Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Romerito Aquino
26 de Mai de 2002
Justiça Federal vai julgar em breve ação do MPF contra a Mendes Júnior pela maior devastação de terra indígena da Amazônia Ocidental
O que o leitor vai ler nesta reportagem é a narrativa, em detalhes, de um massacre covarde que homens brancos, desprovidos do mais elementares valores da vida, fizeram com um povo indígena da Amazônia.
A Justiça Federal do Acre estará julgando em breve a ação civil pública que o Ministério Público Federal (MPF) impetrou em 18 de junho de 1996 contra a empresa Mendes Júnior S.A. pelo que antropólogos consideram "a maior devastação já vista numa área indígena da Amazônia Ocidental brasileira".
A devastação ocorreu ente os anos de 1988, 89 e 90 na terra dos índios Kaxarari, situada nas divisas dos estados do Acre, Rondônia e Amazonas, e foi liderada pela Mendes Júnior, empreiteira do Sul do país que o então governador Flaviano Flávio Baptista de Melo levou para Acre para, entre outras coisas, trabalhar no asfaltamento da BR-364 entre Rio Branco e Porto Velho e construir conjuntos habitacionais, entre eles o Manoel Julião.
O MPF assinala que, além da empreiteira, concorreram também para o desastre na área indígena o DNER, a Funai, o Ibama, o Deracre e a empresa de marcação de terra Asserplan, de propriedade do deputado federal Sérgio Barros (PSDB-AC).
Embora não conste como ré na ação civil pública, situação em que se encontram a Mendes Júnior e os quatro órgãos públicos, a empresa do deputado cometeu um erro que foi considerado pelo MPF "ilegal" e "fatal" para a ocorrência do desastre que se abateu sobre os Kaxarari.
A ação civil pública contra a Mendes Júnior e os órgãos é assinada pelo procurador Regional da República Franklin Rodrigues da Costa, que atua no TRF da 1ª Região, em Brasília, e os procuradores da República Luiz Francisco Fernandes de Souza e Sérgio Monteiro Medeiros.
Os três procuradores denunciaram à Justiça que, no ano de 1988, a empreiteira Mendes Júnior S.A. invadiu parte das terras dos índios Kaxarari e saqueou grandes quantidades de pedra-granizo (brita), "sem o consentimento de suas comunidades", para serem usadas principalmente na BR-364 e na construção do conjunto habitacional Manuel Julião, de Rio Branco.
A área arrasada fica situada nas proximidades das vilas Extrema e Nova Califórnia, na divisa entre os estados do Acre, Rondônia e Amazonas. A área indígena devastada é ligada à BR-364 pelo "Ramal da Pedreira" ou "Ramal Mendes Júnior", com extensão de 42 quilômetros e acesso no km 150 da rodovia, a 500 metros da vila Califórnia, que pertencia ao Acre
Segundo os procuradores, a empresa promoveu, ao mesmo tempo, o desmatamento de mais de 10 hectares na área de uma grande pedreira que instalou na reserva, que era usada como barreiro e refúgio de caça tradicionalmente usada pelos caçadores Kaxarari.
Além disso, a empreiteira construiu uma grande barragem para represar as nascentes do rio Azul, principal manancial de abastecimento de água dos índios, provocando a inundação de uma grande extensão da floresta, onde foram destruídas centenas de seringueiras, castanheiras, madeiras de lei, árvores frutíferas, ervas medicinais e outras espécies da flora.
Segundo constatou o Ministério Público Federal, a represa construída pela Mendes Júnior deu origem a um grande lago de 200 hectares de águas paradas, que se transformou num enorme criadouro de anofelinos, provocando constantes epidemias de malária (tipos vivax e falciparum), hepatites (tipos A, B C), infecções intestinais, inflamações nos órgãos internos e outras doenças entre a população Kaxarari.
"Isso resultou, nos dois anos seguintes, na morte de 12 índios - inclusive dos dois velhos caciques, Antônio Caibu e Artur César -, bem como de várias crianças e adultos nas aldeias Azul e Barrinha, situadas ao longo daquele rio", afirmam os procuradores.
Explosões de dinamite
O Ministério Público Federal também constatou que a construtora Mendes Júnior abriu um ramal de 40 quilômetros, ligando a BR-364 à pedreira no interior da reserva, para o transporte de equipamentos e tráfico de grandes caminhões e máquinas utilizados na retirada de brita.
