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Lideranças indígenas do rio Tiquié fortalecem aliança com povos do rio Pirá-paraná, na Colômbia

ISA-São Paulo-SP
Autor: Aloisio Cabalzar.
18 de Mai de 2006

Grupo de vinte representantes de organizações indígenas do rio Tiquié, no Alto Rio Negro, Amazonas, realiza viagem de três semanas pela região colombiana do rio Pirá-paraná e renova planos de cooperação transfronteiriça entre povos do noroeste amazônico.

Um grupo de vinte representantes de organizações indígenas do rio Tiquié, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, fez em março passado uma viagem de três semanas pelo rio Pirá-paraná, na Colômbia, para visitar seis comunidades indígenas do outro lado da fronteira e renovar os planos de cooperação e aliança entre os povos do noroeste amazônico. O grupo foi composto por membros das etnias Tuyuka, Tukano e Desana, entre lideranças, professores e alunos de escolas indígenas. Eles representaram a Associação Escola Indígena Tuyuka Utapinipona (AEITU), a Associação Escola Indígena Tukano Yupuri (AEITY), a Associação das Tribos Indígenas do Alto Rio Tiquié (ATRIART), Associación de Autoridades Tradicionales Indígenas de la Zona Tiquié (AATIZOT).

O Instituto Socioambiental acompanhou a expedição, que retribui o encontro realizado em abril de 2004, quando quase trinta lideranças e pesquisadores indígenas do Pirá-paraná, junto com assessores da Fundação Gaia Amazônica, da Colômbia, estiveram no povoado tuyuka de São Pedro, no Alto Tiquié. As principais etnias que habitam a região do Pirá-paraná são Makuna, Barasana, Tatuyo e Taiwano. A idéia que motiva esse movimento de aproximação é a preocupação comum com o futuro da região - uma das mais preservadas do ponto de vista ambiental de toda a bacia amazônica - e os desafios que os povos indígenas de ambos os lados da fronteira têm pela frente. A educação indígena e o manejo ambiental estão entre as principais estratégias comuns de trabalho, a partir das quais surgem outras questões relevantes, como a transmissão de conhecimentos entre as gerações, pesquisa indígena e intercultural e saúde.

Viagem pelo rio Pirá-paraná: movimento de aproximação entre povos com estratégias comuns

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Pirá-paraná e Tiquié são dois rios grandes, situados, respectivamente, nas bacias do Uaupés (e Negro) e Apapóris (e Japurá-Caquetá). Mas estão relativamente próximos espacialmente, havendo diversos caminhos que ligam o alto Tiquié com diferentes afluentes do Pirá, sempre usados por seus moradores; pelos brancos, em alguns momentos, desde o período colonial. Em comum, há uma região de lagos e chavascais nas nascentes de formadores tanto do Tiquié quanto do Pirá, chamado Ewura, de expressivo significado na geografia xamanística desses povos, e que pretendem manejar de forma conjunta, uma oportunidade de cooperação concreta entre as organizações indígenas e os conhecedores ("los tradicionales", como dizem na Colômbia) dessas duas áreas.

A população de ambos os rios é composta por grupos da família lingüística Tukano Oriental: no Tiquié predominam os Tukano, Tuyuka, Desana e Bará; no Pirá, os Makuna, Barasana, Tatuyo e Taiwano. Todo o Pirá está situada em território colombiano, assim como uma parte do Tiquié, mas a maior parte deste está no Brasil. A história de contato e interferência das sociedades nacionais é bem diversa em cada caso. Em certa medida, podemos atribuir ao longo (quase um século) e intenso período missionário, as mudanças ocorridas nas comunidades do Tiquié, sobretudo em sua vida ritual; algo que ocorreu de forma mais intermitente e recente no Pirá, com menor impacto nessas práticas.

A viagem

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Começou no Tiquié. Todos vindos da parte brasileira desse rio se juntaram em Pupunha (primeira comunidade do Tiquié colombiano); daí seguiram até a cabeceira desse rio, de onde sai um varador para o Pirá-paraná, passando por seus afluentes Timiña e Colorado (onde o grupo parou por um dia na comunidade de Villanueva). Uma vez no Pirá, foram visitadas cinco comunidades: Puerto Ortega, onde se chegou pelo caminho; de lá subiram o rio até Hena, começo do terrítório dos Tatuyo; descendo novamente o rio, paramos em Moawi, onde moram famílias barasana e tatuyo; daí continuaram rio abaixo, até Sonaña, centro atual dos Taiwano; em seguida, San Miguel, maior povoação barasana, já no médio Pirá; por último, chegaram a Piedra Ñi, região dos makuna e início do baixo Pirá. O retorno ao Tiquié se fez pelo igarapé Komeña, seu afluente Cunuri e daí para o alto Castanha.

