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Militares sequestram e torturam índios no Alto Rio Negro (AM)

Site do ISA-Socioambiental.org-São Paulo-SP
30 de Out de 2003

Dois jovens das etnias Desana e Tukano foram violentamente agredidos por militares do 6o Pelotão de Fronteira de Pari-Cachoeira, um dos cinco que o Exército mantém na Terra Indígena Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com a Colômbia. O fato ocorreu um dia depois da assinatura da portaria do Ministério da Defesa que define as diretrizes de relacionamento entre as forças armadas e comunidades indígenas.

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Jailson Costa Lana, da etnia Desana, e Alberto Caldas Sampaio, da etnia Tukano, participavam de uma partida de futebol na comunidade indígena de Pari-Cachoeira, na Terra Indígena Alto Rio Negro (AM), no dia 18/10, quando foram surpreendidos por um grupo de militares armados e aparentando embriaguez, do 6o Pelotão de Fronteira (PEF) de Pari-Cachoeira - veja mapa ao lado.

Após invadir a quadra de esportes, os soldados e um sargento coagiram Lana e Sampaio a entrar em um caminhão do Exército e os levaram a um local próximo à sede do quartel do 6o Pelotão de Fronteira de Pari-Cachoeira. Durante o trajeto, os índios levaram pancadas, chutes e ouviram ameaças.

No quartel, foram levados a uma estrada, onde levaram mais socos, chutes pontapés, palmatórias e surras com paus e varas e ouviram frases como: "vocês são índios. Não valem nada e merecem morrer mesmo. Mostrem agora que vocês são valentes." Uma hora depois, os índios conseguiram se livrar das agressões, que já ocorreram diversas vezes em comunidades locais - depoimento dos índios na íntegra abaixo .

As torturas foram denunciadas pelos pais das vítimas à Coordenadoria das Organizações Indígenas do Rio Tiquié, Baixo Rio Uaupés e Afluentes (COITUA), filiada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). A Foirn apresentou nesta terça-feira (28/10) representação à 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal - documento abaixo -, para que o caso seja apurado e investigado, com a punição dos militares envolvidos, à qual foi anexada o laudo do exame de corpo de delito elaborado no Pólo Base de Pari-Cachoeira.

A Foirn também encaminhou a denúncia e os documentos ao tenente coronel Kleger, comandante do Vo Batalhão de Infantaria da Selva, responsável pela unidade do Exército em São Gabriel da Cachoeira (AM), à qual o 6o PEFestá subordinado; ao general Cláudio Barbosa de Figueiredo, comandante militar da Amazônia, em Manaus; ao Ministro da Defesa, José Viegas Filho; ao general José A. Félix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; à secretaria do Conselho Nacional Contra a Discriminação (CNCD); ao secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda; ao secretário-executivo do Ministério da Justiça, Sérgio Sérvulo; e ao administrador da Fundação Nacional do Índio (Funai) em São Gabriel da Cachoeira, Henrique Vaz.

Também na terça-feira, o presidente da Foirn, Domingos Barretto Tukano, recebeu um fax assinado pelo comandante da 1a Companhia do 1o Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, Delso Passos Moita, no qual informa que "o comando determinou, em caráter emergencial, a abertura de sindicância para apurar a responsabilidade sobre os fatos".

Depoimento das vítimas

Relatório de Agressão e Tortura dos Militares da 1ª/1o BEC do distrito de Pari-Cachoeira-AM - Município de São Gabriel da Cachoeira-AM

Às dezessete horas e trinta minutos (17:30 hs) do dia 18 de outubro de 2003, ocorreu durante o jogo de futsal na quadra Paróquia de São João Bosco, chegaram os militares alterados com sinal de embriagues, conforme as vítimas, cercaram-nos e prenderam-nos, e o sgt. Vagner André apontando com uma faca e outros restantes (soldados), disseram que nós não corrêssemos.

Ao prenderem, levaram-nos com a caçamba (caminhão), um na cabine e outro na carroça da viatura, enquanto seguiam ao rumo do Quartel 6o PEF de Pari-Cachoeira, ainda a viatura em movimento deram pancadas, chutes e disseram-nos prometendo a gritos que ao chegarem no aeroporto iam amarrar numa corda e arrastar com o corpo exposto no chão com o carro.

Quando chegaram no quartel seguiram direto por uma estrada que vai na cachoeirinha, quando chegaram no local areal, obrigara-nos descer do carro depois de muitos maltratos, e obrigando que nós fumássemos um cigarro, com cheiro muito estranho que nos deixou meio tontos e esse cigarro era do uso deles.