Na exploração da pedreira, localizada nas cabeceiras do rio Azul, a construtora explodiu grandes quantidades de dinamite, causando o afastamento da caça, de fundamental importância para a sobrevivência da população indígena.
Os procuradores da República chamam a atenção da Justiça Federal que os fatos resultantes do massacre aos índios "são públicos e notórios, pois foram exaustivamente denunciados às autoridades competentes e divulgados na imprensa local (inclusive os jornais A Gazeta e O Rio Branco) e do Sul do país pelas lideranças indígenas, pela União das Nações Indígenas (UNI-Norte) e por representantes de organizações não-governamentais que atuam no Acre e em outros estados".
Na ação civil pública, que na Justiça Federal se transformou no Processo de no 960002121-0, os procuradores da República pedem que a Mendes Júnior e os outros réus sejam condenados, solidariamente, a indenizar os índios em R$ 15 milhões por danos morais pelo sofrimento imposto a eles pelas "desastrosas" atividades da empresa dentro de sua reserva reconhecida por lei.
Os procuradores também solicitam que os réus sejam condenados a ressarcir os índios dos prejuízos materiais provocados pelas escavações da Mendes Júnior na pedreira, que teriam retirado ilegalmente 140 mil metros cúbicos de brita. O MPF pede que o ressarcimento da brita seja calculado acrescido de juros de mora de 1% ao mês sobre o preço que vier a ser apurado quando for decretada a sentença pela Justiça.
O terceiro pedido de indenização diz respeito à reparação, também pela Mendes Júnior e os outros réus, dos danos ambientais decorrentes da abertura da estrada dentro da área indígena e dos danos gerados pelo desmatamento nas margens da estrada, cujos custos foram apurados em perícia judicial. O MPF pede, por fim, que sejam reparados os danos ambientais do barramento do rio Azul e da modificação geológica de suas margens.
Todas as indenizações, segundo os procuradores, devem ser revertidas em benefício dos Kaxarari através de um projeto de uso racional gerenciado em conjunto pela Funai, União das Nações Indígenas (UNI), Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Comissão Pró-Índio (CPI-AC), com a fiscalização do Ministério Público Federal.
A empresa Mendes Júnior foi procurada em Belo Horizonte pela reportagem do jornal Página 20 para dar sua versão dos fatos, mas não respondeu na última sexta-feira a diversos telefonemas e a um recado deixado para sua assessora de imprensa, de nome Isabela, na caixa postal de um ramal do telefone central da empresa, de número (031) 3217-9400.
Procuradores: "Foi um genocídio silencioso"
A ação civil pública em exame na Justiça Federal foi uma das mais bem fundamentadas pelo Ministério Público Federal em todo o país, pois contou com informações e laudos minuciosamente elaborados por técnicos, especialistas, médicos e antropólogos, tanto da Funai quanto de outras instituições.
O Ministério Público cita na ação, por exemplo, o diagnóstico do médico Marcos A. Pellegrini, que dá a dimensão do desastre social que representou, para os índios Kaxarari, a entrada da empreiteira Mendes Júnior em sua reserva. "Foi um genocídio silencioso praticado pelos responsáveis da Mendes Júnior", assinalam os procuradores, ao comentarem o laudo do médico.
Realizado entre os anos de 1990 e 1991, o estudo do doutor Marcos Pellegrini constatou que "a malária, a tuberculose, a hepatite e, sobretudo, a fome que os índios tiveram que enfrentar, foram os principais fatores responsáveis pela alta taxa de mortalidade na população Kaxarari".
Segundo o estudo do médico, durante o auge da degradação ambiental praticada pela Mendes Júnior, houve o dobro do número de mortes do que de nascimentos na aldeia Kaxarari. "Entre os anos de 1988 e 1989, doze índios Kaxarari vieram a falecer, numa média de uma morte por mês, enquanto só nasceram seis crianças nesse mesmo período", diz Pellegrini.
Segundo o médico, a situação encontrada em julho de 1990 era de penúria, provocada pela malária e a fome. "A malária, por sua vez, debilitava de tal modo os homens que os impediam de exercer as atividades diárias em plena época de preparo dos roçados", diz o relatório do médico.