Basicamente, os Tatuyo habitam no alto Pirá, os Barasana no médio e alguns afluentes importantes (Colorado, Piedra, Tatu), e os Makuna (que se dividem em Yeba-masã e Ide-masã, dois grupos distintos mas que falam a mesma língua) no baixo Pirá, incluindo outros afluentes importantes (Komeña, Japu e Toaka). Os Eduria ou Taiwano formam um grupo que está em meio aos Barasana e tem sua língua ameaçada pelo predomínio daqueles. Historicamente, os Tatuyo e Eduria teriam chegado ao Pirá através do Tiquié, enquanto os Makuna e Barasana vieram do Apapóris (onde deságua o Pirá); assim contam em suas narrativas de origem.

Nesse itinerário, foi possível conhecer um pouco a realidade e a geografia do Pirá, entender melhor as relações com o Tiquié e como elas podem ser ampliadas e dinamizadas. Para o pessoal do Tiquié, foi uma experiência que gerou admiração e muitos aprendizados, tendo sido um estímulo para pensar sua própria história e a situação atual de sua gente e de suas comunidades.

Práticas vivas

Uma das impressões dominantes entre aqueles que foram do Tiquié é a de que entre os grupos do Pirá-paraná se mantêm vivos várias práticas e conhecimentos, especialmente os ciclos rituais com danças cerimoniais e benzimentos de proteção que os acompanham, as narrativas cerimoniais, a iniciação masculina com flautas sagradas, enfim, todo um conjunto de procedimentos de manejo do mundo e das relações entre seus seres. Em boa medida, essas práticas foram sendo abandonadas no Tiquié no decorrer do século passado, sobretudo nos trechos abaixo de Pari-Cachoeira.

Pedro e Adão, do Tiquié, se preparam para a festa em Hena, alto Pirá-paraná

Ver como essas práticas se realizam foi uma experiência inédita para os jovens e mesmo para os adultos de meia-idade Tukano e Desana, do médio Tiquié, que participaram da viagem. Pela primeira vez, por exemplo, tentaram acertar o passo das danças dos velhos (kapiwayá), tomaram caapi (yagé, como dizem na Colômbia), inalaram pó de tabaco, e tiveram que vomitar água no dia seguinte, na beira do rio, para limpar o estômago e poder se alimentar sem fazer mal para o corpo. Segundo Robinelson, aluno da Escola Tukano Yupuri, morador da comunidade Santa Luzia, "a cultura está inteira, com ela mesma que eles estão vivendo, é melhor do que aqui, porque lá tem mais cultura, as crianças, todos os filhos aprendem dentro da maloca". "Para mim", diz João Bosco, professor da AEITY, "a maloca já é uma escola e, comparando com nossa região do Tiquié, isso a gente não tem". Ele diz que nas comunidades visitadas é mais fácil de buscar o conhecimento. "Pelo o que eu vi, os conhecedores nunca tiveram essa escola do branco, eles têm essa sabedoria que aprenderam dentro da maloca com os pais. Isso me impressionou bastante: uma pessoa indígena que não estudou na escola tendo essa sabedoria, mais do que outras pessoas que passaram dentro da escola".

Os Tuyuka, do mesmo modo, sentiram a energia das malocas no convívio cotidiano e nas cerimônias. Mateus, professor da Escola Tuyuka, analisa que os povos do Pira têm coisas que já se perderam no lado brasileiro da fronteira e que isso é uma porta aberta para futuros intercâmbios e perspectivas para os jovens do Tiquié. "Podemos começar a incentivar a garotada a viajar e ter parte de sua formação no Pirá", sugere. Marcos, o único aluno dessa escola tuyuka presente na excursão, concorda e diz que gostaria que tivessem vindo mais alunos e alunas, colegas dele. Adão, vice-coordenador da AEITU, afirma que essa aproximação não pode parar por aqui. "Tem que continuar todo o tempo, tem que marcar e ficar só nesse rio Pirá, para podermos aprender as coisas que eles têm, ficando mais tempo."

