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As missões salesianas no rio Negro

Unesp Ciência - http://www2.unesp.br/revista/
Autor: Luciana Christante
08 de Jun de 2010

Na primeira vez em que estive em Manaus, em dezembro de 2008, conheci o Museu do Índio. É um lugar pouco visitado por turistas e com instalações modestas, mantido desde a década de 1950 pela Congregação Salesiana. Seu acervo, porém, é considerável: cerca de três mil peças indígenas de várias etnias da região do alto e médio rio Negro, onde os missionários salesianos tiveram um papel importante - como educadores, sanitaristas e catequistas - na primeira metade do século 20. Ali estão muitos utensílios domésticos e de caça, adornos e até uma réplica reduzida de uma maloca. Há também antigos instrumentos médicos usados pela missão, além de muitas fotos dos próprios missionários, que figuram como heróis de uma longa e obstinada batalha contra pobreza, doenças, analfabetismo e paganismo.

Menos de dois anos depois, em abril passado, conheci São Gabriel da Cachoeira (AM), situada no alto e médio rio Negro. Como repórter, pude visitar algumas comunidades indígenas e entrevistar vários descendentes daqueles a quem um dia pertenceram os objetos hoje em exposição no Museu do Índio de Manaus. Pude conhecer o outro lado da história e entender em quais circunstâncias aquelas peças foram parar ali. É uma versão mais triste, mas bem mais verdadeira da influência das missões salesianas na região, para o bem e para o mal.

Séculos de massacre
Quando os primeiros missionários salesianos chegaram a São Gabriel da Cachoeira, em 1914, encontraram uma população muito reduzida de índios em grave miséria. Eram os sobreviventes de diversas etnias massacradas durante mais de dois séculos pelo comércio escravagista que supria a demanda de mão-de-obra de Belém e Manaus e, de quebra, introduziu uma série de epidemias. O estado dos indígenas era tão deplorável que não houve resistência, diferentemente do que ocorrera em encontros anteriores com os brancos.

A bacia do rio Negro, que inclui também a Amazônia colombiana e a venezuelana, é habitada por indígenas há pelo menos 3 mil anos, como indicam vestígios arqueológicos. Os registros mais antigos da presença de exploradores europeus no lugar são do século 16. As expedições portuguesas para captura de escravos começaram na primeira metade do século 17. O trabalho era quase sempre feito com a ajuda de missionários jesuítas, para quem era melhor ver um índio escravizado, mas temente a Deus, do que livre e pagão. O período foi marcado por diversas revoltas indígenas, pela destruição de igrejas e até pelo assassinato de alguns missionários.

Em meados do século 18, o Marquês de Pombal implementou drásticas mudanças no sistema educacional de Portugal e de suas colônias, o que levou ao banimento das missões jesuíticas em terras da Coroa. Informado do grande declínio das populações indígenas do rio Negro, o marquês queria inicialmente que os índios tivessem os mesmos direitos dos europeus, mas logo se deu conta da importância deste tipo de mão-de-obra numa região que não era servida pelos navios negreiros.

Assim, a Coroa Portuguesa estabeleceu que os índios de boa saúde trabalhariam na construção das vilas e os demais, na agricultura e no extrativismo. Mas o sistema não foi respeitado e a exploração seguiu com a mesma truculência de antes, desta vez com o apoio de missionários carmelitas, franciscanos ou capuchinhos. Em viagem pela região entre 1850 e 1852, o naturalista inglês Alfred Russel Wallace escreveu:

"(...) à noite chegou apenas uma parte dos habitantes. Sempre que aportam negociantes, ocorre isso: temerosos de serem obrigados a acompanhá-los, alguns índios preferem manter-se ocultos. Muitos dos comerciantes deste rio são da pior espécie. Ameaçando matá-los, obrigam os índios a seguir viagem com eles. Costumam cumprir suas promessas, uma vez que se consideram fora do alcance daquela diminuta fração de lei que mesmo no rio Negro ainda luta para subsistir."

Enviados pela Santa Sé
Ciente do descontrole da situação na região, em 1914 a Santa Sé incumbiu a congregação salesiana Dom Bosco de estancar a escravidão, os abusos contra os indígenas e, claro, convertê-los de uma vez por todas à fé católica. Nessa época, com o fim do ciclo da borracha, boa parte deles ainda era vítima do sistema de patronagem, obrigada a pagar dívidas intermináveis contraídas no trabalho forçado nos seringais.

