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Justiça diz que CR Almeida é dona de 6% do Pará

O Liberal-Belém-PA
Autor: Carlos Mendes
15 de Fev de 2003

Numa decisão que demorou exatos dois anos e quatro meses para chegar ao conhecimento das partes interessadas no processo e da própria imprensa, o juiz Luiz Ernane Ferreira Malato, que na data da sentença atuava em Altamira, mas hoje comanda a Comarca de Bragança, extinguiu sem julgamento do mérito o processo no qual o Estado, por intermédio do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), reivindica a nulidade, o cancelamento da matrícula e do registro em cartório de 4,7 milhões de hectares supostamente pertencentes à empresa Rondon Projetos Ecológicos, do grupo CR Almeida.

O tamanho dessa área, encravada entre os rios Xingu, Iriri e Curuá, no sudoeste paraense, equivale aos Estados de Sergipe e Alagoas juntos ou a dois países europeus como Bélgica e Holanda.

O grupo econômico liderado pelo empresário paranaense Cecílio do Rego Almeida, com essa decisão de Malato, ganhou novo fôlego para ficar definitivamente com as terras que o Estado afirma terem sido griladas de seu patrimônio fundiário por fraudes praticadas no Cartório Moreira, de Altamira. Com isso, Cecílio Almeida e seus parentes passariam a ser proprietários de 6% do território paraense.

O juiz proferiu sua decisão no dia 19 de setembro de 2000, porém o cartório do fórum daquela comarca só notificou os órgãos fundiários, o Ibama, a Funai e a Procuradoria da República no dia 20 de janeiro de 2003. O processo foi retirado do cartório no dia 31 de agosto de 2000 pelo advogado da Rondon, Eduardo Toledo. No cartório do 1o Ofício não consta que Toledo tenha feito a devolução dos autos.

Briga - O Iterpa já está recorrendo contra a decisão de Malato, que alegou não ter o órgão provado ser a área, localizada em Altamira, uma propriedade pública. "Essas terras pertencem ao Estado do Pará e vão continuar pertencendo, porque para que isso prevaleça não mediremos esforços no âmbito judicial", afirma o presidente do órgão, Sérgio Maneschy. O Ministério Público Federal, por sua vez, argumenta que as terras estão localizadas em áreas indígenas, florestas nacionais e assentamentos do Incra e também já ingressou na comarca de Altamira com embargos de declaração para modificar a sentença, justificando que ela foi omissa quanto à arguição de incompetência absoluta da Justiça estadual para julgar o feito.

Malato diz na decisão que o Iterpa não cuidou da ação discriminatória e vale-se da alegação de existência de contratos de arrendamento. Os arrendamentos alegados precisariam, observa o juiz, demonstrar que são pertinentes às terras objeto dos autos. O próprio Malato salienta: "Com efeito, estando a propriedade registrada no cartório de Registro de Imóveis de Altamira desde o ano de 1922, não me parece que arrendamentos existissem sobre essa propriedade cuja posse alega-se exercida por seu titular mansa e pacífica".

Para o magistrado, não vale a presunção, mas as provas

O juiz entende ser o direito dinâmico, a evolução sob todos os aspectos é célere e as decisões que surgem não mais permitem que quaisquer indivíduos, quaisquer pessoas, também jurídicas, inclusive o Estado, possam afirmar que sejam proprietários de alguma coisa sem que tenham documentos próprios para isso. Atualmente, ainda segundo ele, prevalece a idéia de inexistir em nosso direito a presunção de serem públicas as terras, mesmo as não transcritas.

Citando alguns juristas, o juiz transcreve o acórdão 29.476, de 6 de agosto de 1996, da 3ª Câmara Cível Isolada, no qual foi relatora a desembargadora Climenie Pontes. Ela proferiu voto favorável à aplicação dos artigos 316 da Constituição Estadual e 44 de suas disposições transitórias sobre aquisição de terras. Essa decisão da desembargadora foi prolatada no reexame de uma sentença da comarca de Ponta de Pedras.

Era apelação numa briga entre particulares pela posse de uma área de terras naquele município. O Iterpa tentou anular o processo, alegando que o Estado do Pará não havia sido citado para integrar a lide, mas a decisão acabou transitando em julgado. "O Iterpa satisfez-se com essa decisão", justifica Malato.

Hipoteca - Ele também aborda a hipoteca das terras de Altamira ofertada ao Banco do Estado do Pará pela empresa Incenxil, que depois venderia os 4,7 milhões de hectares à Rondon Projetos Ecológicos.

"Os autos aparentemente demonstram que as terras que são objeto da ação foram dadas ao banco em hipoteca devidamente inscrita no registro de imóveis. Esse negócio jurídico, ao que parece, foi normalmente aceito pelo Banpará sem quaisquer contestações, tendo o banco inclusive, para satisfazer o seu crédito, acionado a devedora, a agora empresa ré, cujo processo chegou a leilão público e arrematação, com regular publicação anterior de edital de praça, sem quaisquer contestações ou impugnações especificamente pelo Iterpa, pelo Estado, através de suas procuradorias".

