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LINDBERG: CARA PINTADA, CARA-PÁLIDA OU CARA-DE-PAU?

Diário do Amazonas-Manaus-AM
Autor: José Ribamar Bessa Freire
02 de Mai de 2004

Dois irmãos prenderam uma raposa, pensando em criá-la. Ela, muito esperta, fugiu. Eles foram procurar os rastos, mas o chão estava limpinho. "Como é que ela pode ter desaparecido sem deixar rastos?" - perguntaram, intrigados. Ai, eles viram uma terra mexida. Descobriram que a raposa havia furado a terra, como um tatu. Então, cavaram e cavaram, seguiram o buraco por todo o lavrado, chegando nas serras, onde encontraram uma rocha dura. Viram a raposa tentando furar a rocha, mas como era de ferro, ela ficou muito cansada. Aí, eles conseguiram, finalmente, agarrá-la.

Depois disso, o mundo começou a mudar. Os dois irmãos mataram e cortaram a raposa em três pedaços. Esses pedaços viraram pedra. De dentro das pedras, começou a sair água, que se enfiou pelas rachaduras da serra e se espalhou pelo lavrado, formando um igarapé. Isso foi há muito tempo, mas até hoje, ainda estão lá pra quem quiser ver: a caverna, as três pedras enormes, o igarapé, as serras vizinhas e a maloca. Por isso, o igarapé se chama, justamente, Igarapé da Raposa; as serras são Serras da Raposa, e a maloca, Maloca da Raposa.

Essa história aqui resumida vem sendo transmitida há muito tempo, de geração em geração. Foi contada no final do século XIX ao tuxaua Zeca Viriato pelo seu avô. O tuxaua, por sua vez, repassou pra seu filho mais velho, Gabriel Viriato Raposo, que nasceu lá, na Maloca da Raposa, por volta de 1920. O padre Sabatini Silvano ouviu a narrativa da boca do Gabriel em 1965, gravou e publicou tudo no livro "Ritorno alla maloca", editado em Bolonha, na Itália, em 1973. De lá foi retirada a versão, adaptada para o leitor do Diário do Amazonas, em maio de 2004.

O mapa oral da 'Raposa'

Numa sociedade oralizada, o registro oral equivale a uma escritura registrada em cartório. No caso de Roraima, as narrativas orais constituem uma espécie de mapa do território habitado, desde tempos imemoriais, pelos índios, o que é reforçado pelos vestígios arqueológicos. Se fizermos as contas, o mapa oral da Maloca da Raposa é mais velho que a soma das idades das quatro avós do deputado Lindberg Farias (PT/RJ), do senador Delcídio Amaral (PT/MS) e de todos os deputados e senadores que aprovaram, na última terça-feira, os relatórios dos dois petistas, propondo rasgar o mapa e esquartejar a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, localizada no nordeste de Roraima.

O lavrado, por onde a raposa fugiu, é a planície inundável com muito pasto natural, cobiçado hoje pelas fazendas de gado e pelos plantadores de arroz; as serras, aonde ela chegou, integram o Maciço das Guianas, que despertam atualmente a ambição dos garimpeiros em busca de ouro e diamante. Essas duas regiões constituem o território onde havia uma numerosa população antes da chegada do branco, habitada hoje por cerca de 15.000 índios Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona.

Os viajantes europeus e nacionais que visitaram a região desde o período colonial foram unânimes em testemunhar que os índios que aí viviam eram alegres, gostavam muito de festas, cuja duração ia até a última cuia de pajuaru, celebrando seus rituais, cantando e dançando. Criaram uma literatura oral refinada, que acabou enriquecendo a literatura nacional, inspirando o movimento modernista e contribuindo para a trama de obras pioneiras como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Cobra Norato, de Raul Bopp, entre outras. Este último ficou maravilhado quando descobriu os mitos indígenas:

"Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio."

Uma proposta indecente

Essa literatura oral, veiculada quase sempre em línguas indígenas e ultimamente em línguas européias, foi em parte recolhida por viajantes e estudiosos, entre os quais o inglês Everard Im Thurn (1878), o francês Henri Coudreau (1883), o alemão Theodor Koch-Günberg (1911-192), o norte americano Hamilton Rice (1924-1925), o suíço Alcuíno Mayer - um beneditino que viveu mais de 20 anos com os índios. Centenas de narrativas, produtos da fantasia e da criatividade coletivas - como essa que conta a origem da Maloca da Raposa - foram coletadas e publicadas, fazendo circular saberes e se constituindo em fonte inesgotável de beleza e de gozo estético.

Toda essa literatura, essas línguas, esses saberes estão agora ameaçados, porque os índios que os guardam podem perder a terra, que lhes permite sobreviver e reproduzir suas culturas. O Senado e a Câmara aprovaram relatórios que propõem decepar cerca de 45% do território indígena, uma parte destinada aos arrozeiros que grilaram as terras, a outra para sede do município de Uiramutã, criado ilegalmente em 1997 para servir de base de apoio ao garimpo e, finalmente, uma faixa de terra de 15 quilômetros ao longo da fronteira com a Venezuela e Guiana para "resguardar a soberania nacional".