Depois de tão longo histórico de violência, a configuração demográfica havia se alterado radicalmente. Além de as populações terem minguado, elas também se deslocaram de suas povoações originais, sempre rio acima ou mata adentro, na tentativa de fugir dos comerciantes. Desnutridos, enfermos e exauridos, os indígenas aceitaram de bom grado a ajuda pacífica dos religiosos.

Os salesianos se mostraram bem preparados, pragmáticos e perseverantes na condução de sua "missão apostólica". Construíram imponentes missões primeiramente em São Gabriel da Cachoeira e depois em mais seis povoados estratégicos nos principais afluentes do rio Negro, como o Tiquié, o Uaupés e o Papuri, onde foram instaladas grandes escolas em regime de internato.

Eles tinham a convicção de que só poderiam alcançar seus objetivos por meio da educação das crianças. Uma educação cristã, marcada por rigor e disciplina, como sempre fora o estilo da congregação. Para isso os missionários consideravam fundamental que as crianças se afastassem do convívio dos adultos e velhos e permanecessem a maior parte do ano confinadas em internatos.

Em seu ímpeto apostólico, os salesianos se revelaram intolerantes à cultura indígena. Os idiomas nativos eram expressamente proibidos nos internatos e qualquer flagrante era punido severamente. A separação de meninos e meninas era total. Com a introdução dos rituais católicos, penetraram também as noções de pecado e indecência. As malocas foram gradativamente destruídas sob o pretexto de promiscuidade e falta de higiene. Os pajés foram ridicularizados e difamados. Enfeites e instrumentos cerimoniais - como os que estão expostos no Museu do Índio em Manaus - foram paulatinamente substituídos por crucifixos e imagens de santos.

A competência dos salesianos foi apreciada pelo governo brasileiro, que desde 1910 mantinha o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado pelo Marechal Rondon, mas que jamais conseguira atingir os rincões da Amazônia. Com boa infraestrutura e serviços de saúde e educação - únicos na região - o trabalho dos missionários foi financiado pelo governo federal até a década de 1950. "Vocês estão construindo Brasílias nestas selvas, e meu governo nem sabia", disse o então presidente Juscelino Kubitschek em visita à missão de Taracuá, no rio Uaupés, em 1958.

Para não esquecer
O professor Evaldo Neves Pedroso, 46, da etnia Tukano, foi um dos alunos dos internatos salesianos, do qual não tem boas lembranças, mas nem por isso está disposto a apagar o passado. Encontrei Evaldo na comunidade Cunuri, no baixo rio Uaupés, no dia em que se comemorava os seis anos da escola indígena que ele comanda ali. Chegamos no momento da premiação dos jogos do dia anterior, cujas modalidades incluíam esportes conhecidos como futebol, natação, corrida. Uma delas, porém, me chamou a atenção: "Dramatização da desvalorização da cultura indígena - missionários salesianos", conforme estava escrito no mural. Pena não ter chegado um dia antes para ver isso.

Não há mais internatos salesianos em São Gabriel da Cachoeira. Eles foram gradativamente desativados a partir dos anos 1960, quando o SPI foi substituído pela Funai e o Estado assumiu o controle da educação na região. Só há menos de dez anos os próprios indígenas começaram a tomar as rédeas do sistema educacional, pressionando o governo local para a instalação de escolas nas comunidades, voltadas para o resgate cultural. Tal como em Cunuri, muitas estão em atividade. E nas mãos de professores indígenas, que já somam mais de 600 no município.

Por tudo o que pude ver e ouvir, a impressão é que eles não querem ver nem pintado de ouro um missionário salesiano dentro de suas escolas. Contudo, não resta dúvida de que a convivência com os padres lhes rendeu um ensinamento valioso, que eles se esforçam para colocar em prática, mas à sua maneira: o de que não se pode melhorar as condições de vida de um povo sem investir seriamente em educação.

Já na religião, a situação é diferente. São Gabriel da Cachoeira é um município predominantemente católico (com exceção da região do rio Içana, áreas dos índios Baniwa, influenciados por missões evangélicas). Em cada comunidade há uma igreja e um catequista indígena que conduz a missa. Casamentos e batismos, só quando vem o padre. Acompanhei uma missa e uma procissão na comunidade São Jorge, no rio Curicuriari, no dia em que celebravam seu santo padroeiro. Neste ponto, os salesianos de fato triunfaram. Isso dificilmente vai mudar, simplesmente porque não sobrou nada para ser recolocado no lugar.

Para saber mais:

Povos indígenas do rio Negro - Mapa-livro. Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e Instituto Socioambiental. ISA, 2006.

Cabeça do cachorro. Araquém Alcântara e Drauzio Varella. Terra Brasil, 2008.

http://www2.unesp.br/revista/?p=1118

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