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Massacre foi só um aviso, ameaça cacique

OESP, Nacional, p.A4
23 de Abr de 2004

'Massacre foi só um aviso', ameaça cacique
Pio Cinta-Larga diz que chacina de garimpeiros ocorreu por eles terem entrado em área proibida

EDSON LUIZ. Enviado especial

PORTO VELHO - Os principais líderes da tribo cinta-larga, da Reserva Roosevelt, em Rondônia, afirmaram que o massacre de 29 garimpeiros foi apenas "um aviso" do que pode ocorrer na área. Segundo confirmou ontem o cacique Pio Cinta-Larga, as mortes aconteceram pelo fato de os mineradores não terem obedecido à ordem de não entrar na reserva. "Isso foi um aviso, porque os guerreiros estão cansados de tirar o pessoal do garimpo proibido", disse Pio, em entrevista. "Os próprios garimpeiros ficam teimando."
O cacique defendeu a liberação da garimpagem apenas para os índios, mas ele próprio, e outros três líderes da tribo, estão sendo processados por formação de quadrilha e extração ilegal de minério.
Os índios praticamente confirmaram o que a Polícia Federal já sabia, mas não descreveram como ocorreram as mortes. Os 29 mortos estavam entre os mais de cem mineradores que extraíam diamantes na área chamada Grota do Sossego.
"Nós não queremos que eles invadam mais. O pessoal entra na área sabendo que é proibido", afirma o cacique, um dos principais líderes da Roosevelt.
Depoimento - Pio Cinta-Larga será um dos índios que a PF irá chamar para depor, provavelmente só depois de sobreviventes serem ouvidos, na próxima semana. "Antes é necessário acabar com o clima de tensão. A seguir, será iniciada a fase de depoimentos", afirma o delegado federal Mauro Spósito, coordenador-geral de operações especiais de fronteira da PF e responsável pelas investigações.
O cacique cinta-larga já responde a quatro processos na Justiça Federal de Rondônia e já foi indiciado em inquéritos na PF, onde é acusado de ligação com o empresário Marcos Glikas, preso em Porto Velho por contrabando de diamantes. No inquérito, Pio e os caciques Raimundo, Oita e João Bravo são citados como responsáveis pelas transações com empresário, que seria o líder de uma grande organização no País.
Outro cacique, Dirceu Cinta-Larga, afirmou que a Fundação Nacional do Índio (Funai)não tem culpa pelas mortes de garimpeiros na Roosevelt. "A Funai não tem culpa, pois foram os próprios índios que fizeram esse serviço (as mortes). A Funai não tem culpa", afirmou Dirceu. O relato dele, apesar de não detalhar como aconteceu o massacre, coincide com o depoimento do coordenador da força-tarefa do governo na região, Walter Blós.
Segundo ele, os índios foram provocados antes de matar os mineradores.
Ontem, 10 dos 29 corpos dos garimpeiros assassinados na Semana Santa foram liberados no Instituto Médico Legal (IML) e seriam levados para espigão D'Oeste. Lá haveria o velório. Para evitar problemas de segurança, o governo do Estado enviou cerca de 200 policiais militares para garantir a tranqüilidade na cidade, onde até policiais federais estão sendo hostilizados.
Os demais corpos deverão ser reconhecidos por exames de DNA, segundo o IML.
Na região do garimpo Roosevelt, cerca de 400 homens da PF, PM e outros órgãos federais e estaduais continuam realizando barreiras para evitar entrada e saída das terras indígenas.

Arco e flecha, só para pose diante das câmeras
NILTON SALINA Especial para o Estado
Os guerreiros cintas-largas só usam arco e flecha quando precisam posar para as câmeras. Na hora de atacar os garimpeiros, preferem armas de grosso calibre, conforme foi constatado em exames nos corpos retirados da Reserva Roosevelt. Os caciques que conduzem as negociações para permitir a entrada de brancos no garimpo usufruem do conforto e da tecnologia oferecidos nas cidades.
O cacique Uitá Cinta-Larga, de 50 anos, tem uma casa de dez cômodos na principal avenida de Cacoal, a 500 quilômetros de Porto Velho.
Dispõe de televisão, videocassete, DVD, forno de microondas, sala de áudio, edícula e piscina. Ele anda com seguranças (brancos) e dirige uma picape Mitsubishi L 200 cabine dupla.
O cacique Pio Cinta-Larga, de 39 anos, também tem caminhonete e uma casa em Cacoal. Depois de se deixar fotografar com arco e flecha na reserva, ele disse que a matança em Roosevelt "poderia ter sido bem pior". Apontado por garimpeiros como um dos chefes que negociam a entrada na reserva, diz não ter responsabilidade nas mortes.
A área onde são encontrados diamantes na reserva Roosevelt se estende por cerca de 150 quilômetros, às margens do Rio Lage. Os caciques cintas-largas permitem que os garimpeiros trabalhem nos pontos em que a concentração de pedras preciosas é menor e cobram uma parte da produção. A penalidade para quem descumpre o acordo com os índios pode ser a morte.
Os guerreiros não permitem que brancos entrem na reserva armados ou em veículo próprio. Após o acordo com os caciques, os garimpeiros são levados em carros dos índios até o local exato onde estão autorizados a trabalhar.
São fiscalizados por indígenas enquanto extraem diamantes, cientes de que não podem mudar de área nem ficar com mais pedras do que o combinado.
Os sentinelas deixados pelos caciques logo aprendem a operar os motores usados na extração, mas têm dificuldade em reconhecer o diamante. A pedra bruta se parece muito com os demais pedriscos da região.
A Polícia Federal verificou que em alguns locais os próprios índios estão garimpando. São áreas sob a responsabilidade de aldeias onde os encarregados de vigiar os garimpeiros aprenderam a identificar as pedras preciosas.
Quando isso acontece, os guerreiros são chamados, expulsam os garimpeiros e ficam com os equipamentos.

