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Líder indígena de Santa Catarina usa educação para garantir sobrevivência do seu povo

Notícias do Dia- http://ndonline.com.br
Autor: Aline Torres
10 de Out de 2016

Primeiro vieram os jesuítas. Em nome de Deus (e da coroa portuguesa) eles acreditavam que ensinariam o correto para os povos primitivos. Assim, nativos aprenderam a ler e escrever as verdades dos seus colonizadores. Modelo que se repete desde então. Se antes cabia à fé domar almas selvagens, hoje cabe à razão. Padronizada pelo Sistema Nacional de Educação, que ensina nas aldeias indígenas país afora, que no dia 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil.

Nessa guerra de meio milênio, uma Guarani de um metro e meio de altura venceu a última grande batalha. Kerexu Ixapyry, 37 anos, virou cacica da aldeia Itaty, situada no Morro dos Cavalos, em Palhoça, por ter conseguido a aprovação do primeiro projeto pedagógico diferenciado de Santa Catarina. Essa façanha a coroou como líder em 2012 e a fez referência nacional.

Uma raridade. Para os índios cabem aos homens as decisões políticas. Entre os 70 mil caciques do Brasil menos de 30 mulheres são lideranças do seu povo, segundo a Funai.

Na organização social, as índias receberam papel secundário. O Kunhangue Rembiapo - trabalho das mulheres - foi quase sempre servir aos homens, cuidar dos filhos, acatar a batida do martelo tribal e, tramar no artesanato suas dores e memórias, em silêncio.

Faz pouco mais de uma década que a primeira mulher foi eleita cacique no Brasil.

Creuza, da etnia Umutina (MT), foi escolhida por voto popular por ter a mira mais precisa e a flecha mais rápida entre todos os homens que disputaram os Jogos Indígenas. Isso foi em 2004. Estimuladas pela terceira onda feminista da história - que começou no final dos anos 90 - as mulheres índias também buscam romper com a opressão.

Kerexu seguiu desde cedo na contramão. Foi a primeira mulher da sua comunidade a se tornar professora. A primeira a concluir um curso universitário. E a primeira a ser cacica, semântica escolhida por ela aos moldes de Dilma Rousseff.

Nesse ano, a pequena índia assumiu uma nova missão. Deixou o transitório cargo de cacica - que dura quatro anos - para se tornar liderança permanente. Eleita pelo seu povo, com as graças dos deuses da natureza, irá batalhar em conjunto com os chefes das três etnias catarinenses - Guarani, Xokleng e Kaingang -, para que eles também tenham o direito de salvar suas culturas pela educação.

A pequena escola que se transformou em um símbolo de resistência se chama Itaty. Foi construída em 2002, pelo governador da época, Esperidião Amin. Mas, já existia rudimentarmente desde 1995 aos moldes do ensino tradicional.

Os professores não-indígenas só falavam em português, língua desconhecida pelas crianças pequenas. Nada sabiam sobre Nhanderu, deus solar que criou os homens, ou sobre os espíritos guardiões Xivi, a onça, Urukure'a, a coruja, ou Karumbé, a tartaruga. Também desconheciam que os Guarani não seguem o calendário romano, mas os ciclos de renovação da vida (Ara Pyau, Yma, Guyje e Mbyte).

Os feriados nacionais obrigavam a vivência de uma crença sem sentido. Nenhuma data oficial é comemorada por eles. O ano novo Guarani (Ara Pyau), por exemplo, celebra nos últimos dias de agosto o ciclo de fecundidade da Mãe Terra.

Nesse momento há o rito do Nhemongarai, anterior à catequese. Os recém-nascidos são batizados, recebem seus nomes espirituais, soprados pelos ancestrais desencarnados através da fumaça do Petyngua (cachimbo sagrado). Com cantos e danças invocam suas divindades, férteis, como o solo que os alimenta. No ritmo de semeadura da primavera que não tarda, viajam de aldeia em aldeia para trocar as sementes ancestrais.

A cultura criou a humanidade. Nela foi moldada a existência. Os paradoxos. As singularidades. Sem cultura não se vive, simplesmente porque não se é. Aculturar é matar o eterno nos homens. Esse mecanismo perverso é um clássico dos colonizadores.

Por isso, Kerexu foi à luta. Para que seu povo não desapareça. No combate de símbolos, descobriu arma eficaz: a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).

Durante o curso de licenciatura indígena, na UFSC, percebeu a tara dos jerua (não-indígenas) por regras. Com capa, espaçamento, folha de rosto e referências bibliográficas, o mesmo projeto recusado durante sete anos pela Secretaria Estadual de Educação foi aceito. A Itaty deixou de ser campo inimigo.

Kerexu faz questão de deixar claro que não conquistou nada sozinha. A mudança nasceu bem antes do projeto. Nasceu na vontade da comunidade. Ela foi a porta-voz.

Atualmente são 11 professores na escola. Todos falam Tupy. Única língua usada até a 3 série. A partir do 4o ano, as crianças aprendem os fonemas do Português e do sexto em diante confrontam as disciplinas oficiais com os conhecimentos indígenas.

