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11 de Out de 2006
Uma placa no centro comercial da cidade de São Felix do Xingu anunciava os desbravadores do século XX, construtores da estrada rumo ao oeste. A nova rodovia ligaria a PA-279, que partia da Belém-Brasília (BR-153), atravessando o rio Iriri, na altura do antigo porto da mineradora Canopus, e chegaria até a Santarém-Cuiabá (BR-163) depois de atravessar o rio Curuá. A placa exposta no centro da cidade continha nomes dos heróis e, ao lado, os valores doados ao ato de bravura incontestável de ocupar para desenvolver uma região onde só havia mata. O discurso lembra o que Médici fez quando derrubou a castanheira imperial que ficava na entrada de Altamira para inaugurar a Transamazônica.
A estrada avançava a cada dia. Centenas de famílias e, em sua maioria, fazendeiros estabelecidos em outras regiões reinvestiam seus lucros, entrando na floresta pelas estradas recém-abertas. As potentes caminhonetes 4x4, levantando poeira vermelha, seguem na direção de novas áreas para abertura de pastagens. Trabalhadores enganados por "gatos', estão entre aqueles que chegam, uma população invisível, desprezada pelas autoridades locais, somente avistada pelo grupo móvel do Ministério do Trabalho, responsável por investigar denúncias de trabalho escravo. Homens, ou melhor, "peões", como são conhecidos, em geral oriundos das regiões empobrecidas do Maranhão, chegam à região iludidos com promessas de ganhar muito dinheiro derrubando a mata.
Os pistoleiros andam na rua expondo suas armas potentes, a garantia mais certa de terras e florestas destinadas às futuras fazendas. Temos ordem até na grilagem - a ordem é: quem tem mais homens armados tem mais terra. Esses grupos assumiram o papel do Estado de "regularizar" as áreas, erguer placas identificadoras no meio da floresta, mostrar que ali tem dono. E que se respeite tal área conforme a lei do calibre, diga-se, calibre maior do que os velhos os revólveres 38 usados pela polícia local. Quem chega primeiro, e com a arma de maior calibre, vira dono.
Homens derrubando a floresta. Gado aos milhares sendo transportado nos caminhões-gaiolas ou tocado por peões pela estrada. Sob sol ou chuva, uma grande marcha fundava vilas, povoados, construía pontes sobre os riachos, abria novas estradas. Uma nova região de prosperidade. Grandes fazendas para produção de gado para corte eram formadas a cada nascer do sol. A floresta, grande obstáculo ao desenvolvimento, vinha ao chão na velocidade em que o pião da moto-serra trabalhava. A oportunidade de novas áreas de pastos estava ali a uns meros 500 quilômetros de muito sacrifício, ao fim dos quais havia terra boa.
New West
Narrando assim, teríamos o "new west" dos Estados Unidos. A história poderia continuar como nas frentes do Oeste Americano, onde se enfrentava os peles-vermelhas na base do fogo das potentes winchester e rifles de repetição.
A única diferença é que estamos na maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Mais precisamente no Xingu e na região da Terra do Meio. Aqui a história não foi assim, pois estamos no século do Global Position Sistema (GPS), das imagens de satélites e da telefonia celular. Muito depois da época das extensas linhas de transmissão telegráfica em linguagem do código morse, que em cada bip poderia transmitir mensagens cifradas com muita dificuldade. No caso, as winchesters foram substituídas pelas espingardas calibre 12 de repetição, com muita mais capacidade de destruição.
O poder de ação e as estratégias dos grupos interessados em uma região potencialmente direcionada à exploração de mogno, ouro, bauxita e, hoje, de extensas pastagens para pecuária constituem as bases históricas da ocupação da Amazônia.
O Senhor dos Anéis e a Terra do Meio
Para o coordenador da campanha Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, uma parte dessa história lembra o episódio retratado no filme o Retorno do Rei, um dos capítulos da trilogia O Senhor dos Anéis, em que as árvores da floresta levantam-se para atacar os seus destruidores. No filme, também há uma "Terra do Meio" em disputa. Mas se alguém perguntar se houve uma revolta como no filme, na região paraense batizada com o mesmo nome por estar situada entre o rio Xingu e o Iriri, direi que sim e ainda provo.
A rebelião não ocorreu nos moldes hollywoodianos, não teve efeitos especiais. Afinal de contas, foi no meio da floresta, em pleno verão amazônico, na localidade conhecida como Humaitá, lá na casa do Seu Chico Branco, que nasceu uma outra história da Terra do Meio. As árvores não se levantaram para guerrear, mas seis mil toras de mogno apreendidas pelo Ibama foram doadas e convertidas no único fundo de recursos da Amazônia para ONGs, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, o conhecido Fundo Dema. O nome foi dado em homenagem ao líder do campesinato da Transamazônica assassinado, na madrugada de 25 de agosto de 2001, por denunciar a ação de grileiros e madeireiras ilegais.
Foi o mogno desmatado ilegalmente que se levantou como no filme e veio para o meio da batalha. A criação do fundo deve ser considerada pelos destruidores da floresta como a maior revolta da região. Nem as multas do Ibama inspiram tanto protesto. Desde a imprensa até sessões da Câmara de Vereadores especialmente realizadas para este fim já questionaram a doação da madeira. O ódio é tanto que o Tribunal de Contas da União não quer deixar que outra experiência semelhante aconteça novamente, pois aí, além do mogno, pode haver a vingança do jatobá, do cedro, do ipê, da moracatiara e muitas outras.
