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Lula enfrenta crise inesperada

JB, País, p. A3
06 de Out de 2005

Lula enfrenta crise inesperada
Greve de fome do bispo Luiz Flávio Cappio chega ao 11o dia e torna obra no Rio São Francisco tema de discussão nacional

Além dos estragos causados ao governo e ao PT pelo escândalo do mensalão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se vê às voltas com uma crise inesperada. Ao entrar no 11o dia de greve de fome, em protesto contra a transposição das águas do Rio São Francisco, o bispo de Barra, na Bahia, dom Luiz Flávio Cappio, criou um clima de plebiscito nacional sobre a obra, a principal na área de infra-estrutura. Os pronunciamentos de representantes da Igreja Católica mostram uma polêmica interna em torno dos eventuais benefícios da transposição. Os movimentos sociais do Nordeste também estão divididos enquanto as organizações empresariais, em sua grande maioria, aprovam o projeto.
Na noite de ontem, os esforços do Planalto para tentar aplacar a crise pareciam dar os primeiros resultados. O ministro das Relações Institucionais, Jaques Wagner, que parte hoje para Cabrobó, em Pernambuco, para se encontrar com o bispo, informou na noite de ontem ao presidente do Senado, Renan Calheiros, que o governo fará uma proposta de prolongar o debate e de fornecer mais recursos para a revitalização do rio. Estas seriam as principais reivindicações de dom Luiz.
Ontem à noite, a senadora Heloísa Helena (P-Sol) informou que o bispo manterá a greve de fome pelo menos até hoje. Dom Luiz diz que só discute acabar com a greve de fome, depois de receber a proposta de Lula "em mãos, assinada por ele, direitinho".
- O governo está mais preocupado com a repercussão internacional do que comigo. Tudo isso desgasta muito o governo - afirmou o bispo.
Ontem o jornal londrino The Times afirmou que a greve do bispo é um teste severo para o governo, sobretudo pelo fato de dom Luiz ser um antigo partidário de Lula.
Pela primeira vez desde que iniciou a greve de fome, o religioso reclamou ontem de dores no corpo e de dificuldades para respirar. Uma equipe da secretaria de Saúde de Cabrobó não detectou problemas graves. O bispo já perdeu quatro quilos.
- É um pessoa preparada, que ainda vai agüentar bem - disse o médico Francisco Matias Figueiredo - que o atendeu
A casa de Dom Luiz Flávio Cappio, que tem 59 anos, se transformou em ponto de romaria nos últimos dias.
Essa é a segunda tentativa do governo de interromper a greve de fome de Dom Flávio Cappio. O presidente Lula enviou uma carta ao bispo no último sábado, por meio do assessor Silvino Heck, argumentando que as obras no São Francisco ainda não começaram e que o governo, no momento, está concentrado nos projetos de revitalização do rio.
Com a permanência do impasse e a repercussão que a greve de fome obteve até no exterior, cogitou-se inclusive uma visita pessoal de Lula a Dom Luiz Flávio Cappio. Além disso, os boatos sobre o adiamento da obra começaram a surgir.
- O que não pode é o homem morrer. É preciso mais conversa - afirmou ontem o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Jorge Armando Félix, durante reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), dando o tom da preocupação no Planalto com o protesto do bispo.
A pressão contra a obra, desencandeada pela atitude do bispo, chegou às portas do Palácio. Na terça-feira, cerca de 30 manifestantes de entidades ligadas à Igreja Católica fizeram protesto na Praça dos Três Poderes, enquanto Lula recebia o presidente de Cabo Verde, Pedro Pires. Também na terça-feira, dez membros da Comissão Pastoral da Terra em Alagoas começaram um jejum em solidariedade ao bispo.
Jaques Wagner rejeitou a hipótese de suspender a obra, como foi solicitado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em carta ao presidente. A liberação do licenciamento ambiental para a obra de transposição está prevista para essa semana.
- O que eu estou levando é uma mensagem de diálogo. É algo que só posso transmitir a ele. Vou ver se a gente acha um denominador comum para estabelecer um diálogo sem ameaça à vida do religioso - disse Wagner.
Ele afirmou ainda não considerar a atitude do governo em relação à greve de fome um precedente perigoso para outros projetos polêmicos.
- Vamos ouvir o bispo assim como pretendemos ouvir a população sobre outros projetos.

