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Mito reinventado

O Globo, Prosa & Verso, p. 6
Autor: MUSSA, Alberto
31 de Jan de 2009

Mito reinventado
Alberto Mussa combina pesquisa e criação para 'reconstruir' narrativa tupinambá

As relações incestuosas entre literatura e mito têm uma longa história na cultura ocidental. Em Homero e nos poetas trágicos gregos, o mito é A Narrativa por excelência, A História da qual não se duvida porque, mais do que explicar a condição humana, ela a funda e a garante. Já na filosofia o mythos se torna história fantástica, não verdade, em contraposição ao logos, a fala certa, a verdade dos sábios.
Esta dimensão do fantástico, do bizarro, do inverídico acompanha até hoje a ideia de mito no senso comum, apesar dos esforços da antropologia para mostrar seu caráter de metatexto, narrativa de fundação da própria existência social. A frase "Mito ou verdade?", que nos bombardeia cotidianamente, já parece estabelecer de antemão que a verdade, a ciência e a razão estão contra o mito. Por isso, é sempre muito bem vinda uma obra como "Meu destino é ser onça", o novo livro de Alberto Mussa, cujo interesse pela alteridade é bem conhecido, que leve a sério o mito e devolva, com uma escrita de qualidade, toda sua força narrativa de fundação cósmica e dimensão de significação da realidade.
Fascinante viagem ao universo mítico
O livro está dividido em três partes: a primeira - que pode ser lida prescindindo das outras - é constituída pela cosmogonia tupi "restaurada" pelo autor num texto que, como ele afirma, se não existiu poderia ter existido. Trata-se de uma fascinante viagem pelo universo mítico: o mundo primordial, o incêndio e o dilúvio, a construção das humanidades e das regras sociais e culturais pelos heróis míticos, a origem do complexo da vingança canibal, a perspectiva do cataclismo final. A segunda parte é a transcrição do notável conjunto de textos de missionários e viajantes da época colonial, entre os quais se destacam as obras do franciscano André Thevet, que constituem as fontes históricas de sua obra. A terceira parte é uma longa justificativa teórica chamada "Cálculo textual", na qual o autor apresenta , apenas para especialistas, as razões estilísticas, mas também antropológicas e históricas que o levaram, em sua reconstituição do mito, a preferir algumas sequências a outras, a introduzir sequências que não se encontram nas fontes, a atribuir determinadas ações a certos personagens, e assim por diante.

Entre os méritos de Mussa está o de ter tirado o mito tupi do limbo em que a opinião pública nacional o colocou, o das sobrevivências de um passado edênico ou das extravagâncias irracionais de povos prisioneiros de uma eterna infância; como também o de ter mostrado, com seu texto mítico, que cada versão rearticula fragmentos de universos de sentido num processo significativo novo, compreensível em tempos e por humanidades diferentes.

Por isso, talvez, o ponto mais problemático da operação literária do autor seja a terceira parte do livro, na opinião desta resenhista desnecessária e frequentemente perigosa ou desviante porque baseada num pressuposto errado: a ideia de que haja uma versão do mito mais "legítima", mais "coerente", mais "próxima do original". Assim, as fontes antigas são retalhadas em proposições definidas "verdadeiras" ou "falsas" na base da presença ou da ausência de uma "lógica interna" que certamente não é a lógica do mito.