Sempre dando razão ao grupo CR Almeida, a quem qualifica como proprietário do megalatifúndio do Xingu, o juiz não acolhe o Ministério Público Federal em sua pretensão de ingressar no processo como parte interessada e transferi-lo para a Justiça Federal. Para Malato, o MPF deverá se valer das "vias próprias" na defesa dos interesses das populações indígenas que representa. O interesse que os procuradores federais têm no caso, arremata, "não obriga o deslocamento da competência para a Justiça Federal". Julgada a ação a favor de uma ou outra parte, teria o MPF "ação própria" para a pretensão da demarcação da reserva indígena Baú.

"As terras ficarão com o Estado do Pará", garante Maneschy

O presidente do Iterpa, Sérgio Maneschy, garantiu que o órgão vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para demonstrar na Justiça ser o legítimo proprietário das terras do Xingu. Em entrevista, ele afirma que o ônus da prova nesse processo cabe à empresa do Paraná:

Ao extinguir o processo sem julgamento do mérito, o juiz Ernane Malato alegou que o Estado não conseguiu provar ser pública a área de 4,7 milhões de hectares reivindicada pela Rondon Projeto Ecológicos, do grupo CR Almeida. E agora, o que o Iterpa vai fazer para resguardar o que entende como parte integrante de seu patrimônio fundiário?
Em primeiro lugar, na realidade não é o Iterpa que deveria provar ser dono dessas terras, mas o grupo CR Almeida. Segundo, a nossa intenção é resguardar o interesse do Estado. Por conta disso, a nossa equipe da assessoria jurídica deverá ingressar com os recursos necessários para garantir o direito dessas terras em favor do Estado do Pará. O que eu posso garantir a você é que nós, do Iterpa, não abrimos mão de defender os interesses do Estado. Portanto, se a terra é estadual ela deverá ficar com o Estado.

A decisão do juiz Ernane Malato foi proferida em setembro do ano 2000, mas só agora, em janeiro de 2003, os órgãos que são partes interessadas no processo, como o próprio Estado, o Ministério Público Federal, o Incra, o Ibama e a Funai foram notificados. Como o sr. analisa isso?
É muito estranho que se leve tanto tempo para que nós tivéssemos conhecimento disso. Mas assim que tomamos conhecimento conversamos com a nossa assessoria jurídica e começamos a tomar as providências cabíveis.

O grupo CR Almeida está processando o diretor da Procuradoria Jurídica do Iterpa, Carlos Lamarão. O que o órgão está fazendo para garantir, nas instâncias judiciais, a defesa de seu servidor?
Nós estaremos dando todo o apoio necessário para que possam ser defendidos tanto os interesses do Estado como dos cidadãos que defendem o Estado.

O sr. não teme que esses 4,7 milhões de hectares já tenham sido negociados no exterior pela CR Almeida, já que esse grupo acabou beneficiado pela decisão do juiz?
Eu acho que a história diz claramente as coisas com o tempo. Mas espero, sinceramente, que não. Se isso for um fato, ele será esclarecido no momento oportuno. O que tenho mais uma vez a dizer é que o Estado não abre mão dessas terras e lutará até as últimas instâncias para preservar seus bens e suas riquezas.

A Procuradoria da República também está atuando nesse caso, reivindicando sua participação no processo e o deslocamento do feito para a Justiça Federal em razão de nessas terras estarem localizadas reservas indígenas, assentamentos do Incra e florestas nacionais. Como está funcionando essa parceria entre o Estado, através do Iterpa, e o Ministério Público Federal para a retomada dessas terras e o cancelamento de seus registros no cartório de Altamira?
Quero louvar a participação da Procuradoria da República, que representa o Ministério Público Federal, que vem defendendo os interesses federais nesse caso. A nossa vontade é de estreitar um trabalho conjunto para a retomada dessas terras, pois estas englobam interesses dos governos estadual e federal.
Nos últimos anos, graças ao empenho da procuradoria do Iterpa, o Estado conseguiu brecar nos cartórios os registros de cerca de 20 milhões de hectares de terras que estavam em poder de verdadeiras quadrilhas. Este é um bom sinal para que o governo Jatene modernize o Iterpa, tornando-o mais rápido em seus procedimentos, como eficiente no atendimento aos cidadãos.
Eu quero dizer que assumimos o Iterpa no começo de janeiro a convite do governador Simão Jatene e com a missão bastante definida de reoxigenar o órgão, refortalecer suas ações nos setores técnico e jurídico. Já tivemos reuniões com os dirigentes desses setores no sentido de o Iterpa atuar com mais transparência do que já vinha atuando e, a partir daí, ganhar ainda mais a confiança da sociedade paraense, como já vem ganhando nos últimos quatro anos de forma especial. Só assim iremos superar os desafios que temos pela frente.

