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Lição de indigenismo

O Globo-Rio de Janeiro-RJ
Autor: PEDRO ROGÉRIO MOREIRA
14 de Mai de 2002

Orepórter Possidônio Bastos era meu colega na redação do GLOBO, no Rio, início da década de 1970. Tinha 25 anos e um rosto de serafim. Vivíamos aquele período trepidante da vida nacional conhecido como Milagre Econômico. O Centro-Oeste e a Amazônia estavam sendo rasgados por rodovias. Implantavam-se, no sertão bruto, projetos agrícolas, pecuários e minerais.

Milhares de brasileiros, uns movidos pela esperança, outros pela ganância, buscavam um lugar ao sol neste novo eldorado. Os choques dessas levas humanas com os antigos moradores da floresta, os índios, foram inevitáveis.

Possidônio passou a registrar o nosso far-west em reportagens memoráveis. Encantou-se com o trabalho dos indigenistas que tentavam assegurar aos índios um cordão de segurança diante do avanço dos tratores na mata virgem.

Já era, o jovem repórter, dotado de espírito público, e deve ter recebido um complemento de brasilidade na convivência com os sertanistas Francisco e Apoena Meireles, e Sidney Possuelo, filhos espirituais do marechal Cândido Rondon, nosso grande humanista, talvez o mais eminente brasileiro do século passado.

Possidônio decidiu integrar-se neste apostolado, abandonando a profissão de jornalista que ele tanto honrou. Os colegas tentaram demovê-lo da idéia, tida como amalucada; mas ele estava possuído daquela decisão irrevogável, tal e qual o jovem da Idade Média que ouve o chamado de Deus e se interna no mosteiro, pronto para se tornar um santo, ou segue para a Cruzada, pronto para se tornar um mártir.

Sua primeira missão foi participar da frente de atração dos cintas-largas, nos confins de Mato Grosso, divisa com Rondônia. Estes índios habitam a região cortada pelo Rio Roosevelt, que já tinha sido Rio da Dúvida - belo nome! - até que foi cartografado corretamente na expedição chefiada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, e então rebatizado por Rondon numa homenagem ao estadista e naturalista americano.

Nesta expedição, década de 20, Roosevelt e Rondon tiveram contatos esporádicos com os cintas-largas. Cinqüenta anos depois, quando Possidônio lá chegou, os cintas-largas davam sinais claros de ojeriza aos brancos que devassavam suas terras em busca dos tesouros da floresta.

Os índios, no entanto, aceitaram os contatos iniciais da frente de atração. Ia tudo aparentemente tão bem que a Funai deixou Possidônio sozinho, no ermo do Roosevelt. O noviço no portal do Paraíso.

Numa manhã sossegada, os guerreiros atacaram o tapiri que lhe servia de morada. Incendiaram o abrigo. Possidônio morreu como um São Sebastião: flechado muitas vezes. Encontraram depois sua arma, intacta, o que nos remete à célebre oração de Rondon: "Matar, nunca; morrer se preciso for."

Trinta anos depois deste evento, já perdido na história da nossa moderna marcha para o oeste, O GLOBO publica neste maio de 2002 reportagem sobre os cintas-largas da atualidade. Os caciques estão milionários. Os índios que eles lideram, uns na pobreza, outros, remediados.

É mais ou menos o que acontece no mundo dos brancos. O cacique João Bravo é fotografado ao lado de sua possante caminhonete do ano. Tem uma bela casa, cheia de gueriguéris eletrônicos. João devia ser menino quando a tribo massacrou Possidônio para alertar os brancos que não destruíssem a natureza. Adulto, João e outros quatro caciques formaram com os brancos uma comandita para explorar os veios de diamante do Rio Roosevelt. Os índios entram com a falta de caráter; os brancos, com o que sabemos fazer desde que o Padre Eterno nos expulsou do Paraíso. A pistolagem corre solta. A destruição da floresta também.

É inegável: os cintas-largas, depois que mataram Possidônio, deram um salto cultural gigantesco: deixaram a idade da pedra polida para entrar direto na era do automóvel envenenado, do exibicionismo à la "Casa dos Artistas", do desprezo pela natureza. Nós soubemos como civilizá-los. Possidônio, não.

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