O Corredor do Xingu
Com uma área de 511.891 quilômetros quadrados, a Bacia do rio Xingu nasce no Mato Grosso, onde estão as nascentes dos seus principais formadores, e segue por dentro do Estado do Pará, onde encontra o Rio Amazonas, na altura da região de Porto de Moz, terra do povo Maturu. A Bacia possui hoje um corredor de Terras Indígenas, formado nas décadas de 1970 e 1980, que acabou servindo como um grande cinturão de proteção para boa parte da área de expansão da BR-153 (Belém-Brasília) e da BR-163 (Cuiabá-Santarém).
A ordem de grandeza das Terras Indígenas localizados na Bacia do Xingu é bem maior que a daquelas que estão no corredor Carajás, por exemplo. Uma hipótese para explicar isso é que a região não sofreu a pressão do setor de ferro-gusa na definição do tamanho dos territórios indígenas. Assim, houve condições ideais para garantir grandes áreas de floresta destinadas às populações indígenas.
Na Bacia do Xingu, temos a presença de três dos quatros grandes grupos lingüísticos indígenas, tornando a região uma das maiores em concentrações de sociodiversidade e etnicidade do Brasil. Da família Karib, aqui estão presentes os Arara do Pará, espalhados em três aldeias, e os Maia, na Volta Grande do Xingu, Laranjal e Cachoeira Seca no Rio Iriri. Os Kayapó representam o grupo lingüístico Macro Gê, espalhados em dezenas de aldeias ao longo dos rios Xingu, Iriri, Curuá, Baú e Bacajá.
Por vários anos, a Igreja Católica, por meio dos missionários que andaram na região na década de 1980, alertou os ribeirinhos sobre a necessidade de demarcar suas terras em uma medida de cerca de 100 quilômetros quadrados para assegurar assim suas áreas de coleta, pesca, caça e extrativismo de seringa, entre outros. Naquela época, ainda não havia legislação para garantir áreas de uso coletivo. Anos mais tarde, os campesinos organizados da região da Transamazônica apresentaram a proposta de garantir a proteção de três grandes áreas batizadas por Airton Faleiro como os "pulmões" da Transamazônica. Ao norte, entre Anapu e a rodovia, na região do Pracupi; entre a estrada, o Rio Xingu e o Curua-una, onde hoje está localizada a Reserva Extrativista (Resex) Verde Para Sempre e está em estudo a Resex Renascer; ao sul, a região da Terra do Meio.
Desafio
O grande desafio é fazer realmente todas essas áreas protegidas funcionarem. O corredor ecológico do Xingu parte exatamente do meridiano 51, onde o avanço do arco de desmatamento foi freado pelas Terras Indígenas e pela criação de Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) sobre as glebas que tinham sido objeto de contratos de alienação de terras públicas para a implantação de fazendas de gado, nas décadas de 1970 e 1980. A substituição do padrão de ocupação foi o estopim do assassinato brutal da missionária Dorothy Mae Stang, da Congregação Irmãs de Notre Dame e da Comissão Pastoral da Terra, em fevereiro de 2005.
A contenção ao avanço da fronteira agrícola foi reforçada oito dias depois do assassinato de Dorothy, quando o governo federal, depois de mais de três anos, tirou da gaveta a proposta de criação das Unidades de Conservação da Terra do Meio e oficializou a Estação Ecológica da Terra do Meio e o Parque Nacional da Serra do Pardo. Em novembro de 2004, já havia sido criada Resex do Riozinho do Anfrísio, antecipada pelas inúmeras ameaças contras suas lideranças, invasões de terras e desmatamento ilegal - crimes que ainda vem ocorrendo Resex do Iriri (instituída em junho passado) e foram noticiados por jornais e revistas de circulação nacional .
Para completar o corredor, falta tirar da gaveta a Resex do Médio Xingu, a Floresta Estadual do Iriri e Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu,. É indispensável ainda aplicar os recursos necessários ás UCs e já disponíveis no Programa de Áreas Protegidas na Amazônica, mas que custam a sair do papel e virar realidade.
Enquanto isso, centenas de famílias que ainda estão no interior da Estação Ecológica da Terra do Meio e do Parque Nacional da Serra do Pardo esperam por uma definição clara do seu futuro. Para onde irão? Quem irá assisti-las? Como serão transferidas? A floresta ainda espera a retirada das grandes fazendas que continuam a colocar fogo em grandes áreas. A sociedade continua esperando que as promotorias de Justiça atuem contra os inúmeros grileiros que enriqueceram negociando terra pública. Todos ainda estão livres e continuam intimidando lideranças locais que lutam por seus direitos e pelo uso coletivo das áreas das florestas.
De uma coisa somos conscientes neste momento: o "efeito papel" causado pela decretação das UCs contra o desmatamento e a grilagem de terras começa diminuir. Grupos poderosos conhecem a capacidade operacional do Estado na Amazônia. Mesmo havendo pessoas compromissadas dentro dos governos municipais, estadual e federal, isso só não basta para garantir a floresta em pé. Falta uma coesão de forças entre a sociedade civil e governos para proteger a região. Lembrando: continuarão sendo imprescindíveis recursos públicos previstos no orçamento pelo Poder Legislativo das três esferas de governo. A Justiça também não pode deixar de punir exemplarmente os grandes destruidores de floresta, com garantia de que seus bens possam ser bloqueados para garantir compensar o prejuízo por eles causado.
Também sonho com a floresta que se levanta, junto com os povos, e se rebela contra os crimes ambientais que tiram vidas humanas.
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