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Legado de Villas Boas se deteriora em SP

FSP, Cotidiano, p.C1, C3
14 de Ago de 2005

Sem preservação, documentos de um dos principais indigenistas do país, morto em 2002, ainda esperam memorial
Legado de Villas Bôas se deteriora em SP
Amarílis Lage
Quadros de artistas famosos, peças raras de arte indígena e documentos importantes da história do país que retratam a ocupação do centro-oeste. Essa poderia ser a descrição de um museu, mas é apenas parte do que se encontra na casa de Marina, 68, viúva de Orlando Villas Bôas -um dos principais nomes da questão indígena no Brasil-, morto em 2002.
Justamente por não estar em um museu, porém, o acervo reunido pelo indigenista ao longo de seis décadas tem se deteriorado. "Há cartas que meu pai trocou com [os antropólogos] Darcy Ribeiro e Claude Lévi-Strauss que estão se esfarelando", diz Noel Villas Bôas, 30, filho de Orlando.
As propostas apresentadas à família em relação ao acervo, até agora, não foram aceitas por não serem sustentáveis, explica Marina. "Estudei o assunto e vi que não valia a pena abrir um lugar que seria fechado logo depois."
A intenção da família é expor o material num memorial que seria instalado no parque que deve substituir a usina de compostagem da Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. A transformação do local em parque, porém, ainda não tem data certa, o que, por conseqüência, mantém indefinida a proposta do memorial.
"Só quando tivermos uma coisa real na mão é que poderemos correr atrás de parcerias e da captação de recursos", diz Gláucia Prata, presidente do Movimento Popular da Vila Leopoldina.
Sem o apoio de nenhum órgão de preservação, a família tenta conservar como pode preciosidades como os diários escritos por Orlando Villas Bôas durante a expedição Roncador-Xingu (1943-1960), criada pelo presidente Getúlio Vargas para garantir a soberania do país no centro-oeste, até então praticamente inexplorado.
Após fingirem ser sertanejos analfabetos -já que os moradores da cidade eram considerados muito frágeis para a missão-, os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas foram aceitos na expedição, que abriu mais de 1.500 km de picadas, explorou mais de 1.000 km de rios, descobriu seis rios e encontrou 14 aldeias indígenas no Xingu.
Com o apoio do marechal Cândido Rondon, os Villas Bôas impediram a matança dos índios e iniciaram a primeira ação política voltada à preservação da cultura indígena, o que levou à criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, ano em que Leonardo morreu. Cláudio (que morreu em 1998) e Orlando foram indicados duas vezes ao prêmio Nobel da Paz por sua ação com as comunidades indígenas.
"O trabalho deles foi inédito", afirma a antropóloga Carmen Junqueira, professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Para ela, o governo federal deveria montar um museu para abrigar o acervo. "Essa coleção é gigante, a maior de objetos xinguanos do mundo e uma representação do desbravamento do centro-oeste do país."
As maiores coleções de arte indígena estão hoje fora do país, afirma a arqueóloga Cristiana Barreto, que participou das curadorias das exposições "Brasil Indígena", realizada neste ano em Paris como parte do ano do ""Brasil na França"; "Amazônia Desconhecida", realizada em 2002 na Inglaterra, e da "Brasil 500 Anos", que percorreu o país em 2000.
"As peças indígenas mais antigas da "Brasil 500 anos" vieram todas de fora", diz Barreto. São objetos difíceis de conservar, diz ela, por utilizarem material orgânico.
Inacessível
O cuidado da família Villas Bôas com o acervo termina resultando na inacessibilidade desse material, mesmo a pesquisadores. Cerca de 80 peças, especialmente fotografias, costumam ser emprestadas para exposições temporárias. A maior parte, porém, fica guardada. A família não tem noção da quantidade do material.
"Temos que ter um certo resguardo. Pode parecer egoísta, mas, se abrirmos o acervo para pesquisa, em dois anos tudo isso acaba. Já perdemos muita coisa. Meu pai emprestou fotos e filmes que hoje ninguém sabe onde está", diz Noel, para quem as peças mais valiosas são os chinelos e o barbeador que seu pai usava.

