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Megaprojeto de etanol ameaça quilombolas no oeste da Bahia

Mongabay - http://news.mongabay.com/
Autor: por Caio de Freitas Paes
27 de Abr de 2021

No vale do Rio São Francisco, oeste da Bahia, o governo baiano planeja construir um polo agroindustrial e bioenergético com 200 mil hectares de canaviais e dez usinas de etanol.

Desde janeiro, quilombolas das região vêm sofrendo ameaças de despejo e invasões em seus territórios tradicionais; até o momento, não há notícias sobre reuniões ou tratativas com os ocupantes das terras.

Especialistas questionam a sustentabilidade do projeto, pois não existe um plano de gestão das águas do São Francisco, que corre o risco de secar devido ao alto consumo das lavouras de cana.

No vale do Rio São Francisco, oeste da Bahia, a paisagem está prestes a mudar radicalmente. As típicas árvores de folhas secas e o solo árido do sertão nordestino darão lugar a imensas plantações irrigadas de cana-de-açúcar e usinas de etanol. É o surgimento do que o governo baiano define como "polo agroindustrial e bioenergético do Médio São Francisco", bem no encontro entre Caatinga e Cerrado, uma área de mais de 200 mil hectares onde serão erguidas dez usinas. "Ficamos realmente felizes de ver essa coisa acontecer", disse o vice-governador, João Leão (Progressistas), principal articulador da iniciativa, com expectativa de mais de R$2,3 bilhões em investimentos privados. Mas milhares de quilombolas e ribeirinhos não estão nada contentes.

Conforme aumenta o fluxo de caminhões abarrotados de cana à beira do Velho Chico, explodem conflitos. Ameaças de despejo e invasões a territórios tradicionais se multiplicam desde janeiro de 2021.

A 700 km da capital, Salvador, o município de Barra virou o epicentro desta disputa, com pelo menos três frentes de invasão às comunidades situadas nas margens do São Francisco. Desde a segunda quinzena de março, houve investidas contra os quilombos de Curralinho, Igarité e Santo Expedito - todos, hoje, à mercê de reintegrações de posse.

"A gente vê comitivas e comitivas puxadas pelo vice [governador], trazendo empresários de fora e até estrangeiros. Muitos já destruíram o ambiente em suas terras, e agora querem vir pra cá, onde temos mais de 400 km só de margens dos rios [Grande e São Francisco]", diz Alberto*, morador de um dos quilombos invadidos.

Os moradores foram ouvidos pela Mongabay na condição de anonimato por conta da violência que assola as comunidades.

"Tem policial que dá suporte a eles [invasores], que vem sempre armado, gente fardada rondando. Criamos gado à solta, dependemos dessas terras... se desocuparem, para onde vamos?", diz Aroldo*, outro quilombola que vive na região.

Parte das suspeitas envolve um dos grandes parceiros do governo, um empresário que esteve em diversas reuniões sobre o projeto bioenergético junto ao vice-governador da Bahia.

"As pessoas estão muito abaladas. De repente, o fazendeiro vem e diz que vai desocupar a área, que não aceita quilombos nas terras... é uma gente perigosa. Não temos para onde ir, nossa terra é aqui", diz Júlia*, moradora de um dos quilombos.

À Mongabay, a Secretaria de Segurança Pública do estado afirma que, desde maio de 2010, "não há nenhum registro sobre envolvimento de policiais militares" com disputas de terra em Barra. Já a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Bahia disse que "a elaboração dos projetos, construção das usinas e plantio é de inteira responsabilidade da iniciativa privada interessada".

"Só vão desocupar e fim de papo"
Na divulgação do projeto bioenergético, a "Fazenda Igarité" tem destaque. É o empresário Pedro Henrique Leite quem responde por ela, reunindo-se há mais de um ano com o vice, João Leão, para discutir a iniciativa. Não há notícias, porém, sobre reuniões ou tratativas com os ocupantes das terras.

Há pelo menos dois quilombos na área onde Leite planeja instalar sua usina de etanol: Igarité e Santo Expedito. O governo federal analisa a titulação de ambas as comunidades desde 2018.

"Só em Igarité vivem pelo menos 400 famílias. Temos o certificado da Fundação Cultural Palmares, mas o governo não toma atitude para nos ajudar. Aqui a terra é seca, mas é nossa. Vamos [nos] defender até o fim", diz Aroldo*, um dos quilombolas de Igarité.

Pedro Henrique Leite teria invadido a área em 13 de março de 2021, acompanhado de topógrafos e policiais militares de Barra. Para realizar medições, o grupo teria inclusive derrubado marcos da Secretaria de Patrimônio da União, braço do governo federal responsável pelas margens dos rios na região. Quilombolas relataram ainda ameaças físicas e psicológicas.

