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Minha içá por sua abelha jataí

OESP, Paladar, p. D4-D5
09 de Mai de 2013

Minha içá por sua abelha jataí
Deu troca-troca neste Paladar - Cozinha do Brasil. A onda foi trocar ideias, formigas e até o patenteado formato 'trio maravilha' de Neide Rigo, Mara Salles e Ana Soares, que Alex Atala adotou para dar uma aula de embutidos

José Orenstein e Olívia Fraga, especial para o Estado - O Estado de S.Paulo

Já faz tempo, o Paladar - Cozinha do Brasil vê surgir amizades de corredor e de fogão, no palco e atrás dele, nos bastidores. Cozinheiros dividem experiências, trocam receitas, falam de ingredientes, saem com sacolas cheias de sementes e plantas, e plantam sem querer a semente do que vão investigar amanhã. Foi Alex Atala quem cravou, na sexta-feira, que o caminho da gastronomia brasileira é o da roda de conhecimento: "A geração de chefs que disputam acabou. Esta é a geração dos chefs que dividem, que compartem".
Desta vez a pauta compartilhada de ideias, maneiras de pensar a cozinha e os ingredientes esparramou-se em forma de escambo descarado - e chegou até à Dinamarca. Pois, emendando o poeta, a cozinha, também, é a arte do encontro.
Algumas aproximações nascem por geração espontânea, outras surgem de encontros insuspeitos, como o elo forte criado entre Mara Salles, Neide Rigo e Ana Soares, trio-maravilha que lidera uma das aulas mais disputadas do evento, ano a ano. A maior quantidade de comida e pensamento partilhada do final de semana.
Na plateia da aula do trio - sobre o doce - público e chefs viram acontecer certa mágica. Foi o chef David Hertz, diretor da Gastromotiva, quem resumiu o que a plateia havia visto e provado: "nunca pensei em sabores doces brasileiros dessa maneira. Estou saindo daqui muito mais inspirado".
O equilíbrio da trinca estabeleceu uma espécie de jurisprudência da cooperação. O próprio Atala assumiu copiá-las: neste ano, deu aula em trio sobre embutidos com Alberto Landgraf, do Epice, e André Mifano, do Vito.
Trabalho de formiguinha. De certa forma, o 7o Paladar - Cozinha do Brasil começou a nascer em 2011: a formiga que Alex Atala levou a Copenhague mordeu os caçadores de ingredientes do Nordic Food Lab. Os sujeitos são os responsáveis pela descoberta de sabores para o restaurante Noma, de René Redzepi, o segundo melhor restaurante do mundo no ranking da revista Restaurant.
Ninguém come inseto na Escandinávia, mas o sabor de capim-limão da içá amazônica inspirou o grupo de Mark Emil Hermansen. Resultado: neste ano, o laboratório recebeu financiamento de 3,5 milhões de coroas dinamarquesas para pesquisar insetos comestíveis.
A trilha da formiguinha também trouxe Mark ao evento do Paladar deste ano, em que tratou de expor seu papo-cabeça sobre os rumos da gastronomia. Na segunda-feira, ele viajou para mais longe: de São Paulo, o food hunter emendou uma visita a Belém, guiado por Thiago Castanho. O chef do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque lhe apresentou in loco algumas das ervas, frutas e óleos de palmeiras da Amazônia que mostrou em sua aula no Paladar - Cozinha do Brasil.
Mas não foram só os caminhos da formiga que abriram uma trilha comum para chefs e gastrônomos caminharem ombro a ombro. Também os voos das abelhas nativas brasileiras descreveram rotas que começaram no ano passado e culminaram no desembarque de seus méis aromáticos espalhados por diversas aulas desta sétima edição do evento do Paladar.
A história teve início quando os méis de abelha nativa brasileira trazidos por Jerônimo Villas-Bôas para uma aula-degustação, em 2012, encantaram o chef Edinho Engel. "Eu estava na plateia e fiquei louco, alucinado com a acidez e a riqueza de sabor. Agora faço parte do grupo que incentiva o contrabando", brincou o chef, em referência à proibição de venda dos méis de abelhas nativas, enquanto cozinhava com eles da entrada à sobremesa. "Usei tudo - uruçu, tiúba, tubuna, jataí. Tenho alguns guardados na geladeira de casa." Abelhudamente, os méis brasileiros invadiram outras conversas e palestras, e são bandeira do Instituto Atá, criado por Alex Atala, Beto Ricardo, Roberto Smeraldi e um grupo de empresários, em defesa da gastronomia brasileira.
E teve ainda a partilha da flor de jambu: ingrediente amazônico que faz a língua tremer e colore de amarelo o prato. Leo Botto e Paulo Yoller usaram o produto em suas aulas - um no ceviche, o outro com hambúrguer. Já Smeraldi abasteceu-se da flor, servida coberta de chocolate no enceramento do Paladar - Cozinha do Brasil, na barraca do Empório Poitara, montada nos corredores do Hyatt por Antonia Padvaiskas.
A pequena floresta de cheiros e sabores do Norte que ela armou ali virou ponto de encontro e salvou a pele de chefs e cozinheiros. Helena Rizzo, do Maní, saiu de lá com imponentes folhas de taioba, que serviu com lagostim. Levou também flor e raiz de lírio - ingrediente já usado por José Barattino no Paladar - Cozinha do Brasil em 2010 -, que foram parar no mil-folhas. Ana Luiza Trajano, do Brasil a Gosto, levou do empório chicória e alfavaca, para usar na aula sobre a cozinha do Acre.
Após três dias de intenso intercâmbio, ficou nítida a trama urdida com os fios de saberes e ingredientes trazidos por cada chef, formando o tecido da cozinha brasileira, a cada ano mais firme e resistente.