O médico ressalta que o lago de cerca de 200 hectares decorrente do represamento do rio Azul era tido como o principal criadouro de mosquitos do gênero anopheles. "Nos criadouros menores (buracos construídos com o propósito de servirem de fossa) tentou-se o tratamento com óleo queimado, mas o constante transbordamento impede o bom êxito dessa estratégia".
Ao encontro da fome
Para o médico, o deslocamento dos Kaxarari para o sudoeste de seu território "levou-os também de encontro à fome". "Contam eles que sempre quando transferiam a moradia plantavam primeiro um roçado novo. Para defender suas terras, vieram sem nada", conta o médico.
Para o antropólogo Terri Valle de Aquino, da Funai, a construtora Mendes Júnior realizou na terra dos Kaxarari o que ele considera "a maior devastação já vista numa terra indígena da Amazônia Ocidental".
Segundo o antropólogo, a devastação da terra dos Kaxarari aconteceu em 1988 justamente no contexto da implementação do PMACI (Programa de Proteção ao Meio Ambiente e às Comunidades Indígenas), programa financiado pelo governo brasileiro e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) com o objetivo de proteger o meio ambiente e as comunidades indígenas na área de influência da pavimentação da BR-364.
"A empreiteira Mendes Júnior S.A. invadiu parte das terras dos índios Kaxarari e saqueou grandes quantidades de pedra-granizo, sem o consentimento de suas comunidades. Para realizar esse saque, promoveu desmatamento de mais de 10 hectares na área da pedreira, antigo barreiro e refúgio de caça, tradicionalmente utilizados pelos caçadores Kaxarari", diz o antropólogo.
Em perícia que realizou em agosto de 2000 como parte da ação civil pública do MPF, o antropólogo Domingos Bueno Silva constatou que a saúde física dos Kaxarari foi afetada pelo aumento das doenças causadas pela malária "que, apesar de estar presente na região, ganhou vulto com a implantação da pedreira" implantada pela Mendes Júnior na área dos Kaxarari.
"A contaminação da água do igarapé Azul, principal fonte de água das aldeias, trouxe consigo vários tipos de problemas digestivos e diarréias. A necessidade de impedir a prospecção mineral forçou os Kaxarari a mudar suas aldeias para o perímetro da Pedreira, abandonando suas roças e criações de animais domésticos", atesta o antropólogo.
Segundo ele, "essa situação, somada ao desaparecimento dos peixes do Azul e da caça por conta das explosões, provocou um período de grande fome e desnutrição na área, com o aumento previsível de todo tipo de patologias oportunistas, principalmente infantis".
Os funcionários da Funai Ricardo Fernando Costa, chefe do setor de Desenvolvimento Comunitário, Erasmo Belucci, engenheiro agrimensor, e Lacy Ferreira Lessa, chefe do posto indígena na área Kaxarari, elaboraram relatório técnico em agosto de 1988 que já alertava o órgão para os sérios prejuízos que as ações da empresa Mendes Júnior estavam provocando no meio ambiente e na saúde dos índios. "A barragem nas nascentes do rio Azul provocou graves conseqüências à flora e à fauna, fontes de alimentação para os Kaxarari, bem como ao surgimento de possíveis surtos de malária".
O Ministério Público assinala que relatório datado de julho de 1989, elaborado por geógrafo e indigenista da Funai e engenheiro florestal e geólogo do Ibama, após visita à área dos índios na companhia de representantes da Mendes Júnior, denuncia que a abertura do ramal até a área da pedreira permitiu que madeireiros invadissem a área indígena e explorassem madeiras de lei de forma irracional, "degradando suas florestas, rios e igarapés, bem como destruindo a flora e afastando a fauna silvestres para longe das aldeias".
Dentre as madeiras de lei exploradas, os funcionários da Funai e do Ibama enumeram o mogno, cerejeira, cedro, cumarú ferro, angelim, copaíba e castanheira. "Além disso, esse ramal propiciou a penetração de colonos e comerciantes para as proximidades das aldeias, cuja conseqüência mais grave resultou no aumento de alcoolismo entre os índios", diz o relatório dos técnicos.