Ao chegar nesse local, os militares (soldados) queriam surrar com a faca (terçado), mas o sgt. Vagner André disse a eles que era melhor com paus e varas, aí prepararam varas e paus com os quais todos eles deram surras com paus, socos, chutes e ponta pés, e também mandaram abrir a palma da mão e botaram pedrinhas e bateram contra elas com a placa do caminhão, disseram que era palmatória. Até esse momento nos cercaram e não dava para tentar fugir correndo e torturaram-nos como se fôssemos animais irracionais. Ao açoitarem expressaram essas frases "vocês são índios não valem nada e merecem morrer mesmo, mostrem agora que vocês são valentes, vocês não são desta comunidade, vocês são ladrões, quem manda aqui somos nós e não vocês índios...e muitas outras frases". A turma de militares era composta de vários soldados que aqui citamos alguns, como: stg. Vagner André, sd Cleber, sd Maraes, sd Suedson, sd elidio, sd Magalhães, sd Alex, sd Columbia, sd Paz, sd Azevedo, sd Fidelis - é da infantaria /6o PEF e os demais são todos da 1ª/1o BEC. Todos esses soldados e mais outros estavam bêbados e drogados, que suspeitamos do mal cheiro do cigarro que nos ofereceram.

Ao levarem, falaram para o dr. Henrique Castro - Presidente da CIPAO, que nós indígenas, tínhamos roubado a caçamba (caminhão) do quartel de destacamento, o referido presidente respondeu que ele como comandante (stg. Vagner André) da 1ª/1o BEC Pari-Cachoeira que decidisse. Na verdade o roubo de caçamba nunca ocorreu, e deram voz de comando para buscar um CD em questão de minutos. Daí corremos dessa tortura às dezoito horas trinta minutos até conseguir livrar no mesmo dia.

Essa forma de agressão, não é a primeira vez, já aconteceu várias vezes nos dias de festas da comunidade, surgem brigas por causa de mulheres, agarram a jovens estudantes indígenas e não deixam outros jovens índios dançarem, caso contrário sempre formam em turmas (galeras) para brigar e surrar os índios, muitas vezes andam armados de facas e outros instrumentos, tornando o ambiente perigoso, tudo isso é provocação dos soldados (militares) que vêm de São Gabriel, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos, Manaus e outros. E os soldados daqui da região de Pari-Cachoeira, Tacaruá, Yauareté e Içana não fazem esse tipo de bagunça ou agressões.

Diante dessa situação tão triste e desumana, ficamos nos perguntando se esse tipo de atitude dos militares , como representante da Segurança Nacional, que tem a missão de defender a faixa de fronteira e as populações próximas dos pelotões se comportam dessa forma tão cruel, é correto ou não.

Nós dois ficamos com braços, costas, nádegas, e pernas feridas e inchadas. Por esta tortura física somos vítimas deste acontecimento.

O relatório é anexado com certidão de exame de ambos indígenas, que foi feito no POLO BASE do DISTRITO DE PARI-CACHOEIRA-DSEI/ FOIRN.

Assinatura das vítimas:

Jailson Costa Lana (etnia: Dessano)
Alberto Caldas Sampaio (etnia: Tukano)

Rrepresentação à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal

Exma. Sra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, DD. Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal

A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN, associação civil com sede em São Gabriel da Cachoeira/AM, que congrega mais de 40 associações indígenas da região do alto e médio Rio Negro, no Estado do Amazonas, e que tem como missão institucional garantir o respeito aos direitos dos povos indígenas do Rio Negro, bem como representar seus interesses junto às instituições públicas pertinentes, vem à presença de V. Sa., com fulcro nos artigos 2o; 6o, inciso V; e 38, incisos II e III da Lei Complementar no 75/93, oferecer a presente

REPRESENTAÇÃO

em função do conhecimento de fatos de extrema gravidade, a seguir relatados, que atentam contra os direitos indígenas e a dignidade da pessoa humana, e que por essa razão merecem imediata investigação e apuração da responsabilidade criminal por parte dessa instituição.

1.DOS FATOS

Durante uma partida de futebol, ocorrida no dia 18 de outubro de 2003, na comunidade indígena de Pari-Cachoeira, localizada no interior da Terra Indígena Alto Rio Negro, dois jovens indígenas foram sequestrados e violentamente espancados por alguns soldados integrantes do Pelotão de Fronteira localizado junto a essa comunidade.