"Aqui vive muita gente humilde, a maioria em casas de palafita, barracos mesmo. Para esses, ele [Pedro Leite] disse que não vai ter dinheiro nenhum, que só vão desocupar e fim de papo", diz Júlia*.

Parceiro do governo fraudou cofres públicos em iniciativa similar
A história da área reclamada pelos quilombolas é auto-explicativa. Anunciada pelo governo baiano como "Fazenda Igarité", o imóvel na verdade se chama Queimadas do Vale, de posse da família de Pedro Henrique Leite há décadas. Segundo o Sistema de Gestão Fundiária do governo federal, a fazenda é maior que 21 mil estádios do Maracanã, somados, inteiramente na zona rural de Barra.

Aberta em 1977, a Igarité Agropecuária S/A é a dona registrada desta propriedade. Segundo a Receita Federal, o pai de Pedro Henrique, Agrimar Leite de Lima, era um dos administradores desta companhia até 2018, quando ela foi considerada "inapta" pelo fisco nacional. Na prática, ele atuava como presidente da empresa e gestor da fazenda.

Por meio da companhia, Agrimar ganhou incentivos fiscais para a criação de três mil cabeças de gado e também de um polo leiteiro nesta mesma área em Barra, ainda nos anos 1990. Nada saiu como o planejado: fiscais do governo e do Banco do Nordeste visitaram a fazenda à época e não encontraram gado algum.

Segundo registro histórico da Fundação Getúlio Vargas, Agrimar Leite, sozinho, "teria desviado 10% de todos os recursos" do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste por meio da jogada. Um rombo de R$ 58 milhões, equivalente a R$ 449 milhões na cotação atual.

Não à toa, o grupo de empresas da família Leite acabou condenado, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por crimes contra o mercado financeiro. O escândalo os afastou do vale do Rio São Francisco por muitos anos.

Abandonada, a imensa fazenda acabou sob os cuidados dos quilombolas. As comunidades conservaram as terras com suas pequenas roças de feijão e mandioca e também criando gado à solta, um antigo costume no oeste da Bahia. Hoje, lutam pela titulação de toda a área, com mais de 20 mil hectares.

"O tal proprietário nunca apresentou um documento comprovando a posse, sendo que ocupamos aqui faz quase 15 anos! Estamos na luta, com nossos documentos no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], mas está tudo travado. Dá uma tristeza muito grande", diz a quilombola Júlia*.

A Mongabay tentou contato com Agrimar Leite, que não respondeu.

Sustentabilidade hídrica do polo de cana-de-açúcar em xeque
Há mais que conflitos agrários rondando o megaprojeto canavieiro do governo baiano. Especialistas questionam sua sustentabilidade, pois não existe um plano de gestão das águas do Velho Chico, nem de bacias próximas, nas áreas de Cerrado vizinhas. Sem estas águas, o São Francisco corre risco de secar ao longo de seu curso devido ao alto consumo das lavouras de cana.

"Pesquisamos a verdadeira condição hídrica de todo oeste da Bahia desde a 'guerra da água', em Correntina, e até agora não há um consenso", diz a professora Samara Fernanda da Silva, da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob). Para ela, "é muito arriscada" a liberação de novas irrigações "tal como tem sido feita aqui no estado".

A professora da Ufob também participa da Câmara Técnica de Cobrança e Outorga do Uso da Água no Comitê da Bacia Hídrica do São Francisco. O comitê é uma das organizações que, há anos, pede ao governo baiano que passe a limpo as concessões hídricas vigentes.

"Há incerteza quanto ao total de água concedido, à água disponível na superfície e no subsolo, à capacidade dos rios de se manterem sob chuvas cada vez mais irregulares, com secas prolongadas", diz Silva.

O fato é que a lavouras irrigadas seguem expandindo.

Um estudo da universidade Federal de Viçosa (UFV) concluiu que, entre 1990 e 2020, a agricultura irrigada avançou sobre quase 200 mil hectares no oeste baiano. A instituição foi uma das que participou de uma análise do potencial hídrico da região, com apoio da principal associação ruralista da Bahia, a Aiba (Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia).

Os pesquisadores avaliam que, mesmo com restrições para a conservação da biodiversidade, as áreas agrícolas no oeste baiano poderão duplicar nos próximos anos. Desde 1990, elas já aumentaram em mais de 3 milhões de hectares - uma área maior que a Bélgica.

"Desde 2017 esperamos por um plano de gestão das águas na Bahia, e nada. Enquanto o governo seguir com projetos como o do Médio São Francisco, só haverá mais conflitos em uma área que já é repleta deles", diz a professora da Ufob.

* O nome de algumas fontes desta reportagem é fictício, pois preferiram manter o anonimato.

https://brasil.mongabay.com/2021/04/mega-projeto-de-etanol-ameaca-quilo…

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