Iterpa aponta fraude no registro em cartório das terras

O Iterpa garante ter havido fraude no registro em cartório das terras do Xingu. O que seriam títulos de aforamento entre dois mil e 4.356 hectares concedidos a antigos exploradores de látex e castanha de Altamira acabaram, na ponta do lápis, se transformando em imensas propriedades. Para chegar aos quase 5 milhões de hectares da Fazenda Curuá, um agrimensor chegou a transferir de lugar a rodovia Santarém-Cuiabá.

O Ministério Público Federal, depois de um levantamento cartográfico apoiado por satélite, concluiu que as supostas terras do grupo CR Almeida estão quase todas superpostas sobre oito áreas de propriedade da União Federal.

São elas: Floresta Nacional de Altamira; Terra Indígena Baú, dos índios caiapós; Terra Indígena Curuá; parte da Gleba Leite; parte da Gleba Jamanxim; parte da Gleba Curuá; Assentamento Nova Fronteira, do Incra; Assentamento Santa Júlia, também do Incra.

Muito mogno, ouro e confusão no país de Cecílio Almeida

O empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, comandante do grupo CR Almeida, iria pagar R$ 6 milhões pelo megalatifúndio do Xingu, mas na prática pagou pouco mais de R$ 100 mil ao falecido Umbelino Oliveira e seus irmãos para ficar com os 4,7 milhões de hectares das terras de Altamira.

Motivo: o contrato assinado previa o pagamento integral somente depois que as terras fossem legitimadas no Iterpa, o que nunca aconteceu.

A Incenxil, empresa dos Oliveira, por conta da transação, foi incorporada ao patrimônio dos irmãos e filhos de Cecílio Almeida. Por esse verdadeiro país, maior que Holanda e Bélgica juntos, ele pagou a miserável quantia de R$ 1,30 por cada hectare numa área onde predominam extensas faixas de terra roxa, as melhores da Amazônia.

Nessas terras, cobertas de florestas densas e incalculáveis riquezas minerais, além de um santuário de biodiversidade ainda desconhecido da ciência, existem 30 rios e 60 milhões de metros cúbicos de madeiras nobres, principalmente mogno, jazidas de ouro, cassiterita e garimpos de diamantes.

Para atravessar toda essa área de um extremo ao outro, um avião bimotor leva quatro horas de viagem.

Cecílio Almeida, agora travestido de preservador da Amazônia, já anunciou diversas vezes que pretende transformar suas supostas terras numa reserva ecológica. Antes, porém, terá de vencer as etapas judiciais dos recursos que Estado e Procuradoria da República estão preparando para tentar derrubar a decisão do juiz Ernane Malato.

É briga de cachorro grande para estremecer a floresta. E os bastidores da Justiça.

Procurador federal vê contradições na decisão do juiz

O procurador da República Felício Pontes Júnior é taxativo ao comentar a decisão do juiz Ernane Malato: "Extinguir o feito sem julgamento do mérito por considerar o Iterpa carecedor da ação por falta de prova da propriedade pública é uma expressão contraditória em si mesma". Felício ingressou no dia 22 de janeiro passado, na 2ª Vara Cível de Altamira, com embargo de declaração para modificar a sentença de Malato.

Criticando a sentença, ele argumenta que pelo sistema de repartição de jurisdição em vigor no Brasil, apenas a Justiça Federal pode declarar se há ou não interesse federal em uma determinada causa. Essa é posição unânime, diz ele, reiteradamente exposta pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

"A Justiça Federal, e não a Justiça Estadual, cabe dizer se há ou não, na causa, interesse da União, autarquia ou empresa pública federal", diz o acórdão 1840, cujo relator foi o ministro Milton Luiz Pereira. A súmula 150, do mesmo STJ, reitera os termos do acórdão.

Incra - Ainda que o Ministério Público Federal não tivesse legitimidade para figurar na causa, segundo Felício o simples fato de o Incra, como autarquia federal, entrar no processo, de imediato provoca a remessa dos autos à Justiça Federal. Mas defende a competência do MPF.

"Seja pela questão fundiária, patrimônio da União, seja pela questão indígena, não há possibilidade de o feito ser julgado pela Justiça Estadual", afirma o procurador. Felício também ataca o despacho em que Malato declarou a Justiça Estadual competente para julgar o caso.

"Foram dois falsos fundamentos em que ele se amparou. O primeiro é um disposito constitucional que trata de Direito Previdenciário, enquanto o segundo é um acórdão do TJE do Pará de 1976, lavrado pela desembargadora Lídia Fernandes. Nenhum deles se aplica a este caso", ataca o procurador federal.

Mistério - Ele recorda que a própria Incenxil, na primeira oportunidade em que se manifestou nos autos, arguiu a "incompetência absoluta" do juiz de Altamira para julgar a causa, requerendo o deslocamento do processo para a Justiça Federal.

O pedido do Ministério Público Federal de revogação do despacho de Malato no qual este se julgou competente para proferir a sentença simplesmente não consta dos autos, embora o MPF tenha a prova de que o documento foi remetido à comarca de Altamira.

Como se vê, o processo sobre os 4,7 milhões de hectares do Xingu guarda semelhança com o do personagem Joseph K, de Franz Kafka. Coisa estranha é o que não falta.

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