Dona Flor. As flores brotam em pratos de restaurantes mundo afora, não é de hoje. Normalmente de sabor leve e fresco, dão cor e aroma ao que chega à mesa. Neste Paladar - Cozinha do Brasil elas germinaram em diversas aulas, mas uma em especial foi objeto de partilha dos chefs: a flor de jambu.
Roberto Smeraldi, no encerramento do evento, recobriu as florzinhas amarelas com chocolate da Amazônia. Nas mãos de Paulo Yoller, chef da lanchonete Meats, a flor foi parar na maionese com tucupi que acompanhava os hambúrgueres que ele ensinou a preparar.
Já Leo Botto, do Chez Mis, salpicou a flor na versão amazonense do ceviche que preparou com tucupi - o sumo fermentado extraído da mandioca.
Comuníssimo no Pará, o jambu é uma planta cujas folhas têm a propriedade de anestesiar levemente a língua. Com a valorização e popularização recente dos ingredientes amazônicos, ele começou a cruzar as fronteiras do Norte e foi parar nas mãos de chefs de outras regiões e mesmo de outros países. A flor do jambu é ainda mais potente do que as folhas, cumprindo não apenas aquela função decorativa das flores.

Formigueiro. Certa vez uma porção de maniuara, a saúva que ferra, foi oferecida em forma de caldo a Alex Atala no restaurante de dona Brazi, filha de índia baré e faladora de nheengatu (a língua geral dos índios), em São Gabriel da Cachoeira (AM). "Que erva tem aqui?", perguntou o chef. "Formiga", respondeu a cozinheira. "Não, tem alguma coisa parecida com capim-limão. O que vai nesse caldo?", ele insistiu. E ela, sem perder o rebolado: "Formiga!"
Pouco tempo depois, um pacote de formiga e a própria dona Brazi chegaram a São Paulo, a convite de Atala, para a edição de 2009 do Paladar - Cozinha do Brasil. No mesmo ano, dona Brazi voltou para servir um jantar no restaurante Tordesilhas, de Mara Salles. Deixou lá uma porção de formiguinhas e a feitura do chibé (caldo com farinha que ficou bastante tempo no cardápio da casa). O Cozinha do Brasil nunca mais seria o mesmo. As maniuaras, que fazem parte da dieta das tribos indígenas do Alto Rio Negro (AM), deram volta ao mundo, foram parar no laboratório do Noma, na Dinamarca, e aportaram com força no evento deste ano. Cantadas em prosa e verso pelos chefs, foram servidas sobre abacaxi na aula de encerramento de Alex Atala; no molho com tucupi preparado por Paulo Yoller e transformado em maionese de acompanhar hambúrguer, além de pousarem na maminha grelhada de Leo Botto. A convite dos chefs, as formigas perambularam pela cozinha brasileira, que parece assimilar aos poucos sua forma de trabalho coletivo, trocando receitas, ingredientes e ideias.

Bzzzzzz! Jerônimo Villas-Bôas vem fazendo trabalho de abelhinha, polinizando as mentes e cozinhas de chefs brasileiros com informações e vidrinhos de mel de abelhas nativas do País. Aos poucos, o trabalho parece surtir efeito. As espécies de abelhas nativas do Brasil passam das três centenas. Elas fazem um mel bastante líquido, menos doce, mais ácido. Elas pouco têm a ver com o bicho que vem à cabeça quando se pensa em abelha. Porque, como Jerônimo vem pregando, abelha não necessariamente dá ferroada nem tem corpinho listrado em amarelo e preto - essas características são de uma espécie originalmente da Europa, cruzada com uma africana, que proliferou no século 20 de tal forma que o padrão de mel aceito pela legislação sanitária é apenas o mel que ela produz.
Assim, o mel das abelhas nativas ainda não é reconhecido pelo Ministério da Agricultura como mel e, portanto, tem o comércio dificultado. Os chefs, no entanto, vêm reconhecendo seu valor gastronômico, suas nuances de sabor.
O mel de abelha tubuna colhido em Florianópolis apareceu na aula de Edinho Engel e Mariana Villas-Bôas. Os de mandaçaia e manduri, na barriga de paca feita na aula de Leo Botto, com harmonização de cervejas. O próprio Jerônimo dividiu uma aula-degustação com o sommelier do grupo Fasano, Manoel Beato, que aplicou seu nariz e língua para discernir aromas e gostos nos méis de jataí, tiúba e uruçu com jupará. Depois, escolheram as cachaças que casaram bem com os méis. Por ser mais líquido, o mel das abelhas nativas pode fermentar, o que, de forma controlada, dá estabilidade ao produto. Villas-Bôas, que levou um grupo para ver seu apiário num sítio em Itapecerica da Serra, quer que todos participem dessa troca: por que não ter uma caixinha de abelha em cada casa brasileira? Elas não picam. Só fazem zum-zum e mel.

OESP, 09/05/2013, Paladar, p. D4-D5

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