Acervo
"O trabalho deles foi inédito. Essa coleção é gigante, a maior de objetos xinguanos do mundo e uma representação do desbravamento do centro-oeste do país"
Carmen Junqueira antropóloga e professora da PUC de São Paulo

Análise que vai apontar se há contaminação em terreno da Vila Leopoldina ainda não foi realizada
Área para memorial continua indefinida
Dentro de cerca de um mês, no dia 13 de setembro, termina o prazo que a Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental) deu à Prefeitura de São Paulo para a apresentação de estudo sobre a qualidade do solo no terreno onde funcionava a usina de compostagem da Vila Leopoldina, na zona oeste. O local deve abrigar um parque e o memorial para onde seria transferido o acervo de Orlando Villas Bôas.
O prazo dificilmente será cumprido: a prefeitura ainda nem decidiu que empresa fará a análise -o estudo é vital para a transformação da área em parque, pois mostrará se a área foi contaminada enquanto abrigava a usina.
De acordo com o secretário Andrea Matarazzo (Serviços), o processo de escolha deve ter início em um ou dois meses. O estudo deve custar cerca de R$ 70 mil.
A Cetesb pediu em janeiro que a prefeitura realizasse o estudo, segundo Maria Lúcia de Andrade e Silva Nardi, 49, gerente da agência ambiental de Pinheiros. Desde então, o prazo foi prorrogado.
Matarazzo disse que o assunto foi um dos primeiros a serem abordados quando assumiu a secretaria, em maio deste ano. Segundo ele, o termo de referência, documento que define qual é exatamente o trabalho que a prefeitura irá contratar, já foi realizado.
Caso se prove que o solo está contaminado, a secretaria de Serviços deverá recuperar o local e só depois repassar a área, de cerca de 54 mil m2 à Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), para fazer do local um parque.
Para Gláucia Mendonça Prata, do Movimento Popular da Vila Leopoldina, os moradores temem que a usina seja reativada.
O equipamento foi inaugurado em 1974. Em 1992, devido ao mau cheiro, os moradores da região criaram a associação para exigir o fechamento da usina. Em setembro último, a usina foi desativada.
Em junho, um parecer técnico elaborado pela SVMA voltou a deixar os moradores inquietos. No documento, era dito que "as ações propostas de uso futuro seriam a preservação das instalações ou parte delas, o retorno da operação da usina para processar uma quantidade menor de resíduos, ricos em matéria orgânica". Tanto a SVMA como Matarazzo, porém, reafirmaram que a prefeitura iria instalar ali um parque.
O nome do parque, Orlando Villas Bôas, foi escolhido, em assembléia de moradores, para homenagear o indigenista, que morava na região. A proposta é que o local abrigue, além do memorial com o acervo de Villas Bôas, atividades ligadas à cultura indígena.
A região da Lapa, que inclui a Vila Leopoldina, também remete, em suas origens, à relação entre colonizadores e índios, diz José Carlos de Barros Lima, pesquisador da história do lugar. A Lapa, diz ele, cresceu em torno de um forte construído para proteger a cidade de ataques indígenas.
A reportagem entrou em contato com a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para falar sobre o acervo de Villas Bôas, mas não conseguiu falar com os representantes indicados pelas assessorias desses órgãos. (AMARÍLIS LAGE

Autobiografia de Orlando sai em outubro
O lançamento de uma autobiografia inédita de Orlando Villas Bôas está prevista para outubro deste ano. O livro inclui, além das memórias do autor, que deixou o texto original pronto, um relato escrito por sua família sobre a cerimônia religiosa realizada pelos índios do Xingu após a morte do indigenista, em 2002.
Trata-se do quarup, ritual realizado em homenagem aos mortos que também constitui uma encenação da lenda da criação. "Vieram representantes de cada uma das tribos da região -antes eram 14, mas elas cresceram e, hoje, são 18. Durou mais de uma semana. Foi uma coisa grandiosa e a maior homenagem que Orlando poderia ter recebido", conta a enfermeira Marina Villas Bôas, viúva do indigenista.
O livro, que será publicado pela editora FTD, inclui artigos de Orlando sobre a política indianista, que foram encontrados por seus filhos.
Antes de entrar na expedição Xingu-Roncador, que o colocou em contato com a cultura indígena, Orlando trabalhava na Esso.
"Eles [os villas Bôas] entraram na expedição porque sabiam que, na cidade, estariam condenados a passar o resto da vida em ocupações que odiavam", conta Marina, que conheceu Orlando em 1963, no Xingu. (AL)

FSP, 14/08/2005, p. C1, C3

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