Mendes Júnior, DNER, Funai e Ibama vão ter de pagar mais de R$ 15 mi
Além da Mendes Júnior, que foi o agente devastador direto das terras dos Kaxarari, o Ministério Público Federal decidiu processar o DNER, o Ibama e a Funai porque esses órgãos foram omissos nas providências institucionais que deveriam tomar para evitar os graves danos causados aos índios e para repararem os prejuízos provocados a eles.
Segundo os procuradores da República, o Plano de Recuperação e Preservação Ambientais, exigido pelo Ibama ao DNER, revelou-se "um fracasso completo" na área da pedreira. "A construtora Mendes Júnior não adotou nenhuma medida que viesse efetivamente minorar a degradação ambiental realizada nas nascentes do rio Azul, onde realizara exploração de britas no período 1988-90. Apenas pagou uma indenização simbólica aos caciques Kaxarari das comunidades da Bueira, Pedreira e Paxiúba, no valor de Cr$ 30.000,00 (trinta mil cruzeiros), para poder retirar seus equipamentos pesados da área", assinalam os procuradores.
Com relação à Funai, os procuradores do MPF ressaltam que a direção do órgão no Acre foi avisada em 23 de agosto pelo chefe do posto indígena na área dos Kaxarari, Lacy Ferreira Lessa, dos prejuízos que a Mendes Júnior estava provocado na reserva dos índios. Em relatório ao então administrador Regional da Funai em Rio Branco, Slowacki de Assis, o funcionário público avisava: "...Diante de tais fatos, solicito a V.As. que tome as devidas providências quanto ao fato de esclarecer tal assunto, mesmo porque em muito já está prejudicando as comunidades indígenas daquela área, devido ao fato de que tal empreendimento aterrou o rio Azul, impedindo que aquela comunidade tivesse acesso a água daquele rio, resultando em sérios danos de pesca, caça, agricultura e água potável".
Segundo os procuradores, a providência que o administrador da Funai tomou foi firmar, ilegalmente, com a empresa Mendes Júnior um documento intitulado "Transação Provisória", que permitia a empreiteira explorar pelo prazo de 90 dias "uma jazida de pedra granítica" existente na área indígena para o asfaltamento da BR-364, quando então se obrigariam "a celebrar um acordo definitivo". A transação provisória, considerada ilegal pelo MPF, acabou durando por mais de dois anos.
Irresponsabilidade constante da Funai
Neste ponto, os procuradores lembram que, à época da devastação permitida pela Funai na terra dos Kaxarari, a irresponsabilidade da direção do órgão em todo o país era uma constante.
Segundo os procuradores, Slowacki de Assis, que administrou a Funai no Acre de 1987 até 1990, era pessoa de confiança do superintendente no Amazonas Sebastião Amâncio da Costa, e do então presidente do órgão, o atual senador Romero Jucá (PFL-RR).
Os três, de acordo com os procuradores, "patrocinaram" inúmeros projetos de exploração madeireira, mineral e pecuária em diversas áreas indígenas da Amazônia. "Aqui no Acre, esses três dirigentes foram acusados de cumplicidade na exploração e saques de madeiras de lei nas terras dos índios Kampa do rio Amônia, Yawanawá do rio Gregório e Kaxarari do rio Azu1, bem como pela iniciativa em transformar as áreas indígenas em simples 'colônias indígenas', circundadas por 'florestas nacionais', com a clara intenção de diminuir suas extensões e permitir a exploração e o saque de seus recursos naturais". Os procuradores lembram que o ex-presidente da Funai e atual senador por Roraima responde a ação penal junto ao Supremo Tribunal Federal pelo fato de ter firmado contrato com indústrias madeireiras visando a extração de madeiras em áreas indígenas de Rondônia.
Segundo os procuradores, o Deracre entrou como réu na ação civil público porque atuou em parceria com o DNER e, por força da legislação, era solidário em muitas ações do órgão federal, inclusive para que fiscalizasse a correta e legal aplicação dos recursos federais que foram investidos na pavimentação da BR-364.
Índios que acreditaram nos homens brancos
Os índios Kaxarari atingidos de morte pela devastação da empresa Mendes Júnior eram um povo feliz, pacífico, trabalhador, vivendo em plena harmonia com a beleza e os encantos da floresta.
