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Medir direitos sociais

O Globo, Opinião, p. 17
Autor: PIOVESAN, Flávia
05 de Mar de 2015

Medir direitos sociais
América Latina tem sido assim caracterizada por um elevado grau de exclusão e violência

Flávia Piovesan

A América Latina ostenta o maior grau de desigualdade do mundo. A pobreza na região diminuiu do patamar de 48,3% para 33,2%, no período de 1990 a 2008. Todavia, cinco dos dez países mais desiguais do planeta estão na região, entre eles o Brasil. Na América Latina, 40,5% das crianças e adolescentes são pobres.
Não bastando o acentuado grau de desigualdade, a região ainda se destaca por ser a mais violenta do mundo. Concentra 27% dos homicídios, tendo apenas 9% da população mundial. Dez dos 20 países com maiores taxas de homicídio do mundo são latino-americanos, sendo que 43% das vítimas são jovens de 15 a 29 anos.
Na pesquisa Latinobarômetro sobre o apoio à democracia na América Latina, embora 56% dos entrevistados considerem-na preferível a qualquer outra forma de governo, a resposta afirmativa encontra no Brasil o endosso de apenas 49% e no México, de 37%. De acordo com a pesquisa, 31% acham que pode haver democracia sem partidos políticos e 27% consideram que a democracia pode funcionar sem o Congresso Nacional.
A região tem sido assim caracterizada por um elevado grau de exclusão e violência, ao qual se somam democracias em fase de consolidação. Também sofre com um centralismo autoritário de poder, o que vem a gerar o fenômeno do "hiperpresidencialismo" ou formas de "democracia delegativa".
A democratização fortaleceu a proteção de direito, sem, contudo, efetivar reformas institucionais profundas necessárias à consolidação do Estado Democrático de Direito. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade do Estado de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos.
É neste contexto desafiador - marcado pela desigualdade estruturante somada à violência epidêmica e ao centralismo de poder político - que um importante avanço merece ser celebrado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA): a inédita utilização de indicadores para medir o modo pelo qual os Estados garantem direitos sociais. A histórica aplicação de um sistema de indicadores para mensurar a implementação de políticas públicas sociais na região é essencial ao regime democrático. Eis que a própria sustentabilidade democrática resta comprometida com a acentuada exclusão, demandando políticas de inclusão propiciadoras de transformação social. Em sessão na OEA, realizada de 24 a 26 de fevereiro, o grupo de trabalho relativo ao Protocolo de San Salvador examinou detidamente o alcance do exercício dos direitos à saúde, à educação e à seguridade social na região, avaliando com o rigor metodológico do sistema de indicadores como estes direitos estão sendo efetivados: quem tem e não tem acesso a tais direitos; como se dá tal acesso; qual é a qualidade das políticas sociais prestadas; qual é a dotação orçamentária para tal realização, envolvendo decisões financeiras sobre a alocação de recursos; qual é o grau de recepção jurídica de cada direito, com ênfase na incorporação de parâmetros protetivos internacionais; qual é a efetiva capacidade administrativa, técnica, política e institucional do Estado...
O sistema de indicadores de exercício de direitos sociais observa ainda três princípios transversais: igualdade e não discriminação (com destaque para os dados desagregados e os processos de feminização e etnização da pobreza, que afetam de forma desproporcional as populações afrodescendentes, os povos indígenas e as mulheres na região - note-se que 70% dos pobres no mundo são mulheres); acesso à Justiça; e acesso à informação, participação e empoderamento.
Três são os extraordinários avanços decorrentes da aplicação do sistema de indicadores para mensurar o exercício dos direitos sociais: permite incorporar a perspectiva de direitos humanos nas políticas públicas; fomenta a geração de informações, dados e estatísticas a compor uma base sólida para diagnosticar a situação dos direitos sociais, sob as perspectivas de gênero, étnico-racial, etária e diversidade sexual; e contribui para o fortalecimento de políticas públicas, identificando prioridades e estratégias.
Que a utilização do sistema de indicadores possa ser um valioso instrumento para impulsionar o processo de construção da igualdade e da efetiva implementação dos direitos sociais na região mais desigual do mundo.

Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e procuradora do Estado de São Paulo

O Globo, 05/03/2015, Opinião, p. 17

http://oglobo.globo.com/opiniao/medir-direitos-sociais-15505026

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