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Médicos fazem cirurgia de tracoma nas aldeias do Alto Rio Negro e Papuri

Site do ISA-Socioambiental.org-São Paulo-SP
Autor: Beto Ricardo
22 de Ago de 2001

Uma equipe de profissionais de saúde está tratando e fazendo cirurgias corretivas de tracoma para combater a cegueira que ameaça índios na fronteira do Brasil com a Colômbia. Mas esta experiência inédita no país pode ser paralisada em breve porque a Funasa (Fundação Nacional de Saúde do Ministério da Saúde) há meses não repassa os recursos necessários para pagar os salários da equipe de médicos e enfermeiros e garantir condições adequadas de trabalho em campo (veja notícia: Índios brasileiros procuram socorro médico na Colômbia por omissão da Funasa ).

Um conjunto de procedimentos abrangentes para tratar o tracoma começou a ser praticado em 2000, como parte das ações do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (DSEI-RN). Trata-se de um programa de assistência básica especialmente voltado para os povos indígenas, por meio de convênios entre a Funasa a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e outras instituições não-governamentais que atuam na região.

O tracoma é uma infecção crônica causada por um microorganismo chamado clamídia. Afeta a pálpebra superior, provocando sua inversão, fazendo com que os cílios lesionem progressivamente a córnea e a própria pálpebra. Causa desconforto e fotofobia. Sem tratamento, acaba por provocar cegueira. Porém é curável com medicamento específico, acompanhamento regular dos pacientes e, nos casos mais avançados, com cirurgia.A doença foi redescoberta em 1997, pela equipe da Associação Saúde Sem Limites, uma das ONGs que agora faz parte do DSEI-RN, durante trabalhos de campo no Rio Tiquié. Foi confirmada por pesquisadores da UNIFESP de Ribeirão Preto e notificada às autoridades sanitárias federais, sem que qualquer iniciativa prática sistemática tivesse sido tomada até o ano passado.

Os números da doençaDr. Milton Schmidt, médico residente em São Gabriel da Cachoeira e coordenador da equipe contratada pela Foirn no âmbito do Distrito Sanitário, conta que iniciaram no segundo semestre de 2000 um processo de busca ativa e tratamento de casos da doença, principalmente no rio Papuri entre a população da etnia Hupdë (Maku), um dos 22 povos nativos da região. Os resultados obtidos foram alarmantes, com taxas muito acima daquelas já publicadas para zonas hiper-endêmicas na África e na Ásia, razão pela qual foram recebidos com reserva pelas autoridades sanitárias federais. No entanto, é bom lembrar que a equipe do DSEI –RN é formada por profissionais capacitados dentro dos padrões internacionais recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde).

Entre outubro e novembro do ano passado foram examinados 644 indígenas em dezenove comunidades e sítios, sendo 248 Hupdë e 396 Tukano. Foram diagnosticados no total 343 casos de tracoma (prevalência geral de 53,2%) dos quais 157 ativos (contagiosos, prevalência geral de 24,3%). Dos 248 Hupdë, 180 receberam diagnóstico de tracoma (72,5%) sendo 94 casos ativos (37,9%) com grande incidência de tracoma intenso (48 casos, principalmente em crianças pequenas). Entre os 396 Tukano examinados, foram detectados 163 casos de tracoma (41,1%) sendo 63 ativos (15,9%), com poucos casos intensos. Ainda nesta etapa foram detectados 26 pacientes com seqüelas de tracoma, quase todos da etnia Hupdë.Na segunda etapa, entre maio e junho de 2001, foram examinadas 629 pessoas, de 22 localidades e o tracoma foi detectado em 495 delas (prevalência geral de 78,6%). Destes casos, 193 foram considerados ativos (30,6%). Entre os 240 Hupdë examinados foram registrados 218 indivíduos com tracoma (90,8%), dos quais 84 ativos (35%). Nos 389 Tukano examinados foi constatado tracoma em 277 pessoas (71,2%), dos quais 109 ativos (28%). Foram detectados apenas 2 casos de tracoma intenso, um em cada família linguística. Foram detectados outros 7 casos seqüelares, somando 33 casos no total para este rio (5 Tukano – 1,26%, 28 Hupdë – 11,29%).Os tratamentosDiante deste quadro, a equipe de saúde do DSEI-RN medicou mais de 90% da população Hupdë com o antibiótico azitromicina e isoladamente para as famílias Tukano afetadas.

Segundo o dr. Milton Schmidt, tal abordagem precisa ser mantida até a redução dos índices de tracoma ativo a níveis aceitáveis, além de ações específicas de educação em saúde, controle anual dos casos cicatriciais e cirurgias corretivas em campo. É igualmente desejável que abordagem semelhante seja adotada entre os Hupdë que habitam as regiões dos rios Tiquié e Uaupés, de modo a minorar os riscos de recontaminação. Tanto do lado brasileiro quanto do lado colombiano do rio, já que esta população se caracteriza por grande mobilidade.Essas ações precisam ser conjuntas, com a colaboração com dos serviços de saúde locais dos dois países.

Informações levantadas por outras instituições que fazem o atendimento de saúde no DSEI-RN reforçam e ampliam as recomendações do dr. Schmidt. A equipe do Centro Saúde Escola, uma ONG ligada à Diocese de São Gabriel da Cachoeira, identificou 696 casos de tracoma entre fevereiro e julho de 2001, sobre uma população de 5.351 indígenas das etnias Baré, Tukano e Baniwa que vivem em 145 sítios e 45 comunidades ribeirinhas do Rio Negro e ao longo da estrada que liga o porto de Camanaus até Cucuí, na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela.Nos casos mais avançados da doença há necessidade de cirurgia corretiva, para aliviar o desconforto e interromper o processo que pode levar à cegueira completa.

O procedimento cirúrgico é adotado apenas para os casos em que já houve a instalação das seqüelas do processo inflamatório, em especial a inversão da pálpebra superior causada pela cicatrização da conjuntiva (membrana interna da pálpebra).

Mais do que uma aventura

O dr. Oscar Espellet Soares, é o médico cirurgião da equipe do DSEI-RN e já realizou 37 cirurgias corretivas em campo, nas próprias comunidades indígenas, num procedimento inédito e bem sucedido em 70% dos casos. Ele prevê que há mais 50 casos cirúrgicos pendentes no rio Papuri. Fazer essas cirurgias nas comunidades é mais do que uma aventura. Os Hüpde resistem a sair dos seus acampamentos para serem tratados em hospitais e ambulatórios. Nas 48 horas depois da cirurgia, diz o dr. Oscar, a maior dificuldade é superar a dor que os pacientes têm, uma vez que os Hüpde também resistem a tomar os medicamentos dos brancos.

Sobre os procedimentos padrões recomendados pela OMS para o tratamento do tracoma, que é a segunda causa de cegueira no mundo (a primeira é a catarata) e a primeira de cegueira prevenível, o dr. Oscar comenta que parte deles é muito difícil de ser aplicado. A OMS resume essas recomendações com uma palavra de quatro letras em inglês: SAFE. S de surgery (cirurgia), A de antibiotic (antibiótico), F de face washing (lavar o rosto) e E de environmental improvement (melhoria ambiental). As duas primeiras causas podem ser implementadas com uma equipe de profissionais bem treinada e os medicamentos e equipamentos adequados. As duas últimas, entretanto, estão fora do controle dos profissionais de saúde que chegam de fora, para tratar populações que têm suas próprias categorias de classificação de doenças e métodos de tratamento.

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