Segundo relatos das vítimas (anexo I), esses soldados, aparentando embriaguez, chegaram armados à quadra de futebol e os coagiram a entrar em um caminhão de propriedade do Exército, para os levar à sede do Quartel do 6o PEF de Pari-Cachoeira. Durante o trajeto, as vítimas foram não só ameaçadas como efetivamente agredidas, física e moralmente, o que veio a se repetir quando desceram do veículo, em local distinto do quartel.

Durante todo o tempo em que estiveram sob poder dos agressores, os dois jovens foram agredidos com socos, chutes, paus, varas e inclusive com uma palmatória! Além da agressão física, que provocou lesões corporais em ambas vítimas, o que foi comprovado em exame feito na sede do Polo Base de Saúde Indígena de Pari-Cachoeira (anexo II), as vítimas foram objeto de agressão moral de cunho nítidamente racista, que se concretizou em frases como "vocês são índios, não valem nada e merecem morrer mesmo", dentre outras relatadas em anexo. Relata-se ainda a coação para o uso forçado de substância entorpecente, de posse ilegal, portada e utilizada pelos agressores.

Como se vê, são fatos extremamente graves. Dois indígenas foram violentamente espancados, dentro de sua própria comunidade, por agentes do exército brasileiro em pleno exercício de seu cargo, que se utilizaram de força e de sua suposta autoridade para não só agredir, mas também para ofender e humilhar as vítimas, aparentemente pelo fato de serem indígenas. E o que é mais grave é que esse fato, embora extremo, não é isolado, mas a exacerbação de um clima de desrespeito e agressividade reinante na relação entre o Pelotão de Fronteira e as comunidades indígenas, situação essa que deve a qualquer custo ser imediamente solucionada.

2.DO DIREITO

Reza a Constituição Federal que "ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante" (art.5o, III), constituindo-se este, portanto, um direito fundamental que deve por todos ser respeitado, notadamente pelo Estado e por seus agentes.

A lei no 9455/97 tipifica o crime de tortura da seguinte forma:

Art. 1o Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Fica claro dos fatos brevemente resumidos acima, mas detalhadamente relatados em anexo, que a conduta dos soldados do 6o Pelotão de Fronteira de Pari-Cachoeira configura-se crime de tortura, por terem eles se utilizado de seu poder e autoridade para ameaçar e agredir dois jovens indígenas, sem maiores razões - como se razão houvesse para a prática de atos de barbárie como esse ! - que a de serem as vítimas índios. Tem-se ainda a agravante de o crime haver sido cometido por agente público em pleno exercício de suas funções (art.1o, §4o).

Não há como tolerar, num Estado Democrático de Direito, que práticas como essas se perpetuem, que continuem existindo em pleno século XXI. A violência física e moral praticada por agentes públicos contra cidadãos é algo que deve ser incansavelmente combatido, e seus autores devem ser criminalmente processados e ao final punidos. Tal situação é agravada quando se trata de crime praticado contra membros de comunidades indígenas, com motivação claramente racista, o que também é repudiado por nosso Ordenamento Jurídico.

O mais inusitado dessa situação é que ela ocorreu apenas um dia após a publicação da Portaria no 983/DPE/SPEAI/MD, do Ministério da Defesa, que visa exatamente regulamentar a convivência entre unidades das forças armadas e comunidades indígenas, evitando que abusos e descompassos até hoje verificados se repitam. Ou seja: no exato momento em que as Forças Armadas tentam garantir uma convivência mais harmoniosa e pacífica com os povos indígenas, respeitando seus direitos e seus costumes, alguns de seus agentes criminosamente se utilizam de sua condição funcional para praticar abusos dos mais abjetos.

Por tudo isso, e tendo o Ministério Público Federal competência privativa para promover, na forma da lei, a ação penal pública (Lei Complementar no 75, art.6o, V), bem como a função institucional a defesa dos direitos dos índios e das populações indígenas (art.37, II), podendo, para tanto, requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, com poder para acompanhá-los e apresentar prova (art.38, II), vimos por meio dessa representação requerer:
a) seja instaurado inquérito policial para apurar a autoria e as circunstâncias dos crimes ora imputados;
b) seja acompanhada essa investigação, para que todos os culpados venham a ser devidamente processados judicialmente; e
c) ao final, sejam os culpados criminalmente processados e condenados, na forma da lei.

São Gabriel da Cachoeira, 28 de outubro de 2003.

Domingos Fábio Borges Barreto
Presidente em exercício da Foirn

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