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Missao possivel

Galileu
31 de Out de 2004

Missão possível
Tecnologias e iniciativas que já existem em pequena escala podem deter o aquecimento global se forem ampliadas
Rafael Garcia
Na Europa, verões mais quentes e invernos mais frios. Nos EUA e Caribe, tufões. Na Ásia, enchentes. O ano de 2004 tem sido prolífico em exemplos de como o efeito estufa pode trazer mudanças climáticas imprevisíveis, por meio do aquecimento global.
Ainda não é possível mapear a exata interação de todos esses fenômenos com o fato de o planeta ter aquecido quase 1 oC em média durante a era industrial. Resta pouca dúvida, porém, de que o clima mais quente tem a ver com o fato de a humanidade despejar cada vez mais dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, com a queima de combustíveis fósseis.
Carros e usinas movidos a petróleo e carvão podem ser sujos, mas nenhuma outra tecnologia hoje é tão barata e prática quanto essas para gerar e consumir energia. Os combustíveis fósseis respondem por cerca de 80% da matriz energética mundial, e a economia da maioria dos países, ricos e pobres, depende deles.
Dito assim, parece que estamos num beco sem saída ambiental, mas cientistas resolveram colocar as contas na ponta do lápis e mostram que as soluções já estão à mão. "Já existem instalações em escala industrial que poderiam ser multiplicadas para resolver o problema", afirma Stephen Pacala, da Universidade de Princeton (EUA). Ele é autor de um recente levantamento que analisa as alternativas disponíveis para reduzir a concentração de CO2 na atmosfera (veja quadro abaixo) e revela um potencial otimista.
Sete tarefas e quinze voluntários

A queima de combustíveis fósseis despeja 7 bilhões de toneladas de carbono por ano na atmosfera, agravando o efeito estufa. Uma projeção de Stephen Pacala e Robert Socolow mostra que a atual política energética mundial faria esse número dobrar no próximo meio século (linha vermelha no gráfico).
Nenhuma iniciativa isolada é capaz de deter essa tendência catastrófica. Se dividimos o trabalho em sete cotas (linhas amarelas), porém, podemos atingir cada uma delas com tecnologias e iniciativas que já existem. Pacala indica 15 alternativas para cumpri-las, que GALILEU descreve em pequenos quadros nessa reportagem. Isso frearia o aquecimento global por 50 anos.

Carros menos beberrões
Uma cota de redução de CO2 viria com a troca de 2 milhões de carros que rodam 12,5 km por litro de combustível por outros que rodam 25 km por litro, até 2050. Já existem modelos novos capazes de atingir essa marca.
Transporte inteligente
Dois milhões de veículos que rodam 16 mil quilômetros por ano poderiam baixar esse número pela metade. Para atingir a meta, seria necessário reestruturar a infra-estrutura de transporte, ter cidades mais bem planejadas e sistemas de produção mais racionais.
Prédios econômicos
Edifícios mais inteligentes podem cortar o consumo de energia em até um quarto, permitindo a desativação de termelétricas. O potencial para atingir uma cota está na troca de sistemas de iluminação, aquecimento e refrigeração que desperdiçam muita eletricidade.

Principal obstáculo à energia limpa é político
Rafael Garcia
Os interesses de mercado são uma barreira para a troca da energia suja pela limpa. Os quilowatts gerados por moinhos de vento e painéis de captação de energia solar, por exemplo, ainda são muito caros, se comparados ao preço da geração de energia por carvão. Isso poderia representar um obstáculo econômico, mas alguns pesquisadores acreditam que a diferença de preço é fruto de um problema fundamentalmente político: os combustíveis fósseis recebem ajuda, e a energia renovável não.
Vento
Multiplicar por 50 a atual produção de energia eólica para substituir carvão atingiria uma cota. Seria necessário cobrir 300 mil km2 de hectares com moinhos de vento para cumprir essa meta. Essa área, maior que a soma dos Estados de São Paulo e Rio, poderia ser mesclada com terras cultivadas.
Energia solar
Multiplicar por 700 a atual produção de energia elétrica com painéis solares para substituir carvão. A área necessária para posicionar os painéis seria de 20 mil km2, equivalente ao Estado de Sergipe.
Fissão nuclear
Uma opção controversa. Se a produção energética em usinas nucleares no mundo fosse triplicada para substituir usinas a carvão, uma cota de redução de CO2 seria cumprida. Há no entanto as preocupações com segurança, lixo nuclear e, agora, o receio de ataques terroristas a usinas.