Segundo estudos antropológicos, os índios viviam no século passado basicamente de caçadas, pescarias e coletas de castanha e de borracha e outros produtos alimentares e não-alimentares da floresta, além de agricultura de cultivo de mandioca, batata, milho e tabaco. Também criavam animais domésticos, como galinha, porcos e algumas cabeças de gado.
Os mesmos estudos, alguns realizados pelo antropólogo Terri Aquino, dão conta de, que em 1910, os Kaxarari eram em número de 2 mil indivíduos, mas as seguidas agressões que sofreram da parte dos homens brancos, desde o tempo das correrias em que se matavam índios na Amazônia até por diversão, passando pelo tempo dos cativeiros em que eles eram escravizados para dar o lucro da borracha aos seringalistas, até o tempo dos direitos (três páginas da história do Acre que as novas gerações de acreanos precisam e devem conhecer) foram reduzidos para pouco mais de 200 índios.
Ainda no tempo dos direitos, que se iniciou nas últimas décadas do século passado, os Kaxarari pensavam que seriam mais felizes, pois voltariam a conquistar a liberdade, a fartura e a alegria de suas primeiras gerações.
Eles pensavam que voltariam a praticar seus rituais e cerimônias tradicionais e até mesmo o "jogo da bola". Era um jogo parecido com o futebol dos brancos, pois era jogado com uma bola de caucho pesando cerca de três quilos. Organizavam torneios entre aldeias, quase sempre praticados no verão num terreno bem limpo e plano do pátio de suas antigas e agora extintas malocas. Essas festas de bola eram comemoradas com muita fartura de comida e caiçuma, havendo muita alegria e animação entre os integrantes das aldeias.
Também já confeccionavam a maioria das peças de sua cultura material, que foram reduzidas a vassouras, abanos de palha e lindos colares e pulseiras de penas de aves silvestres. Antes, confeccionavam ainda redes, balaios, chapéus de pena, businas de rabo de tatu, arcos e flechas. Segundo o antropólogo Terri Aquino, as primeiras referências históricas dos Kaxarari foram relatadas em 1910 por João Alberto Masô, engenheiro da Comissão de Limites Brasil/Bolívia/Peru, que os localizou nas nascentes do igarapé Curequeté, afluente da margem direita do rio Ituxy.
Os Kaxarari falam uma língua do tronco lingüístico Pano, semelhante ao idioma falado de outros índios do Acre, como os Kaxinawá, Jaminawá, Katukina, Nikini, Yawanawá, Arara e Poyanáwa. Em suas aldeias, ainda falam entre si a sua língua nativa.
Mas o tempo dos direitos não fez jus ao seu significado, pois os Kaxarari, na era moderna, foi talvez um dos povos indígenas mais judiados do Acre, justamente porque tiveram a sina de escolher um local para viver exatamente no eixo por onde o Acre se liga hoje aos demais estados brasileiros, a partir da BR-364.
Eles certamente foram os que mais apostaram na paz com os homens brancos ao mudarem para mais próximo deles, mas não sabiam que esse sentimento - que eles tão bem cultivam há milênios vivendo em harmonia com a natureza - ainda não perpetuou no coração da maioria desses homens. Por isso, foram "flechados" de morte pelos homens brancos que não cansam de acumular, acumular, acumular.
Flaviano mancha de sangue as obras merecidas pelo povo
O funcionário que virou assessor, que virou prefeito, que virou governador, sem nunca ter se afastado, de fato, das duas primeiras funções. Essa é a historinha que cai bem no relacionamento antigo que Flaviano Melo tem com a empresa multinacional Mendes Júnior S.A., com sede em Belo Horizonte (MG).
De funcionário da empreiteira no Recife, o então engenheiro Flaviano Melo voltou um dia para o Acre e imediatamente foi ungido na política por um então padrinho poderoso, o ex-governador governador Nabor Júnior (hoje senador). A preferência de Nabor Júnior pelo filho do Raimundo Melo, para lhe suceder na administração pública do Acre, provocou um terremoto no chão em que pisavam os outros velhos "coronéis" do PMDB acreano, como Rui Lino e Mário Maia. O terremoto tinha lá sua justificativa: Nabor havia sido eleito "assinando" acordo de que escolheria um dos dois companheiros históricos do PMDB para lhe suceder no estado. Rui e Mário se foram talvez sem perdoar Nabor.