O mais grave nessa história é que os dois relatores que fazem essa proposta indecente não são parlamentares do PFL (viche! viche!), um partido filhote da ditadura militar, com uma atuação política marcada tradicionalmente contra os interesses populares. Não! Eles pertencem ao Partido dos Trabalhadores, que tantas esperanças despertou nos setores oprimidos da sociedade brasileira, entre eles, os índios. O próprio presidente Lula, que devia homologar a demarcação da terra indígena em áreas contínua, adiou a sua decisão. Se ele ouvir os dois parlamentares do seu Partido, os índios estão fritos. E o Brasil, com sua sociodiversidade reduzida, ficará mais pobre.

A segurança nacional

Estou tentando entender, leitor, por que um deputado federal e um senador, ambos do PT, prejudicam um dos setores mais frágeis da sociedade brasileira, que vem sendo brutalizado há quinhentos anos? Por que prejudicam o Brasil, empobrecendo-o? O que é que o PT ganha em propor que se cometa um crime contra a cultura brasileira e contra os índios, usurpando suas terras, legalizando a grilagem dos fazendeiros e os caminhos dos garimpeiros? Quais são os argumentos que apresenta para justificar tal posição?

Não li nenhum dos dois relatórios, na íntegra, mas acompanhei, como todo mundo, as justificativas do deputado Lindberg Farias, publicada nos principais jornais do país. Ele alega que 1,67 milhão de hectares é muita terra pra pouco índio, que Roraima vai ficar sem uma parte importante do seu território, e que os índios tem de ser retirados da área de fronteira, porque "falam a mesma língua dos índios da Venezuela, constituindo um único povo, uma única nação, o que afeta a soberania nacional".

Esse tipo de 'argumento' é cretino e inaceitável, porque trata os índios como "inimigos da pátria". Omite que na área de fronteira, além das terras indígenas, há também muitas grandes fazendas particulares, pertencentes a poucos indivíduos recém-chegados, o que certamente lhes confere certos poderes e direitos sobre aquele pedaço de chão. Por que, então, Lindberg não diz que a propriedade privada nessa área afeta a soberania nacional? Por que não discute que é muita terra para um único fazendeiro? Por que, nesse caso, não fala que o Estado de Roraima fica desfalcado e diminuído?

Lindberg omite também que os índios - ao contrário dos fazendeiros - não são os donos da terra, mas apenas detém a sua "posse permanente". De acordo com a Constituição, as terras indígenas são "bens da União", ou seja, o Estado exerce plena soberania sobre elas. Portanto, as terras indígenas não colocam em risco a segurança nacional, nem "diminuem" o tamanho do Estado de Roraima.. Lindberg agride a nossa inteligência ao ressuscitar argumentos usados pela ditadura militar, que foram ridicularizados em todo o país. Nenhuma pessoa honesta, de bom senso, com capacidade de raciocinar, acredita que 15 mil índios desarmados, pacíficos e de boa índole possam ameaçar a segurança nacional.

Depufede cara-de-pau

Depois de, por má-fé ou por burrice, confundir os conceitos elementares de 'estado' e 'nação', Lindberg defende os fazendeiros e plantadores de arroz, que estão dentro da terra indígena - coitados! - porque foram incentivados a ocupar a área pelo próprio governo e, portanto, não podem ser expulsos assim da noite pro dia, é preciso garantir os direitos que adquiriram, as benfeitorias que fizeram, da mesma forma que os moradores na sede do novo município devem também ser protegidos pelo Estado, porque afinal todos eles são brasileiros.

Não existe nenhum argumento - NENHUM - que justifique tomar as terras dos índios. A Constituição brasileira é bem clara, quando considera "nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas". Se Lindberg está tão sensibilizado com os prejuízos dos plantadores de arroz, que proponha então uma boa indenização a eles, de preferência descontada mensalmente dos salários dos parlamentares. Mas que não obrigue os índios a pagar mais uma dívida, que eles já pagaram durante cinco séculos.

Lindberg, ex-presidente da UNE em 1992-1993, surfista que montou na onda do movimento dos 'caras-pintadas' para se eleger deputado federal, na realidade não passa de um cara-pálida, que quer mostrar serviço aos que tem grana e poder. Enquadra-se naquela categoria criada pelo saudoso Stanislaw Ponte Preta, que chamava de "depufede" os deputados federais oportunistas, que usam o mandato em benefício próprio e não da população que os elegeu.

O depufede Lindberg, ex-cara-pintada, quer ser prefeito de Nova Iguaçu, aqui no Rio de Janeiro. Para isso, mancha a história da UNE, aliando-se com o que existe de mais podre na sociedade brasileira. Vai pagar caro por esse relatório contra os índios. Periodicamente, dou aulas em cursos pré-vestibulares para negros e carentes em Nova Iguaçu. Prometo aos meus amigos Makuxi e Wapixana - Terêncio, Euclides, Clóvis, Waldir, Valdemar e tantos outros - que infernizarei a vida desse depufede, panfletando lá onde ele vai pedir voto, para mostrar sua cara despintada, que revelou a cara-de-pau de um cara-pálida oportunista. Como diria o finado Teodoro Botinelly, pau nele, companheiros!

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