Distorção subsidiada
"Durante anos, as tecnologias de combustíveis fósseis têm sido apoiadas pelo colchão de plumas financeiro dos gigantescos subsídios governamentais", diz Andrew Simms, diretor do centro de estudos britânico New Economics Foundation. A entidade publicou neste ano o relatório The price of power (O preço do poder), que faz uma estimativa da distorção. Um número exemplar é o dos investimentos externos em energia nos países pobres. "Apenas entre 1% e 3% dos US$ 40 bilhões gastos anualmente em países em desenvolvimento vão na direção de energias renováveis", indica o documento.
Levando isso em conta, será que painéis de energia solar são tão caros assim? Imaginemos se tudo o que o Banco Mundial gasta em apenas um ano com subsídios para a indústria do petróleo fosse redirecionado a projetos de energia solar de pequena escala na África Subsaariana. De acordo com Simms, esse dinheiro seria capaz de levar eletricidade a 10 milhões de pessoas que hoje habitam locais onde a luz das termelétricas não conseguiu chegar. Isso acontece porque os cálculos de custo-benefício às vezes desprezam áreas remotas e o custo de estender as redes de distribuição.

Será que ele mudou de idéia?
A recusa dos EUA em admitir sua cota no efeito estufa parece estar mais difícil de sustentar. O país é responsável por um quarto do CO2 jogado na atmosfera, mas George W. Bush pulou fora do Protocolo de Kyoto para redução nas emissões, alegando que ainda não se sabe bem a causa do aquecimento global. Contudo, essa posição parece ter inimigos até dentro do governo. Num documento redigido em agosto, a Casa Branca admitia o papel humano no aquecimento global. Questionado sobre a mudança de idéia, porém, Bush negou. Mas alguns cientistas acham que o incidente é um sinal. "Talvez esse relatório reflita uma mudança na ênfase dada ao problema", diz Pacala.

A cota brasileira
Rafael Garcia
Por ser um país em desenvolvimento, o Brasil não é visto como um dos vilões do efeito estufa. Além de ter boa parte de suas usinas elétricas movidas pela força dos rios, o país tem um volume histórico pequeno de emissão de CO2, pois sua indústria é mais recente que a de países desenvolvidos.
Por conta disso, o protocolo de Kyoto não impõe muitas restrições aos brasileiros, mas se engana quem pensa que o Brasil é peça sem importância no combate ao aquecimento global.
"Hoje, o Brasil é responsável por mais de 3% do total das emissões globais de CO2 e se inclui na lista dos 10 maiores emissores", explica o pesquisador Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental. Isso acontece porque aquilo que deixamos de fazer queimando carvão, fazemos desmatando. Cada árvore que derrubamos com queimadas ou motosserras se decompõe exalando gases estufa. "Cerca de dois terços das emissões brasileiras de CO2 vêm do desmatamento", diz Santilli.
Mesmo que o Protocolo de Kyoto supere o impasse criado pela recusa norte-americana, os desmatamentos ainda estão relegados a segundo plano nas discussões. Alguns ambientalistas defendem que projetos de preservação de matas possam ser incluídos no chamado MDL (mecanismo de desenvolvimento limpo). Com esse dispositivo, países que extrapolassem suas cotas de CO2 poderiam "compensar" isso ajudando a cuidar de árvores nos países tropicais. A idéia, porém, ainda parece distante. A redução do desmatamento traria também o benefício da preservação de biodiversidade, mas não é uma equação fácil de resolver. Muitos ambientalistas defendem que esforços brasileiros para preservação da Amazônia recebam algum tipo de compensação por parte dos países desenvolvidos, que construíram suas economias queimando petróleo e carvão.
Agricultura de observação
Práticas de agricultura menos agressivas (como semeadura sem aragem e controle de erosão) podem ajudar a conservar carbono no solo. Se toda a área plantada do mundo adotasse esses métodos, uma cota inteira poderia ser cumprida.
Florestas
Derrubar árvores contribui para a emissão de CO2. Uma cota seria atingida se o desmatamento em florestas tropicais fosse reduzido a zero e plantações de novas árvores fossem levadas a 3 milhões de km2. Árvores jovens absorvem um bocado de carbono para poder crescer.
Bicombustível
Combustíveis feitos a partir de produtos vegetais são mais limpos, e as plantações ajudam a absorver CO2. Se carros de 100 países consumissem tanto álcool de cana quanto o Brasil, por exemplo, uma cota seria cumprida. O biodiesel também pode contribuir para a redução.