Fachada da maloca de Uriel, barasana, em Moawi

O professor Bosco revela uma das motivações para buscar essa "tradição". Ele atribui à falta de benzimentos e proteção xamânica dos conhecedores, os freqüentes desentendimentos e brigas, amiúde com feridos, que se vê hoje nas comunidades tukano do médio Tiquié quando se bebe o caxiri. "Lá não tem nada de brigas, confusão, porque lá eles benzem tudo, antes da bebida, antes da festa, depois da festa. Tudo isso, pra mim, é o controle que o kumu tem da situação. Se o kumu benzer bem, mesmo que o jovem seja atrevido, ele fica calmo. Por isso que ele benze tudo", observa. "O benzimento é muito importante na festa, é o mais importante, porque o lugar bem benzido, casa bem benzida, ela não traz problemas. Mesmo que a bebida seja forte, mesmo quando chega muita gente, mesmo assim, se a casa é bem benzida, bem protegida, bem preparada para a festa pelo kumu, ela não traz problema". Kumu, ou kumua, no plural, é a palavra tukano de uso comum na região do Uaupés e Pirá-Paraná que designa um dos especialistas xamânicos dos povos Tukano Orientais, responsável pelos benzimentos que acompanham o ciclo de vida da pessoa, desde seu nascimento.

"A escola está tirando sua força"

O pessoal do Pirá freqüentemente se refere à maloca, lugar central na vida ritual desses povos, como sua escola, lugar privilegiado da formação dos jovens. Distintamente do que ocorreu no Brasil, lá as malocas nunca foram abandonadas, embora tenham deixado de ser, nos povoados formados a partir dos anos 60 pelos missionários, a moradia coletiva. Nessas comunidades maiores, ela convive com as casas menores, familiares, e com as várias benfeitorias construídas com recursos do governo, como escolas e postos de saúde.

Mas a maloca como escola das novas gerações passou a ter a concorrência da escola oficial que, no caso colombiano, parece mais estruturada e com mais recursos que no Brasil. Isso vem sendo um problema difícil de lidar por parte das lideranças indígenas, uma vez que o sistema educacional daquele país tem se mostrado pouco flexível a mudanças, que são necessárias para que elas passem a ser escolas indígenas e autônomas. No Brasil, no vazio deixado pela decadência das escolas salesianas, aliado a um certo descaso dos agentes oficiais, o sistema escolar se mostrou permeável a novas idéias e, pouco a pouco, mas com intensidade, está sendo controlado pelas comunidades indígenas, principalmente em alguns contextos, como dos Tuyuka do alto Tiquié e dos Tukano do médio curso desse rio. Esse contraste tem sido um interessante tema de discussão entre lideranças dos dois rios.

Segundo Higino Tenório, coordenador da Escola Tuyuka e principal divulgador da idéia de escola indígena no Tiquié, a cultura no Pirá ainda está muito forte. "Mas a escola está sendo um entrave e precisa ser revista e moldada de acordo com os interesses deles, bem pensada, para futuramente poderem manter sua cultura. Muitos alunos já não estão se preocupando mais com suas tradições, crenças, festas, rituais, estão se distanciando, e isso pode enfraquecer se eles não tomarem uma atitude mais séria, mais politizada, definirem sua política cultural e educacional para poder manter viva a cultura".

Um exemplo das contradições que a escola oficial está trazendo para a vida no Pirá é relatado por Inácio Valencia, velho conhecedor makuna: "na cerimônia de jurupari existem certas normas consagradas na cultura, e essas normas vem sendo violadas", diz ele. "Em que sentido? O menino está um dia em uma cerimônia, um jurupari ou um dabucuri, apenas termina e ele entra no colégio. E o que acontece? Encontra mulheres em menstruação, come comida assada, e quando chega à maloca, para tomar caapi, para dançar, já começam a revoltar-se, a falar grosserias, a brincar. Alguns conhecedores que temos aqui, o são porque cumpriram as normas". Para evitar isso, a Associación de Capitanes y Autoridades Tradicionales Indígenas del Pira Paraná (ACAIPI) propôs uma mudança no calendário escolar, adiando o começo do ano letivo de março para maio, depois da temporada de cerimônias e iniciação dos jovens, o que ainda não foi aceito pelo governo colombiano e gerou um impasse nesse ano: em abril, muitos jovens ainda não haviam comparecido aos colégios.

