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Livro descreve as casas subterrâneas dos índios Kaingang

Amazônia Real - http://www.amazoniareal.com.br
Autor: Katia Brasil
13 de Fev de 2015

O geógrafo Sandoval dos Santos Amparo lançou nesta semana, no Espaço Multifoco, no Rio de Janeiro, "Sobre a organização espacial dos Kaingáng, uma sociedade indígena Jê Meridional", seu primeiro livro que nos traz um estudo histórico e sensível da extinta moradia da etnia: as casas subterrâneas nas quais eles habitaram, até o século 19, em territórios ocupados desde o sul do rio Tietê, em São Paulo, até o rio Ijuí no norte do Rio Grande do Sul.

O livro é resultado da dissertação de mestrado em arquitetura e urbanismo de Sandoval Amparo pela UnB (Universidade de Brasília) entre os anos de 2008 a 2010. Ele é também servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 2004.

Na Amazônia, Sandoval Amparo trabalhou com as populações indígenas do rio Madeira de 2011 a 2013. Ele desenvolveu atividades de fiscalização de terras indígenas, proteção ao patrimônio cultura e elaborou mapas dos povos Coordenação da Funai em Humaitá, que fica no Sul do Amazonas, divisa com Rondônia.

Com índios Tenharim, que vivem no entorno da BR 230, a Transamazônica, o geógrafo foi o diretor artístico do CD "Morongitá: Cantos e Estórias do Povo Tenharim-Kagwahiva", um dos frutos de sua participação na organização do Mbotawa 2013, que é o principal ritual da etnia com cerimônias de casamentos, cantos e danças tradicionais.

No final de 2013, Sandoval Amparo se afastou da Coordenação da Funai de Humaitá em função dos conflitos que ocorreram na região envolvendo os Tenharim. A violência do episódio foi traumática para o geógrafo e lhe obrigou a pedir transferência para o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, onde pretende cursar o doutorado em Geografia na UFF (Universidade Federal Fluminense). Entretanto, o processo de transferência ainda depende da deliberação na Presidência da Funai. Leia o depoimento dele sobre o conflito com os Tenharim.

Autor encontrou os Kaingáng à beira de estrada

Em entrevista à reportagem da agência Amazônia Real, Sandoval Amparo, 33 anos, disse que seu primeiro encontro com os Kaingáng aconteceu pelo trabalho de geógrafo da Funai, quando fez uma visita em abril de 2005 à aldeia Votouro, no norte do Rio Grande do Sul.

"Foi bastante difícil encontrar os índios situados em acampamentos à beira de estradas regionais. As crianças expostas ao frio e tudo mais. O encontro com os índios foi bastante positivo e fiquei feliz em contribuir como 'ambientalista' para a realização dos estudos de demarcação. Infelizmente o processo pouco avançou apesar da minha contribuição e dos demais profissionais envolvidos. É uma medida política. Os conflitos só aumentaram na região", disse.

Falantes do tronco linguístico Jê, os Kaingáng vivem hoje em 38 terras indígenas fragmentadas, muitas delas ainda não demarcadas, entre os Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A população é a terceira maior de indígenas do país. Em 2010 eram 37.470 pessoas, segundo o Censo de IBGE.

No livro "Sobre a organização espacial dos Kaingáng, uma sociedade indígena Jê Meridional", Sandoval Amparo descreve que há mais de 2.500 anos, os Kaingáng desenvolveram amplo domínio territorial e construíram casas subterrâneas para se abrigarem do frio e dos fortes ventos da região.

Essas moradias se constituíram uma das principais referências do grupo, que hoje resiste a invasão de seus territórios por fazendas de grãos, sobretudo trigo, milho e soja, numa das regiões mais produtivas do agronegócio brasileiro, onde ainda lutam pela demarcação de terras.

De acordo com os estudos realizados nos sítios arqueológicos encontrados nas terras Kaingáng, as casas subterrâneas eram construídas pelos indígenas em formas cônicas e circulares, cobertas por palhas, sempre em interflúvios dos grandes rios e em áreas de planaltos com altitude entre 400 m e 1.200 m, longe dos perigos de inundação.

As moradias tinham de 1 m a 2 m de profundidade e diâmetro que variava entre 5 m e 10 m. "A datação provável das habitações subterrâneas indica que tenham predominado na região dos séculos 4 ao 18, quando já são referidos por cronistas e etnógrafos novos registros de habitações", diz o autor.

Casas subterrâneas desapareceram no século 19

Sandoval Amparo afirma que este estilo de moradia foi abandonado pelos indígenas Kaingáng durante o século 19, data dos últimos registros de ocupação das casas subterrâneas. O desaparecimento das moradias coincide com o período, segundo o estudo, da política de colonização da região por imigrantes europeus.

Daí, os indígenas passaram a morar em palhoças e depois em casas similares aos postos indígenas da Funai, isto é, habitações de madeira com telhas de barro ou amianto.

As principais perdas materiais identificadas a partir deste período (da colonização europeia) são o desaparecimento da moradia subterrânea (ou de sua utilização pelos índios) e o abandono da produção cerâmica, ambos diretamente associados à ação colonizadora, que trouxe novos padrões de alimentação e moradia", diz o geógrafo.

