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Mamógrafo leva prevenção à Amazônia em navio da Marinha

OESP, Vida, p. A26
19 de Ago de 2012

Mamógrafo leva prevenção à Amazônia em navio da Marinha
Com ajuda de ONG, mulheres nos confins do Pará se submetem a exame pela 1ª vez

PAULO SALDAÑA / TEXTOS
NILTON FUKUDA / FOTOS
ENVIADOS ESPECIAIS, SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA (PA)

O acesso por terra a São Sebastião da Boa Vista só existe a partir do vilarejo de Cocal. Mas a cidade de 22 mil habitantes na Ilha de Marajó não está isolada. É pelas águas caudalosas do Rio Pará que o mundo chega a São Sebastião, no nordeste do Estado que dá nome ao rio.
Saindo da capital Belém, são seis horas de navegação, uma viagem cercada de mata amazônica e um calor acima dos 30"C. Encontros espaçados com barquinhos de pesca e casas isoladas completam a paisagem. O navio Auxiliar Pará da Marinha do Brasil leva a bordo uma tripulação de 80 marinheiros e 8 oficiais, além de médicos e dentistas. No terceiro convés, um mamógrafo GE Performa. A experiência de ter um equipamento como esse em um navio é inédita, assim como o encontro da tecnologia com aquela população.
A aposentada Dorcinea Correa Leal, de 82 anos, esperava sua vez sentada em uma cadeira de plástico ao lado da grande caixa de chumbo construída para isolar o mamógrafo. Mãe de 15 filhos, ela nunca havia passado pelo exame. Nem sabia para que servia, apesar de versada em assuntos de mulher: foi parteira por quase toda a vida.
Ao lado da filha Deusanina, de 51 anos, 12 filhos, Dorcinea conta que foi ela quem "pegou" todos os netos. Além deles, já fez mais de 500 partos. "Minha mãe fazia, ela que 'pegou' os meus filhos. Deus é que dá o dom para gente. Mas a gente tem de ter ciência para não machucar."
Treinada na ciência, Dorcinea também 'pegou' boa parte dos 58 netos, 17 bisnetos e 1 tataraneta. Há dois anos se aposentou. "O doutor disse para eu parar, que já não tinha reflexo pra continuar." Fez o exame e não deu nada.
Família grande como a da parteira aposentada é comum nas margens do Rio Pará. Se a alta taxa de natalidade pode provocar dificuldades, principalmente financeira, a característica é positiva para a contabilidade das mamografias. A amamentação provoca o amadurecimento das glândulas mamárias, tornando as células menos suscetíveis ao desenvolvimento do câncer de mama. A distância do estresse urbano também colabora para baixos índices.
Entretanto, as primeiras visitas do mamógrafo para a região têm uma importância maior, explica Francisca Harley, da ONG América Amigas, que fez a doação do mamógrafo a dois barcos da Marinha. Além do Pará, o navio Dr. Montenegro ganhou o equipamento, que custa cerca de R$ 1 milhão. "É a primeira vez que essas mulheres recebem esse tratamento. Além de ser um mapeamento importante, é também um encontro da cidadania", diz Francisca. A Américas Amigas já doou 20 mamógrafos pelo País desde 2009.
Apesar da pequena incidência na Região Norte (19 a cada 100 mil, cerca de 3 vezes menor que no Sudeste), o câncer de mama é o segundo tumor mais mata por ali. Os dados são do Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Cívico-social. A embarcação Pará não é um navio-hospital, mas está preparada para atendimentos ambulatoriais. A Marinha realiza periodicamente as chamadas Ações Cívico-Sociais (Aciso) em comunidades carentes e afastadas. Além de São Sebastião, a missão realizada em julho esteve em outras seis comunidades ao longo de 14 dias.
Foram 933 atendimentos médicos e 336 odontológicos - muitos dos quais extrações de dentes -, além de procedimentos de enfermagem e distribuição de remédios. No período, 37 mulheres fizeram mamografias, todas em São Sebastião - e nenhuma apontou indícios de tumor. O número de examinadas é baixo porque a Marinha precisa ceder seu único radiologista de Belém para fazer os laudos no navio - o que demonstra uma carência na região, apesar do esforço dos militares.
Maria Rita Tavares, de 42 anos, foi com a família toda ao navio. Ela passou pela mamografia e o marido, Antonio Daniel, de 52, foi com o neto Mateus, de 10, ao dentista. Daniel teve de arrancar dois dentes - ele já havia perdido cinco. Mateus precisava extrair um, mas ficou com medo.
Ao chegar em casa - uma construção de madeira sobre as águas em um dos braços de rio -, ele seguiu as orientações dos dentistas. Pegou a escova e foi cuidar dos dentes. Agachou na água e começou a escová-los. Sem água encanada, o rio serve para tudo.