Cenas da festa da pupunha, dança de máscaras, em Piedra Ñi, povoado makuna, no baixo Pirá

A esse respeito, durante uma reunião final da viagem em Piedra Ñi, Ernesto Ávila, da equipe coordenadora da ACAIPI, perguntou "qual conhecimento de fora também aporta à vida atual? Os pais estão tendo que decidir quantos filhos e com que objetivo são enviados para a escola, e quantos e porque ficam em casa, na escola tradicional. Quando falamos de articular, nos parece muito difícil, porque os sistemas são completos, como um corpo, não se pode articular um braço a mais, seria errado. Temos os companheiros tuyuka que já experimentaram um processo educativo em sua escola, assim como os companheiros tukano. Que venham demonstrar, complementar. Já criamos um espaço crítico sobre essa problemática, já está suficientemente identificada."

Higino analisa que, "embora tenham conhecimentos, dos pajés e kumua, o espaço da escola está confrontando com essa força, então eu creio que a escola tem que ser definida pelos povos indígenas, não por outro povo, porque o outro povo tem sua cultura, esse é o mal da escola. Logo, se continuar assim, daqui a cinqüenta anos, se não definirmos nossa política, nossas decisões, nossa autonomia, vamos acabar perdendo. É importante que definam suas políticas de educação".

O manejo conjunto do mundo

Outro assunto recorrente durante essa viagem, que vem sendo cada vez mais discutido e desenvolvido pelas organizações indígenas de ambos os rios, é o manejo ambiental. No Pirá, com a realização das cerimônias que fazem parte do calendário anual, há uma permanente mediação entre seus povos, através dos conhecedores - kumua e pajés -, e as outras gentes que povoam o mundo. Há uma atividade permanente de manejo xamânico do mundo, através dos benzimentos de proteção realizados nesses rituais e no dia-a-dia, que são acompanhados de regras de dieta e comportamento. As restrições à pesca e caça em algumas áreas - locais associados a episódios ocorridos na origem de seus diversos povos - é tema constante nas reuniões da ACAIPI e no trabalho dos pesquisadores indígenas. No Tiquié, ao lado do manejo xamânico, vêm sendo desenvolvidas iniciativas de monitoramento e estudo de alguns recursos mais importantes e pressionados pelo uso permanente, para posterior manejo sustentável dos mesmos. Isso vem sendo feito com os peixes, discutindo-se as formas predatórias que vêm causando sua escassez e como substituí-las, sem comprometer o sustento de seus moradores.

Faustino (taiwano) explica calendário para visitantes do Tiquié, em Sonaña

Há interesse de uns e outros pelo que tem sido feito sobre esse tema. Com a viagem ao Pirá, o grupo do Tiquié atentou para outras possibilidades de trabalhar o calendário ecológico-econômico, em sua interface com o ciclo ritual, também com as narrativas de origem como meio de pensar seu meio ambiente. Por sua parte, os povos do Pirá têm percebido uma crescente escassez de pescado, e começam a aventar outras formas de manejo que se somem ao tradicional. "Essa aproximação precisa ser bem programada entre ambas as partes, mas é muito importante", avalia Higino Tenório. "O pessoal está animado em fazer mais intercâmbios, eu mesmo tenho interesse em acompanhar a escola deles." Roberto Marín, da coordenação da ACAIPI, pediu aos visitantes do Tiquié, em San Miguel, que "comuniquem para que todos os tradicionais trabalhem tendo uma só visão, pensando no bem-estar comum dos indígenas. Todos nós perseguimos o bem-estar 'de la gente'."

Roteiro da viagem

A expedição para o Pirá começou pelo Tiquié, com uma semana no povoado de Pupunha, primeiro no lado colombiano desse rio, onde foi feita uma oficina sobre benzimentos relacionados ao nascimento de uma criança. Essa atividade faz parte de um conjunto de iniciativas que buscam uma maior integração entre as organizações indígenas de ambos os países, no âmbito desse rio, cortado pela fronteira desde a década de 1920. Essa oficina foi encerrada com uma dança (chamada Dasia-basa, dança do camarão) dos tuyuka e benzida por um bará, foi uma das cerimônias de proteção que fazem parte do ciclo anual.

