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Médicos voluntários levam ciência a reduto de tradições indígenas na BA

G1 - http://g1.globo.com
22 de Mai de 2016

Se dependesse do pai e pajé de sua tribo, o jovem Ubiraci Pataxó não estaria ali no centro oftalmológico montado pelo projeto "Voluntários do Sertão", em Santa Cruz Cabrália (BA), para se curar de uma infecção nos olhos.

Morador da Aldeia Coroa Vermelha, uma das maiores áreas indígenas urbanizadas do país, ele reconhece que a "ciência dos brancos" sempre esteve fora de suas tradições, mas acredita no diálogo entre o que define como medicina universitária e a medicina comunitária indígena.

"Hoje na comunidade o que a gente faz é isso: quem tem hipertensão tome o remédio que o médico indicar, mas não deixa de tomar seu chá para que as duas medicinas trabalhem juntas", exemplifica Ubiraci.

Em 2016, o projeto de Ribeirão Preto (SP) que leva atendimentos médicos gratuitos à Bahia há 16 anos colocou frente a frente a ciência e a tradição, representada por 56 comunidades indígenas de 12 etnias diferentes, em sua maioria oriundas do grupo pataxó. O G1 acompanhou o mutirão entre 16 e 23 de abril.

Indígenas do Sul da Bahia ainda celebram suas tradições e curas a despeito da redução massiva desde a colonização portuguesa - de 2 milhões são hoje 32 mil índios entre Salvador (BA) e Mucuri, no Espírito Santo - , da urbanização e da dispersão resultante da criação de parques nacionais a partir dos anos 1960, que colocou etnias distintas em áreas delimitadas.

Medicamentos naturais como o chá de "João Barandi" são receita certa a quem sofrer de dores de dente nos arredores da Aldeia Pé do Monte, povoado com 118 moradores na região de Porto Seguro (BA), garante o Cacique Guaru, de 56 anos, que também se apresenta como Oziel Santana Ferreira Pataxó - nome usado em seu registro civil.

"Quebra bem quebradinho, cozinha e coloca na boca para bochechar, para aliviar a dor. É um remédio, uma anestesia natural do mato", afirma o indígena, que chegou a Cabrália por meio de um ônibus fretado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Da fila para aquela que seria sua segunda consulta com um dentista em toda sua vida, ele reconhece que sua cultura sempre foi avessa à tecnologia odontológica, mas que os tempos são outros e que a ciência também tem sido apropriada por sua nação.

Indígenas também viram médicos, dentistas e pesquisadores. "Estamos aqui hoje buscando saúde, porque dizem que quem precisa tem que correr atrás", afirma.

Ali vestido de camiseta, bermuda e óculos escuros, Guaru garante que certos aspectos de seu estilo de vida não morrem.

"Hoje já somos estudantes, nos formamos, pra gente conhecer o nosso direito. Eu como cacique e como cidadão sei reconhecer o meu direito e o direito de não índio. Gosto de dar meu respeito, gosto de receber respeito. Hoje a vivência é dessa forma. Mas assim mesmo não perdemos nossa cultura, nosso ritual, nossa dança, não temos vergonha de falar que somos índios."

Não fosse a chegada dos "Voluntários", a índia Marivalda Souza Lapa, de 49 anos, recorreria a um chá de "João Barandi", de mastruz ou aroeira, para tratar dos dentes de seu irmão, Ailton Souza Lapa, de 41 anos, na Aldeia Aratikum, entre os distritos de Santo André e Santo Antonio, onde moram 12 famílias.

Enquanto ela entrou na fila para fazer um ultrassom pela caravana, aproveitou para levar o cacique de sua tribo para arrancar o dente do siso, assim como seus filhos e sobrinhos para consultas.

"Temos um postinho, mas é mais difícil. Tem que vir pra cá. Graças a Deus por esse trabalho aqui, a gente está se realizando. Estamos todos precisando", diz a índia, que em sua aldeia atende por Akissan.

A possibilidade de sinergia desses dois mundos encanta médicos como o urologista Wesley Justino Magnabosco, de 37 anos, do Hospital de Câncer de Barretos (SP), que pela primeira vez participou da caravana solidária.

Se em certas abordagens médicas foi preciso um pouco de cautela, como para o exame de próstata, na parte do receituário ele encontrou um denominador comum: a natureza.

"Toda cultura tem coisas importantes para trazer, principalmente essa sabedoria milenar que eles têm. Muitas das medicações são tiradas de plantas. Se a gente tira da planta a medicação, por que não usar diretamente a planta? Há vários tratamentos naturais que eles usam que são muito úteis, muito válidos. A gente não pode deixar perder nem deixar de instruir a fonte, a natureza, até mesmo para descobrir curas para futuras doenças que podem vir desses recursos naturais que podem ser destruídos", afirma.

A recíproca foi verdadeira para Ramildo de Souza Ferreira, de 52 anos, consultado por Magnabosco. Morador da Aldeia Tupinambá, em Ilhéus (BA), ele recorreu ao médico após conviver por um ano com uma dor na costela, em decorrência de uma infecção urinária e de um cisto no testículo. "A gente tem o outro remédio em casa, mas às vezes a gente pensa o outro lado", diz.

Psicóloga e professora universitária de Ribeirão Preto, Carmen Baliero, de 42 anos, em seu primeiro ano pelo Voluntários, também relata ter vivenciado um intercâmbio especial com a comunidade indígena, experiência com direito a selfie com Ariomã, índia da tribo de Coroa Vermelha.

"O aprendizado é o acolhimento. A gente acaba chegando aqui com a ideia de trazer o que temos de melhor e realmente viemos para isso. Mas a troca é impressionante. Estou levando muito mais que imaginei", diz Carmen.

Laboratório indígena

É nesse ponto de intersecção entre ciência e tradição que Ubiraci, de Coroa Vermelha, projeta um sonho: o de montar um laboratório indígena. Estudante do sétimo período de ciências da natureza pelo Instituto Federal da Bahia (IFBA), o jovem se imagina testando de maneira sistemática substâncias que possam oferecer uma alternativa à medicina tradicional.

Atualmente, ele diz manter um trabalho voluntário de saúde preventiva em sua comunidade.

"Que a gente entre em consonância com a medicina universitária para se dizer: olhe, aquele medicamento serve para o estômago, mas esse aqui sem química nenhuma também serve. Os princípios ativos são os mesmos. A nossa ideia é deixar uma via única", afirma.

Na prática, hoje ele respeita os dois lados da questão. Para a infecção em seus olhos, se comprometeu em seguir as orientações médicas do "Voluntários do Sertão", sem deixar de lado os aprendizados de seu povo.

"Como a gente não faz exame de vista na comunidade, a gente não tem esses medicamentos. Vou tomar um remédio caseiro para que possa agir por dentro do meu corpo, mas o que o médico me receitar também vou usar."

http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2016/05/medicos-vo…

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