Na 'Veneza de Marajó', falta médico e sobra açaí
Em São Sebastião da Boa Vista não há água tratada e no posto de saúde só há 1 médico para os 22 mil habitantes

Aos 96 anos, Iracema Nahum distribui convites para um café a quem passa pela sua porta em São Sebastião da Boa Vista. A casa de madeira, comum na cidade, é convidativa. Quase sem móveis, apenas com redes para dormir, é fresca e um abrigo valioso contra o sol forte da rua.
Iracema diz que viu muitas mudanças nas últimas décadas por ali. Estudou até a 2.ª série, mas seus 11 filhos foram mais longe e são professores, advogados e vereadores. "Minha mãe era pobre, meu pai pobre era. Mas trabalho não é desprezo", diz ela, que fez de tudo para viver.
O filho Humberto, de 50 anos, colhe o açaí no quintal, também comum nas casas. "Aqui consigo quase 10 litros, é só para nós", diz ele, que instala antenas de TV da Sky. Como em praticamente todo o Pará, o açaí é presença forte no cardápio.
Dificuldades. Mas nem tudo é açaí. Sem água tratada, é preciso fazer um longo processo de filtragem. O posto de saúde tem apenas 1 médico para os 22 mil habitantes da cidade e são poucas as opções de exames. "Temos consultório odontológico, mas a cadeira quebrou e está sem material", diz Elma Campos, uma das três enfermeiras.
A pesca é importante, mas a pujança comercial se dá na feira de rua, que vende de tudo, de carne a galinha fresca, CDs e roupas. Nas ruas, a bicicleta tem perdido espaço para as motos e só há quatro carros. Os barcos ainda são os campeões - o trânsito nas águas é intenso entre vilas e cidades.
À noite, o agito é na praça. De um palco na rua, o som é o tecnobrega, típico dali - e a um volume absurdo. No tablado, a faixa lembra onde você está: São Sebastião da Boa Vista, a Veneza de Marajó. / P.S.

Ações também envolvem universitários

As Ações Cívico-Sociais (Aciso) da Marinha no Rio Pará foram as primeiras que contaram com a participação de estudantes ligados ao Projeto Rondon. Criado na década de 1960 e depois abandonado em 1989, o projeto ressurgiu em 2005 - agora com caráter mais educativo que assistencialista e com o objetivo de envolver as universidades.
Ao lados dos marinheiros, oficiais, médicos e dentistas do Navio Auxiliar Pará, um grupo de 20 estudantes também trabalhava nos atendimentos e orientações. São alunos de diversas áreas e todos voluntários.
A estudante de Medicina Karina Ilheu, de 27 anos, diz que já pensa em mudar os planos de vida depois da experiência. "Aprendi a entender as pessoas, os motivos reais para que uma mulher tenha 20 filhos. Aqui não chegam as mesmas informações, são outros parâmetros", diz ela, aluna da Universidade Federal de Santa Catarina. "Quero fazer mais, vou clinicar aqui."
Foram mais de 2 mil orientações sobre temas que vão de cuidados com alimentação a abuso sexual. / PS.

OESP, 19/08/2012, Vida, p. A26

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