Mas Flaviano assumiu primeiro a prefeitura de Rio Branco. Lá se instalou como prefeito biônico e uma de suas primeiras providências foi chamar a sua antiga patroa - a Mendes Júnior - para fazer obras na capital. E haja obras. A empresa, considerada multinacional porque já fez obras em vários locais do mundo, chegou no Acre voraz, papando tudo que era obra, seja na construção civil, no saneamento básico, estradas etc etc. A multinacional chegou até a fazer meio fio, falindo mais de 200 pequenas empresinhas da capital e deixando centenas de pais de família acreanos desempregados. A dinheirama paga pelo "gentil" prefeito era toda de imediato mandada embora do Acre. Só circulava o tempo gasto pelos seus administradores para dar um "enter" de computador na transferência solicitada ao caixa do banco.
O prefeito logo se transformou em governador eleito pelo povo (1986), assumindo o Palácio Rio Branco e levando novamente consigo a antiga patroa. Que logo voltou a fazer meio fio, rua, esgoto e estradas e conjuntos habitacionais, como a BR-364 e o Manoel Julião, obras merecidas pelo povo acreano, mas manchadas pelo massacre imposto do povo indígena do Acre.
As práticas promiscuas entre o prefeito e sua velha patroa está lá escrita nos jornais da época, entre eles o antigo Folha do Acre, onde o companheiro Emanuel Amaral costumava publicar suas engraçadas charges personalizadas por Flaviano como um boneco-robô de jamachi nas costas sendo manuseado por um boneco-patrão da Mendes Júnior. Pendurado no jamachi, um ratinho metido a bonitinho e bonzinho, com a cara de Nabor Júnior. Das charges engraçadas e das matérias críticas responsáveis, o jornal, que pertencia ao então senador Mário Maia, logo virou "cinza" pela bomba de alto teor explosivo que algum peemedebista mandou jogar em sua gráfica durante a calada da noite.
Flaviano Melo quer ser agora novamente governador do Acre. Pode ser que ganhe, pode ser que perca. Mas uma coisa a história do Acre já registrou em sua biografia de homem público:
Foi aquele que, com a ajuda de uma empresa capitalista, manchou a sua terra natal com o sangue, as lágrimas e a morte de crianças, jovens e velhos índios Kaxarari.
Erro de demarcação da Asserplan foi fatal
Na ação, os procuradores da República sustentam que a empresa de demarcação de terras Asserplan Ltda, de propriedade do deputado federal Sérgio Barros (PSDB-AC) cometeu, "ilegalmente", um erro que acabou sendo considerado fatal para que ocorresse a tragédia que se abateu sobre os índios Kaxarari.
Após ser declarada área de ocupação indígena pelo então presidente José Sarney (decreto 93.073), em 6 de agosto de 1986, a Funai contratou a Asserplan para efetuar a demarcação das terras dos Kaxarari.
"A empresa Asserplan Ltda, contratada pela Funai para efetuar a demarcação, deixou, ilegalmente, fora dos limites da Terra Indígena Kaxarari as nascentes do rio azul, principal manancial de abastecimento das aldeias Azul e Barrinha", sustentam os procuradores, ao lembrarem que foi exatamente nesta região que, dois anos depois, a Mendes Júnior veio a desenvolver suas ações maléficas contra os Kaxarari e seu meio ambiente.
Os procuradores sustentam que "o erro na colocação dos marcos pela empresa demarcadora é patente", pois a própria Funai, segundo eles, reconheceu que as nascentes do rio estavam incluídas no perímetro da Terra Indígena.
Segundo relatam os procuradores da República, só em 1991, após o desastre da Mendes Júnior, os Kaxarari incorporaram a região da pedreira à sua terra indígena. "A área da pedreira, com extensão de 800 hectares, propositalmente deixada de fora no traçado da demarcação realizada em 1987, foi demarcada pela mesma firma de agrimensura Asserplan Ltda, novamente contratada pela Funai".
O deputado Sérgio Barros negou que sua empresa, a Asserplan, tenha cometido qualquer erro durante as duas demarcações que realizou na área indígena dos Kaxarari. "Não houve erro algum. É tudo falação. Eu acompanhei de perto tanto a primeira quanto a segunda demarcação. O que houve foi que a Funai deu os limites e a empresa seguiu tais limites. Depois, na segunda demarcação, a Funai veio com novos limites e a empresa cumpriu seu papel, fazendo nova demarcação", disse o deputado.