Segundo Amparo, apesar dessas perdas, muitas características ancestrais foram mantidas pelos Kaingáng. "Entre elas, a importância do pinhão e do milho na dieta alimentar, o sistema de cacicado associado a territórios específicos, delimitados pelos bosques de araucária (Araucária Angustifólia) que eram manejados e marcados com grafismos característicos dos diferentes caciques, e, principalmente, a organização espacial e os sítios escolhidos para construção dos assentamentos e moradias, sempre localizados nos platôs que formam os interflúvios dos grandes rios do planalto meridional", diz.

Amparo relata também que os indígenas passaram a morar em casas chamadas de palhoças, semelhantes às que habitavam os parentes Jê do Brasil central e setentrional (norte). Neste período, segundo ele, muitos indígenas foram acometidos por gripes e outras doenças, levando a decréscimo populacional, restando os Kaingáng socialmente fragilizados. "No início do século 20 passaram a adotar residências similares aos dos postos da Funai ou arquiteturas similares à arquitetura regional", diz.

Para o geógrafo, a moradia similar ao posto da Funai foi imposta aos Kaingáng sem a preocupação com seus aspectos culturais. "Assim as mesmas afetavam o espaço familiar dos indígenas, geralmente marcado pela contiguidade entre os ambientes, sem divisórias, enquanto a arquitetura indigenista impunha espaços restritos e divididos", diz.

A influência do indigenismo

Sandoval Amparo afirma que o próprio Posto Indígena passou a exercer uma função de controle e a figurar como elemento ordenador da organização dos assentamentos, impondo aos Kaingáng uma nova lógica espacial.

"Em seguida observa-se a restrição territorial, com a restrição da principal característica dos indígenas (a mobilidade), com base na instalação de um clima de ameaças, medo e insegurança. Por outro lado, a arquitetura indigenista foi crucial para a sobrevivência dos Kaingáng, já que mesmo sem um local para o fogo, possibilitava melhor abrigo do que as palhoças", diz o autor.

O autor afirma que a escala de tempo dos índios é muito longa para ser compreendida pelos indigenistas que, segundo ele, geralmente têm perfil pragmático.

"Durante mais de 50 anos, no século 20, os Kaingáng e os índios em geral foram compelidos ao 'uso produtivo da terra', segundo os moldes impostos pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), numa espécie de legitimação da área que lhes havia sido demarcada e que desde sempre, tem sido objeto de contestação por parte de segmentos conservadores da sociedade", diz Amparo.

"Hoje, o paradigma mudou do 'uso produtivo' para a 'preservação' ambiental e cultural. Com isso, várias gerações de indígenas passam a ser vistos como vilões por apresentarem dificuldade de abandonar as práticas ligadas ao paradigma anterior, cujas formas espaciais continuam operantes, por meio das rugosidades", completa o geógrafo.

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), fundado em 1910, foi o antigo órgão indigenista do governo federal, substituído em 1967 pela Funai. A política da SPI era "localizar" os indígenas e transformá-los em "civilizados".

Mobilidade e rugosidade

Editorado pela Multifoco, o livro "Sobre a organização espacial dos Kaingáng, uma sociedade indígena Jê Meridional" recebeu texto de apresentação dos antropólogos e professores da Universidade Federal de Tocantins, André Demarchi e Suiá Omin. Eles dizem que no livro, Sandoval Amparo talhou dois conceitos, mobilidade e rugosidade (conceito que Milton Santos expropria da geomorfologia para uso em Geografia humana), afim de traçar um mapa histórico, arqueológico e etnográfico das transformações do habitar dos Kaingáng.

Para os antropólogos, a mobilidade e rugosidade da organização espacial Kaingáng podem ser entendidas não apenas como uma forma específica de deslocamento no espaço social, mas também como formas de pensamento, resistência e ação. "Mesmo confinados em suas reservas indígenas, resiste entre os Kaingáng uma mobilidade sócio-cosmológica", dizem.

"Sandoval Amparo nos faz compreender a dura história de resistência desse povo diante da investida colonial e de seus desdobramentos nos últimos três séculos, culminando com o atual e contemporâneo modelo de colonialismo do agronegócio capitalista", afirmam Demarchi e Omim.

Já o professor Antonio Carlos Carpintero, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, que orientou Sandoval Amparo durante seu período acadêmico, destaca no prefácio do livro, que "Milton Santos suporta teoricamente a compreensão do espaço. Amparo trabalha as três escalas do espaço Kaingáng: o território, das roças, caçadas e migrações; o espaço da aldeia (comunitário) e o espaço doméstico, familiar, que erige o conjunto de relações sociais no universo indígena. E o faz comparando suas formas originais e as assimiladas da cultura europeia erigida em universal. É, portanto, crítico."

Carpintero conta ainda no prefácio como aceitou orientar o autor do estudo sobre as moradias dos Kaingáng. "Sandoval Amparo então um jovem geógrafo entusiasmado, me aparece, em 2007, em uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, à procura de um orientador para um projeto de mestrado. O aceite imediato resultou de sua ousadia suportada por uma inteligência fina. A evolução foi rápida só limitada pelos prazos e exigências acadêmicas. O resultado aí está".

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