Depois desses dias em Pupunha, seguimos rio acima. Passando por Trinidad (o maior povoado e centro escolar do Tiquié colombiano) fomos pernoitar em Sobo Taro (lago de espuma), uma comunidade bará. No dia seguinte chegamos na boca do varador para o Pirá-paraná, local chamado Musa Tuku (poço de urucum), onde já existiu uma grande maloca dos bará. Daí seguimos até uma casa abandonada situada nesse caminho que liga a cabeceira do Tiquié ao Caño Colorado (Okosõa), afluente do Pirá, onde paramos para descansar e passar a noite. No outro dia, depois de algumas horas de caminhada, chegamos na comunidade de Villanueva, situada no Colorado. Esse igarapé, como o nome sugere, tem suas águas meio avermelhadas. O Tiquié, e os igarapés Colorado, Japu e Inambu (esses dois, afluentes do Papuri), tem suas nascentes situadas em área de buritizais e lagos chamada Ewura, muito significativa na geografia xamanística dos povos que habitam essa região - as águas desses rios são consideradas como sumo das frutas silvestres que aí existem. Villanueva está no alto Colorado, tem sua população formada por barasana e bará, há duas malocas e várias casas menores, tem um posto de saúde e uma pista de pouso. Ficamos na grande maloca de Firmiano (pai de Faustino, liderança local), onde à tarde conversamos com o pessoal da comunidade, que relatou a origem dessa comunidade e de sua população e respondeu perguntas sobre a disponibilidade e o manejo dos recursos naturais, como peixe e caça.

No dia seguinte (13/03), por volta do meio dia, o grupo seguiu pelo caminho até a beira do Pirá-paraná, na altura do povoado chamado Puerto Ortega. O caminho estava seco, depois de dois dias sem chuvas, e muito bem conservado, o que permitiu percorrê-lo em três horas e meia, sem dificuldades. O pessoal dessa comunidade já nos aguardava na maloca, onde vive Benedito e sua família. Foi oferecida uma refeição comunitária; logo em seguida iniciaram os preparativos para a dança. Reinel, líder da comunidade, é também benzedor e mestre de cerimônia (baya, aquele que puxa o canto-dança). Antes de começar a dança houve forte temporal com muitos trovões, que os benzedores da maloca disseram tratar-se dos seres dessa região querendo saber quem chegara. Passada a tormenta, dançaram Keno-basa (dança de jutaí, um fruto silvestre). A dança se prolongou por toda a noite e a manhã seguinte. Depois foi oferecida uma refeição, já tendo se realizado os primeiros benzimentos sobre os alimentos. No dia seguinte, houve uma conversa com a comunidade, onde todos se apresentaram e se fizeram perguntas, enquanto outros tipos de alimentos eram benzidos. Algo que chamou atenção dos visitantes do Tiquié é o fato de fazerem benzimentos em separado para cada tipo de alimento.

Seguimos então (15/03) para Hena, onde chegamos no final da tarde - além de duas horas de viagem de motor de popa, é preciso percorrer meia hora de caminhada, contornando as corredeiras, até chegar ao povoado, que é o centro dos Tatuyo do alto Pirá-paraná. Nessa comunidade há uma escola, que conta com um docente dessa etnia e quatro outros, ainda voluntários. Pretendem, em certa medida inspirados na experiência que conheceram da Escola Tuyuka, transformá-la em uma escola tatuyo autônoma, com currículo próprio, uso dessa língua na alfabetização e na instrução e gestão independente. Assim, o dia seguinte à nossa chegada foi dedicado às apresentações, e a falar de escola indígena e manejo ambiental, dois temas comuns e que foram recorrentes em todos os locais que passamos. Explicaram ainda as divisões internas aos Tatuyo e a localização atual dos diferentes grupos. Além do alto Pirá, estão situados também no igarapé Japú, afluente do alto Papuri. A relação entre esses dois grupos tatuyo passa por uma crise, uma vez que um morador do Japu emprestou uma cuia cerimonial (cuia do sol) há poucos anos e não quer mais devolver. No outro dia (17/03) foi feito um dabucuri de carne para os tuyuka, seguido por dança dos Tatuyo. Os Tuyuka foram convidados e também dançaram, alternando com os da casa o espaço de dança. Ofereceram caapi e a dança se prolongou até a manhã seguinte.

De Hena fomos para Moawi (19/03), onde estão os barasana e tatuyo. Uriel é dono da maloca e tem como esposa uma velha bará - levada há muito tempo do Tiquié - que é a principal ceramista da região. Impressionou-nos, não só nessa comunidade, o uso ainda corrente de muitos utensílios de cerâmica (todos os fornos são de cerâmica, muitas panelas, potes, trempes, buzinas...). Nesse mesmo dia que chegamos, chegaram também outros de povoados vizinhos, para a festa, sobretudo de Puerto Ortega. Nessa tarde e noite dedicaram-se aos preparativos, benzimento de breu e cera de abelha, diálogos cerimoniais, preparo de ipadu...Dançaram Ikiga (inajá), e os Tuyuka novamente alternaram com eles.