Luiz Francisco: "A história respinga sangue e lágrimas"
Considerado pela revista IstoÉ como o "homem ético do Brasil", em 2001, o procurador da República, Luiz Francisco Fernandes, é uma pessoa que, pela sua simplicidade, singeleza, e perseverança em buscar da prevalência da verdade, também pode ser considerado um peregrino da Justiça na história contemporânea do Brasil.
De processos contra o próprio procurador-geral da República, que usou mordomia da FAB para passear com a família na paradisíaca Fernando de Noronha, aos inquéritos que investigam hoje homens da confiança do presidente Fernando Henrique e de seu candidato José Serra, o procurador Luiz Francisco está fazendo de tudo para chamar a atenção da sociedade brasileira que este país tem de entrar no caminho da ética e da vergonha na cara.
Em rápida entrevista, o procurador Luiz Francisco fala de sua opinião sobre a tragédia social, econômica e ambiental que se abateu sobre o povo Kaxarari, promovido pela empresa que o ex-governador Flaviano Melo trouxe para o Acre para asfaltar até meio fio de ruas.
Página 20 - O que o senhor acha de uma grande empresa capitalista e órgãos públicos terem desrespeitado tanto um povo indígena?
Luiz Francisco - As empresas capitalistas sempre foram predadoras, sempre apareceram na história respingando sangue e lágrimas. Análise compartilhada por Karl Marx e inúmeros pensadores da Igreja (entre eles Alceu), por isso, como fazem a devastação nos recursos humanos (doenças geradas por falta de saneamento, por subnutrição, por tensão desumana que gera doenças mentais etc, é fácil entender como atuavam e como se apoiavam em governantes submissos, totalmente cúmplices e coniventes em tantas destruições.
Página 20 - O que o senhor acha do fato de dois ex-governadores do Acre, Flaviano Melo e Orleir Cameli, terem desrespeitado de forma tão violenta os povos da floresta, como Orleir fez com os Ashaninka e Flaviano fez, indiretamente, com os Kaxarari?
Luiz Francisco - A Igreja tem hoje uma campanha para que os católicos e cristãos não votem em pessoas envolvidas em corrupção, devastação, diminuição dos direitos sociais, que não defendem os direitos humanos etc. Eu já fiz várias palestras em paróquias do Distrito Federal nesta linha. Por isso, repito o que sempre digo nas palestras: cristãos devem votar em pessoa pobre, em pessoas que não estão envolvidas com corrupção (no escândalo do Canal da Maternidade, no escândalo da conta Flávio Nogueira etc). É um dever lutar para que o Estado esteja a serviço dos mais pobres e retirar a influência corruptora do grande capital sobre o Estado.
Página 20 - Por que a ação civil contra a Mendes Júnior e os órgãos públicos, apresentada em 18/06/96 - portanto, há quase seis anos -, ainda não foi decidida nem na primeira instância da Justiça Federal? Esse excessivo atraso (da Justiça) não é um incentivo à impunidade logo contra os índios, os primeiros habitantes do país?
Luiz Francisco - Acho que sim. O Judiciário deveria priorizar estas ações coletivas onde há interesses difusos dos mais pobres. Os índios, os seringueiros, os coletores de castanha, a população ribeirinha, os pequenos camponeses, os trabalhadores braçais do Acre e os pequenos burgueses do Acre (pequenos comerciantes e industriais), junto com os profissionais liberais, são o sal e a luz do Acre. Somente nos pobres é possível confiar e em geral ali é que reside a vida e a esperança de melhores dias. Somente os injustiçados podem, conscientizando-se, liquidarem gradualmente as iniqüidades.
José Kaxarari: "Foi ali que morreram muitos do meu povo"
"Lamentável", "lamentável", "lamentável". É como os próprios sobreviventes Kaxarari, os procuradores, os antropólogos, os sertanistas e a Comissão Pró-Índio do Acre encaram o massacre imposto pela empresa Mendes Júnior que levou fome e morte para crianças, adultos e velhos.