Combustíveis mais limpos
A parcela de emissão de CO2 do Brasil seria muito mais alta sem a grande frota de carros a álcool que o país abriga. Esses veículos são mais ecológicos porque o CO2 que eles emitem é compensado pelas plantações de cana que o absorvem.
O Brasil pode dar uma larga contribuição para o combate ao efeito estufa, pois é um potencial exportador de álcool e está começando a flertar com o biodiesel, produzido a partir de sementes oleaginosas como a soja. "O biodiesel contribuirá para a redução de CO2 no setor do transporte pesado, diferentemente do setor em que o álcool contribui, o dos carros de passeio", explica o professor da USP Miguel Dabdoub, do Ladetel (Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas).

Energia renovável deve se tornar opção mais barata no futuro
Rafael Garcia
A realidade de vilarejos na África, porém, não é a mesma das cidades americanas com alta demanda por energia. Nas grandes metrópoles, a eletricidade dos painéis solares ainda custa mais de dez vezes que a do carvão. E mesmo que alguns economistas vejam chances realistas de expandir o uso da energia renovável, ainda não está claro quando o lobby do petróleo perderá sua força sobre as políticas públicas mundiais.
O esgotamento dos poços de petróleo ainda não parece próximo o bastante para isso, mas é justamente um fenômeno de mercado que pode começar a minar o império dos combustíveis fósseis. "Previsões típicas indicam que dentro de cinco anos vai surgir uma lacuna entre a quantidade de petróleo extraída dos poços e a crescente demanda global", afirma Simms. À medida que isso causar um aumento no preço dos derivados de petróleo, pode ser que moinhos de vento e painéis solares se tornem uma alternativa mais atraente, sobretudo nos países pobres que hoje importam petróleo.
Nessa situação, os governos ainda teriam a opção de apelar para o carvão barato e sujo, mas é preciso levar em conta que a poluição também tem custos - financeiros e humanos. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, pelo menos 150 mil pessoas morrem a cada ano como resultado direto do aquecimento global. Não é possível estimar a ligação direta entre o aumento do efeito estufa e os prejuízos causados por enchentes, secas e tempestades, mas isso também deve entrar na conta.
Além disso, é de se esperar que uma eventual mudança na política de subsídios e investimento em pesquisa tornem a energia renovável mais barata.
Captura de CO2 em termelétricas
Ampliar infra-estrutura de captura e armazenamento subterrâneo de CO2 em usinas termelétricas de carvão (para 800 GW) ou gás (1600 GW). Conseqüências ambientais de longo prazo ainda são desconhecidas.
Captura de CO2 em combustível sintético
A produção de combustível sintético à base de carvão, usado em grande escala na África do Sul, por exemplo, emite um bocado de dióxido de carbono. Investir no seqüestro de CO2 em fábricas que produzem 30 milhões barris/dia completaria uma cota.
Carvão mais eficiente
Uma cota pode ser atingida se a eficiência das usinas a carvão fosse aumentada a ponto de produzir o dobro da energia gerada hoje por elas. Hoje as usinas têm 32% de eficiência e teriam de duplicar essa porcentagem.