Descendo o Pirá, chegamos (21/03) em Sonaña, que é o centro de referência dos Taiwano (ou Eduria). Há uma escola, fundada na década de 70 por missionários católicos, que agora querem que sirva como meio de retomada e reafirmação da língua, bastante ameaçada pelo predomínio do barasana. Faustino, principal liderança, também esteve em São Pedro em 2004; seu pai é o dono de uma maloca grande onde nos hospedamos. Houve, novamente, um dia de conversa, onde as experiências de escola indígena no Tiquié foram mais bem expostas. Em vista do início iminente de mudanças na escola daí, havia um vívido interesse em ouvir como essas mudanças foram feitas no Tiquié. Também em Sonaña se juntaram pessoas de várias comunidades, principalmente do vizinho caño Piedra, onde estão muitos "tradicionales". Depois houve uma dança eduria, chamada Weku-basa (dança da anta), que seria "uma demonstração", mas se prolongou por toda a noite, até a manhã seguinte. À tarde, houve uma conversa sobre o calendário ecológico, tema desenvolvido pelos pesquisadores indígenas do Pirá, apoiados pela Gaia; a trajetória de origem dos Eduria, que subiram pelo Tiquié e chegaram ao Pirá; e como entendem sua relação com os povos que habitam hoje o Tiquié - consideram os Tuyuka como seus irmãos menores.

De Sonaña fomos para San Miguel (24/03), onde chegamos depois de um trecho por rio e alguns por terra, varando uma série de cachoeiras que dificultam a navegação no rio. Em San Miguel fomos conduzidos para a maloca, que acabara de ser concluída, e recebidos com uma farta refeição. O dia seguinte foi dedicado aos preparativos para a festa de inauguração da maloca e a algumas conversas com as artesãs locais e, à noite, sobre o manejo ambiental, durante o preparo do ipadu e os benzimentos para a cerimônia. Nessa madrugada já começaram a dança do beiju. Para essa festa foi preparada uma grande quantidade de beiju de tapioca, empilhado junto ao esteio direito dos fundos da maloca e distribuído no final da festa. Depois da dança do beiju, cantaram Hauã-basa, com bastões. San Miguel é uma comunidade bem dinâmica e organizada, centro dos barasana. Antes de deixarmos San Miguel, houve uma manhã de conversa sobre dois assuntos: a escola indígena e a continuidade da cooperação entre as organizações dos dois rios.

Piedra Ñi, já em território dos Makuna, foi nosso último destino, chegamos no dia 28, depois de duas horas de viagem, com trechos de predomínio de igapós às margens do Pirá. Aí existe um colégio grande, que alcança o nono ano. Ano passado foram mais de 200 alunos. Nesse, com o desacordo entre a Secretaria de Educação e a ACAIPI a respeito do calendário, só havia uns 70. A ACAIPI quer que o ano comece em maio, depois da temporada de cerimônias, iniciações e as restrições que acompanham; mas para o governo tem que ser março.

Foi realizada a festa da pupunha, com máscaras (baile de muñeco, como é chamada na Colômbia), para a qual chegou muita gente, especialmente do Komeña, de onde vieram aqueles encarregados de confeccionar as máscaras e dançar na festa. Foram esperados com grande quantidade de pupunha, que é estocada em um grande silo feito com varas e folha de sororoca, fixado próximo à porta dos fundos da maloca. Provavelmente havia uns 600 litros de massa de pupunha, reunida também com colaboração do pessoal do Timiña e Umuña, dois igarapés que deságuam próximo a Piedra Ñi. A festa começou no dia 30, seguiu pelo 31 e terminou no dia 1o de abril, pela manhã. Pouco a pouco vão entrando os dançantes mascarados, que representam espíritos de animais (num total de 89!). Cenicamente é muito expressiva e há um amplo repertório de cantos. A maloca ficou cheia e algumas pessoas ainda acamparam fora. Na manhã do último dia foi feita uma reunião final com coordenação da ACAIPI, os representantes do Tiquié e assessores de Gaia e ISA, além de alguns velhos kumua que haviam participado da festa.

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