Na Itaty o aprendizado deve servir à vida. E a escola é antes de tudo um centro de sobrevivência da maior etnia do país. Já que além da violência física, os Guarani enfrentam a violência simbólica. Ideias introjetadas no inconsciente popular, que os reduzem a um bando de atrasados, sujos e preguiçosos. Criaturas que precisam de ajuda da civilização para serem inseridas no mercado de trabalho e adquirirem dignidade.

(Pré) conceitos que ela conhece de perto. Na infância, estudou em uma escola padrão, com filhos de descendentes de italianos que povoaram o Oeste catarinense.

"Lembro. Eles iam comemorar o dia das crianças. A professora comprou camisetas para todos os alunos da turma. Eu era a primeira da fila. Mas, ela distribuiu os presentes de trás para frente. Quando chegou em mim, disse que tinha acabado. Eu me arrumava para ir embora e ouvi meus colegas falarem, 'a professora fez isso porque ela é índia'. Eu senti uma vergonha! Você não imagina. Pensei, 'nem posso reclamar de nada, nem contar para os meus pais, sou uma índia'". Kerexu tinha oito anos.

Tataendy Rupa, pai da líder Guarani do Morro dos Cavalos, soube da história quando a filha era adulta. Juntos eles construíram o sonho de uma escola que preservasse as tradições e fortalecesse as crianças, ao invés, de diminuí-las. É de autoria de Tataendy o livro de mitologias Palavras de Xeramõi, editado pela Cuca Fresca.

Quando Kerexu estava cansada de discutir com a coordenadora da escola, seu pai orientou que ela procurasse o cacique do Morro dos Cavalos, Artur Benites.

Convidado para assistir uma das aulas, o ancião detestou os métodos formais de ensino. Disse que a sala era fria e se propôs a educar como aprendeu. Ele chamou as crianças para o mato. Pediu para que elas limpassem o lugar e achassem lenha.

No final disse. "Venham todos quando o sol estiver se pondo para a Casa de Reza, que hoje eu vou contar histórias para vocês'.

"Ao chegarmos lá fomos recebidos com muita alegria pelo Karai, ele pediu para sentarmos e disse peja pyxaká (se concentrem). Foi feito todo o ritual de reza, ao redor do fogo e, eu me emocionei quando eu vi meus pequenos alunos fazendo o esforço para dançarem, cantarem e rezarem. Naquele dia que eu me voltei contra o ensino do Sistema Nacional de Educação", conta Kerexu.

Cinco pilares solidificam a Itaty como uma escola indígena. A escrita não é mais importante que a oralidade. As crianças são compreendidas como espíritos livres que devem ser humanizados pela natureza, não pela razão. Entender a política é garantir a sobrevivência. As mulheres têm liberdade para se afastarem nos períodos ritualísticos, como na menstruação. E a comunidade deve permanecer unida. Todos os dias, as 44 famílias Guarani do Morro dos Cavalos se reúnem no refeitório para almoços coletivos.

"Os jerua não entendem. A escola tradicional serve para criar consumidores. Condiciona as crianças desde cedo como máquinas para o trabalho. Elas não têm direito a escolha. Ficam mais de uma década sentadas em salas de aula. Assim vão conseguir vagas na faculdade, dizem. Quem não for aprovado não vai ser ninguém, dizem. Terão um subemprego, dizem, dizem, dizem. É muita pressão, ansiedade. E se não bastasse ensinam a competitividade. Você tem que ser melhor que o seu colega, se errar deve se sentir mal, não pode se divertir, senão vira vagabundo. Não é isso que queremos. Para nós o importante é aprender a viver bem", refletiu a líder.

A educação na aldeia é voltada para melhoria da realidade. No Ensino Médio há apenas duas cadeiras. Criadas, justamente, para instigar nos adolescentes essa consciência de pertencimento. A primeira estuda a Constituição de 1988, as leis de proteção aos indígenas, ao Meio Ambiente e os processos de demarcação de terras. A segunda propõe o desenvolvimento de projetos de sustentabilidade para a comunidade, amparados por três eixos. Cultural, ambiental ou político.

Graças aos projetos de alunos, que disputaram editais públicos sem quaisquer ajuda de fora, a Itaty tem centro de artesanato e de inclusão digital. Eles também cultivaram hortas medicinais e ajudam na construção da Opy Mirim (Pequena Casa de Reza).

Do mato eles trazem as taquaras usadas como telhado. O barro amassado pelos professores vira massa de modelar. Os pequenos não resistem. Se unem ao trabalho.

A casinha erguida por tantas mãos não é nem tarefa, nem sacrifício, como poderia ser vista de fora. É o gosto dos índios em expressar-se em suas obras, a ingente vontade de beleza no cotidiano, uma teia ancestral que os conecta. É a sensação plena de pertencer.

Ano passado mais de cem alunos foram questionados sobre o que mudariam na escola Itaty. A resposta foi unânime. Nada.

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