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Livro denuncia drama vivido pelos yanomamis

Jornal do Commércio - Rio de Janeiro - RJ
Autor: Luiz Carlos Lisboa
01 de Abr de 2001

A hipocrisia, as distorções e os crimes contra os índios em geral e os yanomamis em particular foram praticados em nome da ciência antropológica e da medicina

A exploração de minas de ouro e a presença de antropólogos e jornalistas na Amazônia venezuelana e brasileira provocaram uma catástrofe ecológica que vitimou boa parte dos índios yanomamis. Mineradores, aventureiros, cientistas e antropólogos envolveram-se na exploração e no martírio daqueles índios. A denúncia e uma detalhada exposição desse drama são o tema de um livro que está sendo vendido nos Estados Unidos e na Europa - ''Trevas no Eldorado, Como Cientistas e Jornalistas Devastaram a Amazônia'', de Patrick Tierney. A tribo mais estudada da história da antropologia, lembrada imediatamente quando se fala da região amazônica, tem a fama de abrigar os índios mais aguerridos e selvagens da floresta sul-americana. A baixa estatura dos seus homens é atribuída à monotonia de sua dieta milenar à base de peixe, mandioca e arroz. Os yanomamis foram descobertos por Napoleon Chagnon, Jacques Lizot e outros antropólogos, em 1964. Quatro anos depois já estava circulando a obra ''The Fierce People'' (O Povo Feroz) de Chagnon, que vendeu quase um milhão e meio de exemplares nos primeiros meses, ultrapassando o sucesso do clássico ''Maioridade em Samoa'', de Margaret Mead. O segredo do best seller de Chagnon foi sua mistura de sexo, violência e drogas, sob a aparência de estudo antropológico. Agressivos e competitivos, os yanomamis revolucionaram a moderna antropologia de forma tão radical quanto antes os estudos de Franz Boas e de Margaret Meade haviam feito. Para Chagnon, aqueles índios eram a última fronteira da civilização e seu habitat o derradeiro cenário do homem primitivo no mundo. ''Trevas no Eldorado'', de Tierney, é resultado de uma década de pesquisa antropológica, à qual foi adicionada uma forte dose de denúncia ambientalista. Seu propósito principal é demonstrar que Chagnon e outros, juntamente com jornalistas e cientistas, estão repetindo o padrão de comportamento dos colonizadores espanhóis e ingleses no seu saque desenfreado das riquezas naturais da América. A hipocrisia, as distorções e os crimes contra os índios em geral e os yanomamis em particular foram praticados em nome da ciência antropológica e da medicina. Para Tierney, esse drama é parte da história do ''capitalismo cultural'' do Ocidente. Sua obra é estruturada como um livro de mistério. ''Chagnon está na linha de frente da moderna sociobiologia'', diz Tierney, afirmando que ele não mediu obstáculos morais ou de outra ordem para provar seus pontos de vista. Chagnon é o que hoje se chama um psicólogo evolucionista. Para ele, os yanomamis que mais matam seus adversários são exatamente os que lançam mais filhos no mundo, e sua agressividade é menos um fenômeno cultural do que um impulso da seleção natural. Segundo sua corrente, a evolução tem razões que a antropologia tradicional desconhece. Tierney quase convence o leitor de que os críticos de Chagnon têm em boa parte razão. Nas suas várias incursões entre os yanomamis, este usou intimidação e comprou os índios com facões baratos para fazê-los trabalhar e permitir a coleta do seu sangue para uma pesquisa de tipos sangüíneos locais. Tierney acha tudo isso razoável até certo ponto, e garante que não há nada de pessoal nas críticas que faz a Chagnon, mas, em abril de 1995, ele e Leda Martins escreveram um artigo no The New York Times acusando duramente o antropólogo, que afirmava estar associado a um rico dono de minas na Venezuela. Por fatalidade, as minas desse senhor estão na área venezuelana dos yanomamis. Patrick Tierney começou a estudar os yanomamis em 1989, quando esses índios já estavam envolvidos na guerra do ouro na Amazônia. Mineradores entravam e saíam da região, sem qualquer controle das autoridades. Helena Valero, mulher branca que viveu meio século entre os indígenas daquela região, dá depoimentos sombrios sobre a disputa de interesses por lá. Depois de um longo período de paz que terminou em 1956, começou a violência. Entre outros conflitos, o antropólogo Burquelot enlouqueceu e tentou matar o antropólogo Jacques Lizot. Há muito tempo, os europeus tinham introduzido a banana na Amazônia, e os yanomamis a cultivaram em seu território a partir de 1800. Hoje eles são o único povo que pratica essa monocultura no mundo. Porque alimentaram-se insuficientemente por muitos séculos, os yanomamis são os menores índios do Novo Mundo. Somente os pigmeus ituri, da África Central, são menores que eles. Mas os ituri são muito mais felizes. Vivendo em grupos separados, sem uma autoridade central, o último chefe índio yanomami foi o célebre Ajuricaba, rei de toda a nação por volta de 1720, antes do grande massacre levado a cabo pelos portugueses. Em 1941, pela primeira vez um avião sobrevoou aldeias da região, e os índios imaginaram que estavam vendo Omawe, o Criador. A mulher branca Helena Valero, que foi casada com um índio local, dá detalhes dessa conquista. Seu marido Fusiwe foi quem trouxe o sarampo para as aldeias yanomami depois de visitar acampamentos abandonados durante a guerra pelos americanos, nas margens dos grandes rios na floresta. Os yanomamis foram devastados pela doença, que depois tornou-se endêmica. Em 1968, o célebre geneticista James Deel, quase idolatrado por Chagnon, usou nos índios uma vacina que havia sido condenada por médicos europeus como perigosa. Para Tierney, ele fez dos yanomamis cobaias humanas. O fato é que uma nova epidemia abateu-se sobre os índios da região, e subdividiu ainda mais aquele povo em grupos isolados. Embora seja um livro recente, ''Treva no Eldorado'' já tem uma história de prêmios, de desmentidos indignados e de processos. Muitas de suas denúncias parecem ter fundamento, mas vários dos seus argumentos parecem remanescentes da Guerra Fria, por sua linguagem apaixonada e pelo quixotismo dos seus argumentos. A ele, como a Chagon e Deel, podem ser aplicados os argumentos do livro de Derek Freeman, Margaret Mead em Samoa, para quem a célebre antropóloga pintou a vida em Samoa a partir de uma projeção de suas fantasias utópicas. Nos últimos 40 anos, aliás, os especialistas e interessados nos estudos antropológicos tornaram-se um tanto céticos a respeito da objetividade da sua disciplina. O ''efeito do observador'', segundo o qual a mera presença de uma fita gravadora ou de notas sendo tomadas por estranhos entre povos ditos primitivos, alteram basicamente seu comportamento e sua realidade. Os yanomamis já completaram três décadas de convivência com intrusos. Agora é difícil saber se ainda resta alguma coisa neles de sua verdade original. ''Trevas No Eldorado - Como Cientistas E Jornalistas Devastaram A Amazônia'' Editora W. W. Norton, 416 págs., R$ 73,51.

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