Distinguir as características de um das de outro personagem, organizar as sequências numa ordem cronológica é totalmente legítimo do ponto de vista narrativo, de acordo com a sensibilidade do escritor e de seus leitores, mas do ponto de vista do próprio mito é bastante discutível já que, desde Lévi-Strauss, sabemos que o mito não existe como narrativa única e unívoca, mas está relacionado com outros mitos e grupos de mitos que lhes são próximos. Seu sentido está no conjunto de suas variantes no qual não há hierarquia de legitimidade nem sucessão cronológica de fatos. O pensamento mítico não responde a este tipo de lógica, nem ao princípio de não-contradição pelo qual determinadas funções "contraditórias" não podem ser desempenhadas pelo mesmo personagem. Além disso, como nos mostra Eduardo Viveiros de Castro, no horizonte perspectivo da ontologia tupi, o mesmo e o outro trocam de atribuições e de corpos e a "verdade" está exatamente na possibilidade do mesmo ser, também, o outro.
O equívoco de fundo está em acreditar na existência de um "original" mítico, do qual missionários e viajantes, autores dos textos através dos quais os fragmentos do mito chegaram até nós, teriam sido mais ou menos fiéis intérpretes ou tradutores. Todas as versões são variantes do mito, todas igualmente válidas porque remetem não a uma dimensão atemporal de autenticidade primordial, mas às condições de sua narração. Os mitos narrados aos - e relatados pelos - antigos viajantes são outras tantas traduções, ou seja, versões da história do mundo tupi, que cada narrador acreditava ser a história "certa". A operação de Mussa é mais uma tradução, para o gosto e a sensibilidade de seus leitores, da maneira tupi de significar o mundo. Uma tradução de traduções, determinada por escolhas estilísticas e literárias, que ele frequentemente - e justamente - reivindica no texto. Nisso, e não numa suposta maior proximidade a um original que nunca poderemos conhecer porque nunca existiu, reside sua legitimidade e sua beleza.

Cristina Pompa é professora da USP e pesquisadora do Cebrap, autora de "Religião como tradução" (Edusc)

'O sol como cocar feito de penas de fogo'

Miguel Conde

Um dos maiores especialistas brasileiros em narrativas árabes e africanas, Alberto Mussa diz ter encontrado na mitologia tupi uma narrativa tão valiosa quanto as principais de nossa civilização. Nesta entrevista, diz que o preconceito e a falta de preparo nos impedem de conhecer melhor a cultura indígena.

O Globo: Na introdução ao seu livro o senhor diz que considera essa epopeia tão complexa e importante quanto o "Gênesis" ou a "Teogonia".

Poderia falar um pouco da qualidade literária dessa narrativa?

Alberto Mussa: Todas as mitologias e culturas são muito ricas, o que falta é nos preparamos para compreendê-las. Dentro de uma certa intelectualidade especializada, o valor da mitologia indígena já é reconhecido. Mas para o leitor médio é mais difícil. Por incrível que pareça, a cultura grega é muito mais parecida com a nossa do que a indígena. É uma forma estatal, urbana, com instituições, enquanto o índio vive num sistema muito diferente. Sua sensibilidade, metafórica e poética, está baseada numa experiência que não temos. Certos trechos podem conter grandes ironias, ou sacações interessantes, que não percebemos. Assim como eles têm dificuldade para perceber certas referências em nossas histórias. Ainda assim, você encontra nessa história elementos de muita beleza. Por exemplo, o sol como cocar feito de penas de fogo, ou o início do mundo como um espaço cheio de morcegos, mas tão apertado que é impossível bater as asas. É a mesma contradição das teorias da física sobre a origem do universo, de um ponto com massa total, que de repente explode.

A que você atribui a escassez de narrativas indígenas fixadas em texto em português?

Mussa: Existem dois problemas. O primeiro é a falta de preparo. A gente não tem preparo histórico, etnográfico, linguístico. Temos uma formação totalmente apartada da História do Brasil. A gente não tem como se interessar por uma coisa que não conhece. E que, quando é mostrada, é estereotipadamente, com a imagem ridícula do índio que é preguiçoso ou fala errado. O segundo problema, que eu já adiantei, é o preconceito.
No Brasil temos ainda, em relação aos índios, um preconceito muito grande. A cultura africana já conseguiu se impor, a duras penas, embora persistam o racismo e a discriminação. Mas o resgate da indianidade brasileira ainda não aconteceu.

O senhor faz no livro uma interpretação do canibalismo tupinambá. Poderia falar sobre ela?

Mussa: Segundo os tupinambás, quando você matava o prisioneiro ele ia para o paraíso com mais facilidade do que se sofresse uma morte natural. Já quem matava o prisioneiro e as pessoas que comiam a carne dele iam se habilitando também para chegar ao paraíso.
Quanto mais mortes provocasse e pessoas comesse, mais você se habilitava. Esse sistema permite que você transforme a violência inerente à natureza humana numa coisa que simbolicamente, pelo menos, vai te trazer o bem. Sem o inimigo, você não chega à vida eterna. Então, o inimigo te faz um bem.

O Globo, 31/01/2009, Prosa & Verso, p. 6

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