípios com áreas indígenas identificadas pela Funai (Fundação Nacional do Índio) daqueles que se identificaram indígenas, mas não viviam mais em comunidades. Em 2000, eles eram 305 mil, ou 41,5% do total de 734 mil indígenas. O restante estava em áreas urbanas (52,2%) ou rurais onde não havia terras indígenas (6,3%).
Com a separação, o instituto constatou que as condições de vida entre esses indígenas em suas terras ou próximas a elas são distintas. A taxa de analfabetismo nesse grupo, por exemplo, chega a 48,4%, ante 13,8% na área urbana nesse grupo populacional.
Condições ambientais
Um dado chamou a atenção dos técnicos do IBGE. Apesar de continuar num padrão alto se comparado ao restante da população, em ao menos um indicador, o de mortalidade infantil, o padrão se inverte, e a taxa é melhor em áreas indígenas (45,9 por mil) do que na área urbana nesse grupo (52,2).
Para Nilza Pereira, gerente de população do IBGE, uma explicação para esse resultado é o fato de os indígenas que vivem em áreas preservadas ou próximas delas terem melhores condições ambientais do que os que migraram à área urbana: "Essa população pode ter mais acesso à água potável e a meios de subsistência do que os indígenas urbanos, que precisam superar adversidades socioambientais e a exclusão social a que estão submetidos nas cidades".
Na avaliação da advogada Lúcia Fernanda Kaingáng, diretora-executiva do Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual e membro do Núcleo de Advogados Indígenas do Brasil, a alta mortalidade indígena é resultado também de uma política que ela considera equivocada por parte da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) de ignorar a população indígena nos meios urbanos.
"Esses povos deveriam ter acesso diferenciado à saúde onde quer que se encontrem. Um índio que mora numa favela continua índio e não é menos importante do que um que continua sem sua comunidade", afirmou Kaingáng.
Demanda por escola
A execução de políticas diferenciadas para essa população é um pleito desses povos também na área educacional. Para a antropóloga Maria Elizabeth Brea, assessora da Funai, há uma demanda grande por escolarização.
"A preocupação da Funai é, em parceria com o Ministério da Educação, garantir que as escolas indígenas tenham primeiro currículo que valorize cultura e língua original para, só então, ensinar os códigos não-indígenas que vão ajudar na sua integração com o restante da sociedade", disse.
Fernanda Kaingáng diz que isso nem sempre acontece na prática e que também é necessário ensinar o currículo tradicional a essas crianças. "A cultura é dinâmica. O índio não tem que necessariamente viver apenas com arco, flecha e pena, como era em 1500."

Aumento de 150% da população se deve à autodeclaração
Na década de 70, prognósticos mais sombrios alertavam para o risco de extinção dos povos indígenas no Brasil. Após 30 anos, o Censo 2000 do IBGE afastou esse temor, ao constatar que de 1991 a 2000 a população indígena cresceu mais do que todos os outros grupos étnicos. Eles eram 294 mil em 1991 e passaram a ser 734 mil em 2000, uma variação de 149,6%, enquanto o restante da população cresceu 8,2%.
Uma análise mais apurada nos dados mostra, no entanto, que não houve um "boom populacional" causado por altíssimas taxas de fecundidade ou migração de povos de países vizinhos. O crescimento foi causado por gente que já vivia em áreas urbanas em 1991 mas que, no censo daquele ano, não se declarou como indígena, passando a fazer isso apenas nove anos mais tarde.
Em 1991, dos 294 mil índios, 71 mil (24,1%) viviam na área urbana. Nove anos depois, esse contigente urbano deu um salto de 440% e passou a representar 52,2% do total, ou 383 mil pessoas.
"Não se trata de aumento demográfico. O que sobressai na análise desse crescimento é o componente de autodeclaração", afirma Luiz Antônio Oliveira, coordenador de População e Indicadores Sociais do IBGE.
Uma maneira de ver isso é constatar que, em 2000, 67,2% dos índios que moravam em Estados diferentes do de nascimento já haviam feito a migração há mais de dez anos. Ou seja, eles já existiam em 1991, mas só em 2000 se declararam índios.
Outro jeito é verificar a taxa de fecundidade. Ela ficou em 3,86 filhos por mulher na população total e em 6,16 entre os que viviam em cidades com terras demarcadas. Apesar de serem taxas maiores que a média nacional, de 2,38 em 2000, não justificariam crescimento tão alto.
Foi o crescimento da população autodeclarada indígena nos meios urbanos que levou, por exemplo, a cidade de São Paulo, com 18.692, a apresentar o terceiro maior contigente populacional desse grupo, atrás apenas de São Gabriel da Cachoeira (AM), com 22.853, e Salvador (BA), com 18.712.
A gerente de população do IBGE, Nilza Pereira, explica que, como o critério do instituto para definir cor ou raça é a autodeclaração do entrevistado, há nesse percentual de indígenas tanto aqueles que mantinham algum vínculo com sua comunidade de origem quanto os que se identificaram como tal por descenderem de índios, mesmo não tendo mais vínculo nenhum com a comunidade de seus pais ou avós.
Para Lúcia Fernanda Kaingáng, diretora-executiva do Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual, vários fatores podem ter contribuído para o aumento na autodeclaração: "Um desses fatores foi a conquista de direitos que, antes de 1990, não eram assegurados. Também houve, a partir da década de 80, um movimento de valorização da diversidade cultural".
Porém não basta se identificar como índio para ter acesso aos serviços específicos para essa população, diz Kaingáng. "A maioria dos serviços exige que a pessoa diga a que comunidade pertence. Muitos tentam se inscrever em política de cotas em universidades, mas não sabem dizer a que comunidade pertencem."