O índio José Kaxarari, um dos líderes comunitários de sua tribo, fala com tristeza daquele tempo: "foi uma demarcação de má fé, que deixou de fora a área da pedreira, nossa terra imemorial. Foi ali que o meu povo passou fome, foi ali que morreu muitos do meu povo".
Membro da UNI e trabalhando no Distrito Sanitário Especial Indígena, órgão assistido pelo Ministério da Saúde e governo do Acre, José Kaxarari diz que sonha com o dia que a Justiça do homem branco reparar a tragédia que se abateu sobre seus irmãos índios.
Segundo José, a população atual de 210 índios de sua tribo continua vivendo até hoje as graves seqüelas da devastação ambiental deixada para trás pela Mendes Júnior. A malária, a hetapite, a desnutrição e a fome ainda perseguem os Kaxarari, principalmente os que vivem nas áreas da Pedreira e Paxiúba, mais próximas do epicentro da destruição nas cabeceiras do rio Azul.
José Kaxarari espera que a Justiça Federal não demore muito para julgar a ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal para que a sua comunidade disponha do dinheiro da indenização para melhorar a escola e o posto de saúde da reserva, para comprar equipamentos agrícolas a fim de aumentar a produção, para deixar transitável o Ramal da Pedreira, para recuperar o meio ambiente e para "fazer coisas para o meu povo voltar a sorrir". Os índios Kaxarari estão usando atualmente o Ramal da Linha 4, entre as vilas Califórnia e Extrema, para chegar à BR-364 porque o Ramal da Pedreira está totalmente intrafegável por causa de grandes lamaçais.
O sertanista Antônio Macedo lembra que "foi muito triste" constatar as mortes por malária e tuberculose dos mais idosos da aldeia Kaxarari. "Os Kaxarari estão ainda sofrendo muito. Eles vivem em constantes andanças pelas Casas do Índios de Rio Branco e Porto Velho pedindo ajuda para amenizarem os prejuízos causados pela devastação em suas terras", diz Macedo.
O antropólogo Marcelo Iglesias, que já fez muitos trabalhos em favor dos povos da floresta, inclusive projetos de criação de reservas extrativistas, ressalta que a devastação da terra dos Kaxarari foi mais um dos exemplos dos prejuízos causados às populações tradicionais da Amazônia pelos erros, omissões e políticas equivocadas de governos locais e federal durante o processo de ocupação dos estados da Amazônia.
Vera Olinda, representante da Comissão Pró-Índio do Acre, faz questão de elogiar o trabalho realizado pelos procuradores do Ministério Público Federal para que a Justiça obrigue os responsáveis pela degradação ambiental da área dos Kaxarari a repararem os graves danos sociais, econômicos e ambientais dos índios.
Ex-governador é condenado a pagar R$ 10,4 milhões ao povo Ashaninka
Flaviano Melo não foi o único governador do Acre responsável diretamente por prejuízos sociais, econômicos e ambientais contra os índios do estado. Foram muitos os outros que, se não concorreram diretamente para tais fatos, praticaram violência contra os índios por suas omissões de ajudarem os primeiros habitantes das terras acreanas.
Na história recente do estado, houve um governador - Orleir Cameli - que já foi condenado pela Justiça Federal a indenizar os índios por exploração ilegal de madeiras.
A condenação saiu em maio de 2000, quando o juiz federal da 1ª Vara Cível de Rio Branco, David Wilson de Abreu Pardo, condenou Orleir Cameli, a empresa de sua família, a Marmud Cameli, e seu ex-sócio e empresário Abrahão Cândido da Silva, a pagarem, solidariamente, a indenização de R$ 10,4 milhões.
A indenização se destina aos índios Ashaninka do rio Amônia, no Alto Jura (extremo oeste do estado) porque os réus, na década de 80, exploraram ilegalmente madeiras nobres como o mogno e o cedro, destruindo parte da reserva indígena, levando doenças e morte à aldeia.
O governador e os outros réus recorreram da sentença em segunda instância da Justiça Federal. Na indenização estabelecida pelo juiz a pedido do Ministério Público Federal, na pessoa do procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza - o mesmo do processo dos Kaxarari - não estão incluídos nestes valores os juros e correções monetárias, o que pode elevar a dívida a mais de R$ 12 milhões, sem contar o retroativo ao período de 1981 a 1987, que ainda será calculado.
As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.