Sujeira sob o tapete
Apesar do otimismo em relação ao futuro do custo da energia limpa, alguns pesquisadores temem que ele chegue tarde demais para compensar todo o petróleo que a humanidade ainda pode queimar até lá. Protelar o domínio dos combustíveis fósseis pode não ser a coisa mais desejada, mas é provável que seja preciso arranjar meios de torná-los menos sujos.Isso pode ser feito de várias maneiras. Trocar usinas a carvão por usinas a gás natural, por exemplo, ajudaria, pois o gás é mais limpo, apesar de também emitir CO2. Mas, afinal, se não conseguimos deixar de fazer a sujeira, talvez o jeito seja varrê-la para baixo do tapete. Ou para baixo de várias camadas geológicas, mais precisamente.
Países como Canadá e Noruega já têm projetos avançados que os engenheiros batizaram de instalações para seqüestro de CO2. Grosso modo, o que fazem essas instalações é usar longos tubos para bombear dióxido de carbono para dentro de reservas esgotadas de gás ou petróleo, minas de carvão ou lençóis profundos de águas salinas. No caso da Noruega, como o governo cobra taxas por emissão de CO2, a companhia petrolífera Statoil criou uma enorme infra-estrutura para seqüestrar CO2 na reserva de gás natural de Sleipner. Ambientalistas não simpatizam com a idéia, pois conseqüências de longo prazo não são 100% conhecidas.
"Na verdade, todas as opções para resolver o problema do clima têm prós e contras", diz Stephen Pacala. "Mas se alguém diz que é preciso esperar uma tecnologia milagrosa para começar a fazê-lo, ou não conhece o problema ou quer empurrá-lo com a barriga."

À espera da hora H2
Rafael Garcia
Quando o assunto é transporte, muitos países ricos apostam num futuro em que a gasolina dará lugar ao mais simples dos elementos: o hidrogênio. Em sua forma molecular (H2), ele gera energia totalmente limpa. Um carro equipado com a chamada célula a combustível - motor elétrico movido a H2 - cospe apenas gotículas de água pelo escapamento.
Dificuldades técnicas e financeiras ainda impedem a tecnologia de vingar, mas o principal problema em debate é o alto custo de obtenção do combustível. "O H2 é um produto que se obtém a custo mais elevado do que carvão, gás natural e petróleo", diz Ennio Peres da Silva, diretor do Laboratório de Hidrogênio da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Como não há H2 abundante na Terra, é preciso usar energia para extraí-lo da água ou de outras moléculas.
O H2 para carros pode ser produzido por energias renováveis ou combustíveis fósseis, mas no segundo caso seus benefícios ecológicos podem ser anulados.
Carros a hidrogênio "verde"
Hidrogênio produzido com uso de energia limpa poderia ser usado como combustível de carros para cumprir uma cota. Se esse H2 fosse gerado por energia eólica, por exemplo, seriam necessários 600 mil km2 de moinhos para produzi-lo.

Captura de CO2 em fábrica de H2
É possível fabricar hidrogênio em usinas de gás ou carvão como subproduto do processo de seqüestro de CO2. Esse H2 pode ser usado como substituto para gasolina em carros. Seria necessário produzir 250 toneladas métricas de H2 por ano para atingir uma cota de redução.
Gás natural contra carvão
Cerca de 14 GW (gigawatts) de energia gerados hoje por carvão poderiam ser trocados por gás natural, que emite menos CO2. Isso significaria quadruplicar o consumo de gás natural.

Saiba mais
New Economics Foundation www.neweconomics.org
Ladetel - USP www.dabdoub-labs.com.br/ladetel.cfm
Unicamp - Laboratório de Hidrogênio www.ifi.unicamp.br/lh2

Galileu, Out./2004

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