Igreja se divide sobre o protesto

A greve de fome do frei Luiz Flávio Cappio dividiu a Igreja. Depois do presidente da Comissão Pastoral da Terra se pronunciar a favor do protesto, ontem foi a vez do presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e arcebispo de São Salvador (BA), Geraldo Majella Agnelo, pedir o adiamento das obras. O secretário-geral da CNBB, dom Odilo Pedro Scherer, no entanto, afirmou em nota que a greve de fome até a morte é moralmente inaceitável, porque ninguém ''é senhor da própria vida''.
Do outro lado, os bispos de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte se posicionaram a favor da transposição e disseram que o protesto de Cappio é uma atitude extrema. O arcebispo de João Pessoa, dom Aldo Pagotto, é a favor da transposição.
- No ano 2000, todos os bispos dos quatro estados: Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, firmaram uma posição a favor da revitalização do São Francisco e da transposição - afirmou.
A presidência do Conselho Regional Nordeste 2, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) - que abrange, Alagoas, e três estados diretamente beneficiados com o projeto: Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba - divulgou nota na qual se coloca a favor da transposição do Rio São Francisco e contra a greve de fome do bispo Luiz Flávio Cappio.
O documento defende que o processo seja iniciado ''com a devida urgência, contemplando as necessidades vitais das populações ribeirinhas''. O arcebispo da Paraíba, Aldo di Cillo Pagotto, assina o documento com outros três bispos.
Já o secretário do Conselho Regional Nordeste 3 (Bahia e Sergipe), dom Paulo Romeu Dantas Bastos, bispo de Alagoinhas (BA), disse que apóia a greve de fome ''por ser uma atitude profética, evangélica, de contradição diante de um mundo que valoriza só o lucro''.
- O gesto dele é, sem dúvida, de grande generosidade para com o povo, mas também consciente de que todos nós devemos defender a natureza como um todo - declarou.

O Rio São Francisco e o projeto de transposição
O ambicioso projeto de transposição do Rio São Francisco, considerado estratégico pelo governo Lula, pretende fornecer água a 12 milhões de pessoas, reduzindo os efeitos da seca no Nordeste.

Números que impressionam
O rio atravessa três regiões, banhando os Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, ao longo de 2.700km. Sua bacia hidrográfica, de 634km2, também inclui parte do Estado de Goiás e o Distrito Federal.
Recebe água de 168 afluentes.
O rio sofreu degradação devido ao desmatamento de suas margens, à construção de represas para hidrelétricas e ao despejo de dejetos industriais e das redes de esgotos de inúmeras cidades. Seus peixes praticamente desapareceram.
O plano de transposição
Investimento necessário: R$ 4,5 milhões de reais.
Prevê desviar 26 mil litros de água por segundo do rio para alimentar rios intermitentes e reservatórios em regiões semi-áridas do Nordeste. O governo afirma que, em média, será desviado apenas 1% do fluxo do rio.
As obras incluem a construção de 700km de canais, barragens e estações de bombeamento, para levar a água a 9 milhões de pessoas.
Também prevê a construção de 24 reservatórios para armazenar a água.
O governo espera gerar 5 mil empregos com as obras, além de incentivar a produção agrícola e melhorar a navegação no rio, otimizando o transporte de grãos.
Aqueles que criticam o projeto dizem que o rio será prejudicado pelas obras, que o meio ambiente será afetado e que só os grandes agricultores serão beneficiados.

Campanha a favor do projeto

Entidades e órgãos públicos favoráveis à transposição das águas do Rio São Francisco reagiram à greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, 59 anos, e iniciaram na região uma campanha em favor da execução imediata do projeto.
Ontem, faixas com frases de apoio à transposição foram instaladas nas avenidas de Cabrobó. Carros de som e veículos particulares circulam nas ruas conclamando a população a apoiar a campanha.
Uma nota assinada por dez prefeituras e Câmaras Municipais, além de entidades ligadas ao comércio, sindicatos e grêmios estudantis do sertão pernambucano, afirma que o rio não será prejudicado e que o projeto ''é benéfico e necessário para atender as necessidades do sertanejo''.
De acordo com o documento, a transposição criará perspectivas de desenvolvimento sustentável. O grupo anunciou a realização de um ato público no próximo sábado, na cidade de Custódia (PE), com representantes de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, estados beneficiados pelo projeto.
- A atitude do bispo foi exagerada. Talvez ele tenha uma visão equivocada da transposição - disse o prefeito de Cabrobó, Eudes Caldas (PTB). Segundo ele, 250 cidades receberão recursos para saneamento básico, se o projeto for executado.
O religioso disse que não é contra a realização das obras de saneamento e revitalização. Segundo ele, essas obras poderiam ser executadas de forma independente.
O Comitê Cearense em Defesa do Projeto de Integração do Rio São Francisco - formado por associações de empresários e trabalhadores, indústrias, universidades, movimentos sociais, partidos políticos e prefeituras - se reuniu ontem, em Fortaleza, para oferecer resposta à greve de fome de dom Luiz Cappio.
- Não queremos que o bispo morra de fome, mas também não vamos permitir que cearenses morram de sede - disse o deputado estadual Chico Lopes (PCdoB-CE), que integra o comitê cearense. (FP)

JB, 06/10/2005, País, p. A3

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