Entre guaranis-caiuás, mortalidade atinge 10%
Hudson Corrêa
DA AGÊNCIA FOLHA, EM CAMPO GRANDE
Afetados pela desnutrição, que matou ao menos 15 crianças nas aldeias neste ano, os índios guaranis-caiuás ainda sofrem com um índice de mortalidade infantil que chega a cem por mil nascidos vivos na fronteira com o Paraguai, em Mato Grosso do Sul. O índice foi informado à Folha ontem pelo coordenador técnico da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) na região, Antônio Fernandes Costa.
Segundo o IBGE, que divulgou informações sócio-demográficas inéditas sobre indígenas, o Censo 2000 mostrou que a mortalidade infantil em aldeias é de 51,4 por mil, bem maior do que a dos brasileiros em geral (30,1 por mil).
Em Amambaí (393 km de Campo Grande), onde 8.000 guaranis-caiuás habitam 2.429 hectares próximos à cidade, o índice atual é de cem por mil. Em Japorã e Eldorado, que abrigam mais de 5.000 guaranis-caiuás, a mortalidade é de 80 por mil.
Em Dourados (segunda maior cidade do Estado), há 11,5 mil índios em apenas 3.500 hectares. A mortalidade, segundo Costa, caiu de 71 por mil (em 2004) para 32 por mil. Houve, porém, diminuição de nascimentos. "Até devido a desnutrição, eles [os pais] começaram a pensar mais [antes de ter um filho]", diz Costa.
Nas aldeias de Japorã, Amambaí e Dourados vivem 4.500 crianças indígenas menores de cinco anos. No início do ano, 12% estavam desnutridas. Neste ano, até março, 15 morreram de fome.
Em Mato Grosso, os xavantes, que também enfrentam a desnutrição, estão cercados por plantações de soja. Em março, seis crianças morreram desnutridas.
Ontem a reportagem não conseguiu falar com técnicos e a coordenação da Funasa, que estavam na aldeia. Edson Beiriz, coordenador da Funai (Fundação Nacional do Índio), diz que os 15 mil xavantes possuem terra (ao contrário dos guaranis-caiuás), mas não têm agricultura de subsistência.
A monocultura da soja, segundo Beiriz, poluiu rios e levou ao desmatamento, impedindo os índios de caçar e pescar. O resultado, afirma o coordenador da Funai, é fome.

Migração de não-indígenas preocupa
DA SUCURSAL DO RIO
Não é só a exclusão social de índios que migraram para centros urbanos que preocupa os indianistas e representantes de povos indígenas. Os dados do Censo 2000 do IBGE mostram que também está acontecendo no Brasil a situação inversa, ou seja, população não-indígena que migra para municípios onde há índios em terras demarcadas.
Ao contrapor o mapa dos municípios com terras indígenas ao que mostra as principais correntes de fluxo migratório da população brasileira, os técnicos do IBGE perceberam que a pressão migratória de não-indígenas nessas áreas é maior do que no resto do país.
Segundo a antropóloga Maria Elizabeth Brea, assessora da Funai, isso acontece porque a maioria dessas terras está em municípios do Norte e Centro-Oeste do país, área da chamada "fronteira agrícola", que caracteriza municípios com forte expansão da economia agropecuária e que vem atraindo mão-de-obra de trabalhadores de outros Estados, principalmente do Nordeste.
Além de se preocupar com a preservação dessas áreas, Brea diz que a política da Funai é não impor métodos de controle da natalidade na população que vive em áreas demarcadas. Segundo o censo, o número médio de filhos por mulher da população indígena em municípios com terras demarcadas é de 6,16 por mulher, alto se comparado com o padrão de 2,38 filhos por mulher brasileira.

FSP, 14/12/2005, p. A10

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