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Justica determina a interrupcao da expedicao 'Imagem do Javari'

Amazonia.org
03 de Mai de 2004

Justiça determina a interrupção da expedição "Imagem do Javari" A juíza federal substituta do Amazonas, Fabíola Bernardi, determinou na última sexta-feira (30/04), a interrupção da expedição "Imagem do Javari" em liminar concedida através de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal.
A expedição, comandada pelo sertanista e chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio - Funai, Sydney Possuelo, e pelo médico radiologista Sérgio Brincas, tinha como objetivo investigar uma epidemia infecto-contagiosa ainda desconhecida que vêm afligindo as tribos indígenas da região do Vale do Javari.
A decisão da juíza Bernardi se baseia no argumento de que as políticas de saúde das comunidades indígenas são de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde - Funasa: "Se a Funasa já desenvolve um programa de diagnóstico das doenças que vêm afetando as comunidades enfocadas, não vejo, a princípio, necessidade iminente na formação de expedição que, sem a coordenação daquele órgão - oficial -, proponha-se a realizar o exato mesmo trabalho".
A juíza acrescenta ainda que "cumpre ao Estado Brasileiro desenvolver, tão somente, políticas de saúde e bem estar social direcionadas a estas comunidades (indígenas)" e que a expedição "sugere que o Governo Brasileiro nada tem feito pelas comunidades em questão". Contraditoriamente, entretanto, determina que a decisão seja comunicada não apenas à expedição, mas também à própria Coordenação de Índios Isolados da Funai, órgão do governo federal.
A expedição pretendia percorrer cerca de 600 Km pelos leitos dos rios Itaqui e Ituí, realizando exames de raios-x e ultra-sonografia, além de exames de sangue para rastreamento de doenças infecciosas, principalmente hepatite e turberculose. O projeto contou com o apoio do Colégio Brasileiro da Radiologia e o patrocínio da Divisão de Imagens para a Saúde da Kodak
Além de determinar a interrupção da expedição, a juíza também proibiu a exibição de imagens dos índios do Vale do Javari, incluindo imagens de diagnóstico obtidas com os equipamentos fornecidos pela Kodak.
Em carta à juíza, o Conselho Indígena do Vale do Javari - CIVAJA - manifestou apoio às atividades da expedição e solicitou sua imediata retomada: "em razão dos benefícios proporcionados aos indígenas, não vemos qualquer obstáculo aos trabalhos médico e laboratoriais, sobretudo devido à importância de se divulgar a verdadeira situação da saúde indígena da região".
O Vale do Javari
O Vale do Javari corresponde a uma área de cerca de 85 mil km2, formado pela confluência dos rios Javari, Jaquirana, Curuçá, Itaquaí e Ituí, entre outros, no estado do Amazonas, próxima à fronteira com o Peru
À partir de 2001 começaram os relatos de mortes súbitas entre os índios da região. Segundo dados da expedição, mais de 20 índios morreram ano passado vítimas de doenças infecto-contagiosas. Dois tipos de hepatite (B e Delta) vêm se espalhando entre a população indígena; estima-se que cerca de 70% dos 3.916 índios da região estejam contaminados. Sérgio Brincas, idealizador do projeto, acredita que as doenças chegaram à área indígena pelo contato com o homem branco.
O Vale do Javari é habitado por diversas etnias indígenas não contatadas - talvez uma das regiões com maior concentração de tribos isoladas do planeta. Teme-se que as comunidades infectadas atuem como vetores, propagando a doença entre os índios isolados. A expedição pretendia examinar cerca de mil índios não isolados das tribos Matis, Marubo, Kanamari e Korubo. De acordo com Brincas: "a idéia é examinar os índios para diagnosticar e evitar que esse tipo de doença atinja aquelas comunidades isoladas, aqueles índios que recusam manter contato com a nossa sociedade".
A Funasa e o atendimento aos povos indígenas
Em fevereiro deste ano a Funasa anunciou a extinção dos repasses de recursos públicos federais a estados, municípios, organizações indígenas e outras instituições com os quais mantinha convênio para a execução de atividades relacionadas à saúde indígena. Desde então, a Funasa executa diretamente estas atividades.
A decisão da juíza Fabíola Bernardi vai de encontro aos setores do governo a favor da centralização das atividades na Funasa