'Índios podem ser punidos', diz Funai Para presidente do órgão, cintas-largas não são inimputáveis e podem responder a processo
VANNILDO MENDES
BRASÍLIA - O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira, disse ontem, em entrevista ao Estado, que os índios não são inimputáveis perante a Constituição e as leis. Assim, os cintas-largas que participaram da chacina de 29 garimpeiros em Rondônia deverão ser processados pelo crime (homicídio doloso qualificado, ocultação de cadáver e formação de quadrilha). Mércio mudou o tom do seu discurso. No início da semana, ele dizia que os índios estavam defendendo suas terras quando assassinou os garimpeiros. Agora, garante que a Funai não criará obstáculos à investigação, mas ressalvou que há atenuantes em favor dos cintas-largas.
Desde que foram contatados, na década de 60, os índios têm sido alvo de perseguições, maus tratos e assassinatos por parte de garimpeiros, madeireiros e brancos em geral, disse. "O que chocou, agora, foi que, pela primeira vez, os papéis se inverteram e os índios passaram de vítimas à condição de agressores."
Estado - Até que ponto pode se responsabilizar os índios ou não nessa questão?
Mércio - A Funai não responsabiliza os índios, quem vai responsabilizar ou é o Ministério Público ou é um inquérito policial que a PF vai fazer nos próximos 2 meses. Se eles acharem que devem indiciar índios, irão indiciar, os índios são imputáveis. Tem 120 índios nas cadeias brasileiras. Então, tem índio preso por homicídio ou por algum dolo. Os índios, por serem tutelados pela Funai, por terem essa diferenciação cultural, tem atenuantes. Então quem determina isso é uma decisão entre os juízes.
Estado - Então não há impunidade pra indígena que comete crime?
Mércio - Não há inimputabilidade. Eles são imputáveis. Índio que comete um crime é imputável. Não há impunidade para índio criminoso.
Estado - Como está a regulamentação da exploração de minérios em terras indígenas?
Mércio Pereira - O Artigo 231 da Constituição Federal diz que os recursos naturais das terras indígenas são de usufruto exclusivo dos índios. Recursos naturais quer dizer o quê? Quer dizer florestas, fauna... Água é recurso natural, assim como minério é recurso natural. Mas há também uma outra legislação que fala que os recursos de subsolo, os recursos minerais e também os recursos hídricos, quando objetos de exploração, precisam passar pela licença do Congresso Nacional.
Estado - E o garimpo?
Mércio - Todo o garimpo, não só o de ouro, tem de passar pelo Congresso também. O mesmo vale para exploração comercial de água mineral e extração de cascalho e areia em áreas em que podem ser utilizados sem degradação ambiental. Tudo isso está sem regulamentação e vinha sendo feito normalmente. A empresa vai lá, faz um acordo com os índios. O mais perigoso e com grande impacto é quando a exploração é de diamante, ouro e outros metais preciosos.
Estado - O conflito com os cintas-largas, então, não foi um fato isolado?
Mércio - Absolutamente. Na terra dos caiapós, foi extraído por uns dez anos ouro de uma mina do Rio Fresco. Havia um acordo com os índios, mas tudo sem regulamentação. Era ilegal tanto o garimpo quanto a relação entre garimpeiros e índios.Igualmente ilegal foi a invasão de 20 mil garimpeiros na área dos Ianomâmis, que resultou no massacre, internacionalmente condenado, de dezenas de índios. Só em 1992, 16 Ianomâmis foram assassinados.
Estado - De quem é a culpa pelo massacre da Reserva Roosevelt?
Mércio - Em outubro, dois meses depois que eu estava na Funai, apareceu uma denúncia de garimpeiros de que os índios tinham matado gente deles. Tinha denúncia de que um índios teria esfolado a barriga de uma menina pra retirar uma pedra de diamante. Todo o clima de pressão, porém, era terrorismo para que se abrisse o garimpo.

OESP, 23/04/2004, p. A4

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