JB, Outras Opiniões, p. A11
Autor: BELTRÃO, Maria
22 de Mar de 2005
Kioto e pacote ambiental
Maria Beltrão
Arqueóloga
Por que precisamos chegar a situações extremas para nos mobilizarmos? Não sei se Freud explicaria esta questão, mas eu me debruço sobre ela há anos e ainda penso não ter encontrado uma saída. O governo brasileiro, infelizmente, ao ficar à margem dos acontecimentos parece estar diante da mesma dificuldade. Um indiscutível exemplo é o caso da morte anunciada da missionária americana Dorothy Stang, em Anapu, no Pará. Após este episódio triste, que envergonha a qualquer brasileiro, seguido de outras mortes, é que finalmente o governo federal resolveu rever sua decisão de liberar áreas para os madeireiros e, tardiamente (neste caso, antes tarde do que nunca), lança um pacote de medidas ambientais para conter a violência no Pará e a exploração da madeira.
Cinco decretos do governo, divulgados pelos meios de comunicação, transformaram em área de proteção ambiental os cinco milhões de hectares na Amazônia, abrangendo os estados do Pará, Acre, Amazonas e Roraima. A princípio, estas medidas deveriam ser motivo de comemoração, principalmente após o grande avanço que tivemos com a entrada em vigor do protocolo de Kioto, no dia 16 de fevereiro. No entanto, minha longa trajetória profissional traduzida por mais de 40 anos, escavando e buscando informações sobre o Homem e a nossa história, não me permite mais ilusões desta ordem. Qualquer pessoa, minimamente informada, sabe que o problema é grave e que a cada dia a temperatura da terra aumenta assustadoramente em razão da atividade humana. Com a adesão ao protocolo de Kioto, 141 países assumiram o compromisso de reduzir a emissão de gases poluentes - que contribuem para o agravamento do efeito estufa - e de planejar também o futuro. Precisamos, ricos e pobres, mudar radicalmente a nossa postura diante do próximo, do nosso país e do planeta.
Apesar do meu desapontamento acumulado, não quero desmerecer a ação do governo em criar o Parque Nacional da Serra do Pardo e a Estação Ecológica da Terra do Meio, na região onde Dorothy foi covardemente assassinada. Considero também de grande importância o projeto de lei do governo que estabelecerá regras para o uso sustentável das matas brasileiras. Mas tenho motivos de sobra para continuar me preocupando com a sobrevivência humana, pois existem casos graves de descaso neste país. Não podemos fingir que não seremos afetados por nossas ações erradas. Podemos tirar lições a todo instante de nossa sociedade, seja no nosso passado histórico e cultural ou na história do planeta Terra. Principalmente nos últimos milhares de anos, quando teve que suportar e dar respostas radicais e violentas às intervenções humanas. Neste mundo globalizado, com possibilidades inimagináveis de informação, fingir desconhecimento só agrava a situação.
Mais ainda, essa letargia também é encontrada em outras áreas. A luta inglória, por exemplo, deflagrada pela professora e arqueóloga Niede Guidón, diretora de um dos parques mais importantes do Brasil - Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí -, que há anos passa por grandes dificuldades pela falta de verbas de apoio e pelas freqüentes ameaças de invasão e de morte. Niede, mulher de fibra, não é a única e nem a última, infelizmente, a fazer parte de uma extensa lista de ameaçados ao tentar defender o que é justo, cuidando amorosamente do nosso patrimônio cultural e ambiental. Eu mesma passei por fortes apuros nos sertões brasileiros. As dificuldades são incontáveis, assim como a violência que enfrentamos, que vão minando a vontade e a resistência daqueles que trabalham pelo bem comum.
Em uma entrevista após o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, o escritor José Saramago contou que o amigo Umberto Eco confidenciou ter medo do futuro do seu neto. No meio da conversa, Saramago completou: ''se todos formos determinados, eu não terei motivos para ter medo do futuro''. Ele tem razão. Precisamos de determinação e ações práticas e preventivas. Não é mais possível ficar à margem dos acontecimentos e assistir as tragédias como se estivéssemos de mãos atadas. Ações sociais, políticas e econômicas que não levem em consideração a preservação do homem e do meio ambiente devem ser rejeitadas. Ou elas ou nós.
JB, 22/03/2005, Outras Opiniões, p. A11
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