Sem vergonha na cara. Pálida.
Um verdadeiro festival de preconceito assola o País, mancha a credibilidade das instituições do Estado e gera mortes.  O que se julgaria impossível após a aprovação da Constituição de 1988, com o reconhecimento da dívida histórica do Estado para com os índios, está hoje acontecendo e envolvendo diversas esferas do Poder Público, incluindo o executivo federal e estadual, a Justiça e até mesmo o Congresso Nacional.
A decisão proferida em 30 de abril por uma juíza federal substituta do Amazonas, atendendo uma paradoxal solicitação do Ministério Público, representa um fato grave, embora primário do ponto de vista jurídico.  No Vale do Javari já foram registrados pelo menos 16 óbitos entre indígenas, por uma epidemia mortal, ainda desconhecida, que ameaça atingir milhares de índios, incluindo populações contatadas e isoladas.  O Departamento de Índios Isolados da FUNAI conseguiu montar, com a colaboração de especialistas de renome e o patrocínio do Colégio Brasileiro de Radiologia, uma expedicão de alto nível para tentar diagnosticar a situação e estabelecer medidas preventivas.  Dados os altos custos do material médico necessário, conseguiu a doação de parte deste por uma importante empresa de materiais radiológicos.
Alega a juíza que - por ser a saúde dos índios tarefa da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA, vinculada ao Ministério da Saúde) - a própria realização da expedição "sugere que o Estado Brasileiro nada tem feito pelas comunidades em questão" e manifesta temor de que as imagens radiológicas dos índios sejam usadas pela empresa patrocinadora.  Por isso, manda encerrar imediatamente a expedição (em estágio avançado) sob pena de aplicar multa de 5 mil reais por hora ao Chefe do Departamento da FUNAI (que evidentemente, por sinal, não é considerada parte do Estado Brasileiro).  Obviamente a meritíssima não aplicou o mesmo princípio aos brancos, mandando fechar os hospitais e planos de saúde particulares no País inteiro, cuja existência poderia ser considerada, da mesma forma, um perigoso atestado da ineficiência do SUS.  No caso dos índios, parece que seu direito à sobrevivência é subordenado à boa imagem do Estado, mesmo que a sentença reconheça que "talvez o socorro... (da FUNASA) não venha em hora tão boa."
Está claro que a decisão da Justiça amazonense foi inspirada, se não instigada, por aqueles setores governamentais que - há alguns meses - estão engajados numa verdadeira campanha de difamação em relação aos convênios que - a partir de uma decisão do governo anterior - a FUNASA realizava com as organizações dos próprios índios.  Em suma, tudo indica que os argumentos grotescos que embasam a decisão judicial nascem de um conflito maior no âmbito do próprio governo federal.
Referido episódio se junta a diversos casos recentes que contribuem para caracterizar um quadro geral de retomada do preconceito.  O dos Cinta-Larga, em Rondônia, é exemplar: por anos foram fornecidas armas de fogo aos índios, dentro de um esquema de aliciamento em conluio com o Poder Público federal e estadual; na hora em que os índios as utilizam, se lança uma campanha contra os índios assassinos.  Inexiste porém uma iniciativa para punir os que forneceram as armas.  O gerente do garimpo de diamantes, Pandere Cinta-Larga, relata com detalhes o fato de ter negociado pessoalmente com o governador as atividades ilegais, sem que isso seja sequer investigado ou chegue a causar indignação.
Já no Congresso Nacional há um florescer de insultos e manifestações de desprezo.  Parlamentares que, em sessão oficial, definem os índios brasileiros em geral como "fedorentos, não educados e não falantes de nossa língua" nem sequer são processados por quebra de decoro parlamentar.  Outros, da base governista - que hostilizam a demarcação de terras indígenas por falta de "sentimento de brasilidade" por parte dos índios - continuam com cargo de relator em comissões sobre assuntos índigenas.
Todas essas manifestações acontecem num momento em que a omissão histórica em relação aos povos indígenas atingiu talvez sua maior dimensão.  Os dados de 2003 mostram um aumento de 57,3% do desmatamento em terras indígenas, em decorrência de invasões conhecidas e toleradas.  O programa de demarcação e vigilância de terras indígenas (PPTAL) continua há mais de um ano parado por razões supostamente burocráticas.  Houve reduções significativas de terras indígenas por pressões de invasores e outras são anunciadas, em áreas críticas como a do sul do Pará, apesar de a Constituição garantir que elas são "inalienáveis e indisponíveis".  Houve o citado retrocesso no atendimento de saúde.  Continua sem definição a aprovação do Estatuto do Índio e da legislação sobre lavra mineral, de acordo, mais uma vez, com o que está previsto pela Constituição.
Omissão e retomada do preconceito andam juntas e se alimentam mutuamente.  Podem gerar, inclusive, novos mortos, seja de doença, seja de espingarda.  É suficiente para o Presidente da República se preocupar com isso?

Amazonia.org.br, 03/05/2004

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