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LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NÃO CONSEGUE IMPEDIR A BIOPIRATARIA

Radiobrás-Brasília-DF
23 de Mai de 2003

Andiroba, copaíba, ayahusca, curare, açaí e muitos outros produtos e derivados da flora e de espécies da fauna brasileira já têm marcas e patentes registradas no exterior. Desde o descobrimento do país, quando os portugueses se apropriaram do segredo da extração do pigmento vermelho do Pau Brasil, milhares de espécies nativas são contrabandeadas e transformadas em patentes internacionais.

O registro comercial de recursos naturais alheios não é nenhuma novidade, até porque não existe nenhuma legislação internacional que proíba tal atividade, uma vez que o sistema de patentes não protege aquele que detém a biodiversidadade ou o conhecimento tradicional, mas quem desenvolve novas tecnologias. Na maioria dos casos, os países patenteiam apenas os produtos produzidos a partir de determinadas substâncias extraídas de plantas ou animais, mas também existem casos de patentes de plantas inteiras.

A recente tentativa japonesa de patentear o cupuaçu da Amazônia é apenas mais um capítulo da longa história de biopirataria em território nacional. A diferença é que desta vez a mobilização da opinião pública brasileira poderá impedir que o fato seja concretizado.

O registro comercial do cupuaçu pela empresa Asahi Foods é contestado na justiça japonesa por organizações brasileiras e deve levar até um ano para ser julgado. O argumento de defesa é muito simples: cupuaçu é o nome de uma planta indígena que caracteriza a própria fruta e, como tal, não é passível de virar marca registrada.

A biopirataria não é apenas o contrabando de diversas formas de vida da flora e fauna. É uma atividade altamente rentável, que movimenta bilhões de dólares e inclui a apropriação e monopolização de conhecimentos das populações tradicionais no que se refere ao uso dos recursos naturais. E o Brasil, a exemplo de grande parte dos países em desenvolvimento, ainda não dispõe de um sistema de proteção legal dos direitos de propriedade intelectual de comunidades tradicionais.

Nos últimos anos, o avanço da biotecnologia e a fragilidade das leis nacionais e internacionais de proteção dos recursos genéticos multiplicaram as possibilidades deste tipo de atividade, tornando os países detentores de biodiversidade alvos fáceis para a biopirataria. Na era da biotecnologia e da engenharia genética tudo que se precisa para reproduzir uma espécie são algumas células facilmente contrabandeadas e dificilmente detectadas por mecanismo de vigilância.

Retirar material biológico clandestinamente de um país não exige sequer muita criatividade. O bolso, a caneta, o frasco de perfume, o estojo de maquiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e costuras das roupas são esconderijos utilizados. Existem diversas maneiras de esconder fragmentos de tecidos, culturas de microorganismos ou minúsculas sementes sem a necessidade de grandes aparatos.

Detentor de 23% da biodiversidade do planeta, o Brasil é presa fácil para a cobiça internacional. De acordo com cálculos do Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o patrimônio genético nacional tem um valor potencial estimado de US$ 2 trilhões. São milhares de plantas, frutas, mamíferos, peixes, anfíbios e insetos, muitos deles ainda não descritos pela ciência.

Além dos materiais genéticos levados clandestinamente ou legalmente exportados, calcula-se que anualmente cerca de 38 milhões de animais silvestres atravessam as fronteiras ilegalmente, sendo que grande parte deste total é levada para fins de biopirataria, como é o caso das serpentes, cujos venenos são pesquisados para servirem de princípios ativos na fabricação de medicamentos.

No Brasil, a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais são protegidos pela Medida Provisória 2.186 de 2001, que condiciona o acesso a recursos naturais à autorização da União e prevê a repartição de benefícios, se houver uso e comercialização. Outros tantos projetos de lei sobre o assunto também tramitam no Congresso Nacional, entre eles o da senadora e atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que estabelece as condições para autorização de acesso a recursos genéticos nacionais.

O assunto é tão grave que gerou até a abertura de uma CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o tráfico ilegal de animais e plantas silvestres, além de várias iniciativas do Legislativo e do Executivo para combater a biopirataria. No final de 2002, diversas comissões do Senado aprovaram um projeto de lei destinado a regulamentar o artigo 225 da Constituição que trata do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado. O governo enviou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que prevê penas de um a oito de prisão para quem desrespeitar a legislação que protege a fauna e a flora. A Câmara também analisa a proposta de emenda constitucional que transforma os recursos genéticos em patrimônio da União.

Tais iniciativas mostram a determinação do governo em preservar o patrimônio genético do país, mas na pratica isso pouco interfere nos mecanismos para a retirada de organismos, extratos químicos ou substâncias, sejam por meio da exportação ou da biopirataria, que continuarão, segundo especialistas, quase impossíveis de serem combatidos.

O combate a biopirataria depende mais de leis internacionais do que nacionais. Pesquisadores e especialistas no assunto concordam que sem a consolidação de acordos e tratados que proíbam o registro e o patenteamento de recursos naturais que não tenham sua procedência claramente definida, a biopirataria continuará sendo um negócio rentável.

Várias iniciativas neste sentido vêm sendo tomadas nas últimas décadas, mas os resultados ainda se mostram pífios. Até pouco tempo, o acesso aos recursos genéticos era livre, pois a biodiversidade era considerada um patrimônio da humanidade. Os países só passaram a ter direitos sobre seus recursos biológicos em 1992, quando 182 países assinaram a Convenção sobre Diversidades Biológicas (CDB) durante a Conferência Mundial de Meio Ambiente (Eco 92), no Rio de Janeiro.

No ano passado, dez anos após a Eco 92, os países signatários da CDB fecharam um acordo mundial para regulamentar os lucros gerados pelo patenteamento de conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais. O acordo prevê que uma parte dos lucros deve ser necessariamente do país de origem e para as comunidades tradicionais que conhecem as propriedades medicinais das planta

Agora, o debate da vez é a compatibilização da CDB com o acordo sobre a propriedade intelectual da OMC - Organização Mundial do Comércio, conhecido como Trips. A intenção é incluir no Trips um dispositivo que contemple a proteção dos conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos. A proposta encontra forte resistência dos paises desenvolvidos que dominam a biotecnologia e a engenharia genética, e promete consumir mais alguns anos de negociações.

Em diversos artigos publicados no Brasil e no exterior, o pesquisador e ex-diretor do Inpa - Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, Ozório Fonseca, dá a receita para brecar a biopirataria: fazer primeiro e/ou fazer junto. Para fazer primeiro, é necessário investir solidamente em ciência e tecnologia e criar um parque industrial capaz de processar as biotas e seus produtos. Para fazer junto, é preciso incrementar os convênios nacionais e internacionais, de modo que os novos conhecimentos, tecnologias e produtos resultantes de projetos de pesquisa possam ser patenteados pelas partes conveniadas.

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