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Kyoto, Brasil

FSP, Mais, p. 9
Autor: LEITE, Marcelo
25 de Set de 2005

Kyoto, Brasil

Marcelo Leite
Colunista da Folha
No Brasil não há furacões, é sabido, mas nem todos se dão conta de que o país abriga uma Amazônia

O Protocolo de Kyoto, tratado internacional pelo qual 37 países desenvolvidos assumiram compromissos de redução de gases do efeito estufa, andava meio por baixo. Após a recusa de George W. Bush, as já modestas metas do protocolo -que entrou em vigor em 16 de fevereiro deste ano- estavam em descrédito, por não contarem com o peso do principal emissor mundial dos gases agravadores do aquecimento da atmosfera.
Até o Katrina.
É arriscado fazer previsões, mas o furacão que arrasou Nova Orleans pode também ter abalado o apoio tácito dos americanos a seu presidente. Não só por sua falta de iniciativa, piedade e liderança, mas também porque um desastre desses -ou sua repetição- pode às vezes alterar a percepção pública sobre fenômenos naturais.
Afinal, já são nove furacões neste ano, mesmo número do ano passado. Em 2003 tinham sido sete. Nos últimos oito anos, só 2002 registrou menos do que sete, mostrou gráfico publicado quinta-feira na Folha. Total de 64 nesse período, contra 15 nos oito anos anteriores, 1990 a 1997.
Climatologistas dirão que esses dados ainda não bastam para afirmar que se trata de uma comprovação científica da hipótese de aumento na freqüência de eventos climáticos extremos como conseqüência do agravamento do efeito estufa. Outra coisa, muito diversa, é a opinião pública sobre isso. Katrina e Rita podem bastar para desequilibrar o fiel da balança.
E o Brasil com isso?
No Brasil não há furacões, é sabido, mas nem todos se dão conta de que o país abriga uma Amazônia, o que em matéria de efeito estufa representa talvez o maior estoque contínuo de carbono fixado sobre o solo deste planeta. Quando a floresta é derrubada, e sua biomassa queima ou apodrece, ela emite gases-estufa, como o carbônico (CO2). Aumenta a concentração do CO2, tornando mais espesso o cobertor de gases que retém radiação solar na atmosfera, agravando o efeito estufa natural.
Sem furacões para dar uma ajuda trágica, os combatentes do efeito estufa ocupados com o Brasil precisam lançar mão de desastres naturais fabricados pelo homem, como o desmatamento. É o que fez um grupo peso-pesado de pesquisadores e ambientalistas na edição de agosto do periódico "Climatic Change" (vol. 71, no 3), com o artigo "Desmatamento Tropical e o Protocolo de Kyoto" (o texto pode ser lido em inglês no sítio www.ingentaconnect.com/content/klu/clim).
Os autores são Márcio Santilli, Paulo Moutinho, Stephan Schwartzman, Daniel Nepstad, Lisa Curran e Carlos Nobre. Todos falam português, alguns com mais sotaque, outros com menos, e todos conhecem bem a Amazônia, pessoal e cientificamente. Eles abrem o artigo -um ensaio opinativo, não um artigo original de pesquisa- com um dado eloqüente: as atuais taxas anuais de desmatamento tropical do Brasil e da Indonésia, sozinhas, representam quatro quintos das reduções de emissões que seriam obtidas com a implementação do protocolo.
Não chega a ser nenhum Katrina, mas é devastador.

Marcelo Leite é doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http:// cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

FSP, 25/09/2005, Mais, p. 9

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