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Jajeroky jevy javya jova haguã

Nova escola - http://revistaescola.abril.com.br/
Autor: Ricardo Falzetta
01 de Mar de 2010

Em português, ''dancemos novamente para sermos felizes''. Em guarani, foi o jeito que um professor de Educação Física encontrou para mexer com a garotada de 1ª a 4ª série e recuperar antigas tradições indígenas adormecidas

Amambai (MS)
Ismael Morel é professor de Educação Física na Escola Mbo'eroy Guarani/Kaiowa, aldeia de Amambai, sul de Mato Grosso do Sul.Em 2006, ele foi eleito Educador Nota 10 e recebeu o troféu do Prêmio Victor Civita por ter ensinado danças guaranis aos seus alunos - todos dessa mesma etnia. Sim, na aldeia de Ismael é preciso aprender na escola algo que, em tese, deveria fazer parte da tradição cultural. Por que isso acontece?

A resposta está no processo histórico pelo qual passaram todas as nações indígenas que aqui viviam antes da chegada dos europeus, há mais de 500 anos, e que tiveram contato com o chamado mundo civilizado. Os guaranis, em particular, eram nômades. Ocupavam extensas áreas de terra e estabeleciam suas aldeias ora num local, ora noutro, conforme as condições de subsistência. Eram um povo alegre e amistoso. Dançavam para comemorar, para batizar seus filhos suas sementes. Dançavam para reverenciar a natureza, dançavam nas cerimônias religiosas. Com os processos de catequização e escravização disparados no período colonial, essa cultura milenar e a sabedoria acumulada havia gerações foram sendo anuladas à força e à custa de milhares de mortes.

A situação dos sobreviventes de Amambai neste começo de século 21 é o resultado de uma degradação que parece não ter fim. O trabalho de Ismael merece destaque e reconhecimento porque tenta interromper esse curso tortuoso da trajetória de seu povo.Confinados numa área demarcada que garante pouco mais de 3,4 mil metros quadrados por indivíduo, os 7 mil indígenas que vivem na aldeia praticamente esqueceram a idéia do deslocamento nômade. Não há mais espaço para a caça e sobrou muito pouco da mata, o rio está poluído, alcoolismo e drogas penetram facilmente na comunidade.Missões religiosas marcadas por doutrinas cheias de impedimentos promovem uma neocatequese que solapa ainda mais a cultura guarani. Dançar, nem pensar. Para os que já abandonaram a tradição - quase metade da aldeia -, é pecado.

O grande peso social e cultural do trabalho de Ismael equilibra-se com sua função pedagógica. "A dança, na perspectiva curricular atual, é tema de Educação Física a ser explorado em toda a Educação Básica", afirma o professor Marcelo Barros da Silva, selecionador do Prêmio Victor Civita de 2006. Ismael, ao tratar desse conteúdo, teve a sacada de optar pela dança do próprio povo. O movimento que resulta das coreografias desenvolve a força, a agilidade e a percepção rítmica (e faz muito mais pela cultura guarani).

Conflito interno

"Tudo começou quando eu, ainda adolescente, dançava com minha mãe em frente à nossa casa num dia de festa", conta o professor. Até então, ele seguia preceitos religiosos que nada tinham a ver com a tradição guarani, pois havia sido educado numa escola mantida por religiosos nas cercanias da aldeia. Surpreendido e reprimido por outras pessoas da igreja, que consideraram a cena uma ofensa, o jovem sentiu que aquela postura feria demais a cultura de seus antepassados. "Acho que superei um conflito interno e, naquele dia, resolvi abandonar tudo e decidi passar uma temporada fora para estudar." Da vizinha Dourados, alguns anos depois, Ismael voltou formado professor de Educação Física."Fui para a cidade com o objetivo de retornar e fazer algo por minha aldeia", lembra.

Com a vaga garantida na escola indígena (ainda há poucos professores graduados na comunidade), Ismael começou a pôr em prática seus planos. Numa viagem a São Paulo, a convite de uma colega de faculdade, ele conheceu o trabalho de índios guaranis que ainda preservam as danças.Na volta para casa, levava na mala um CD e um vídeo com as canções e as coreografias. Na primeira oportunidade, mostrou o material aos alunos. Foi o começo de uma batalha quase solitária com sua própria gente.

"Alguns pais, quando souberam que eu estava ensinando dança,proibiram os filhos de participar. Me acusaram de ser macumbeiro e fazer magia negra", relembra. Ismael, em várias ocasiões, esteve a ponto de desistir.Mas a alegria e o interesse do grupo que se formou deram impulso ao trabalho.

Depois de assistir ao vídeo repetidas vezes, a turma debateu as diferenças entre a língua que falam em Mato Grosso do Sul e em São Paulo.Obstinado, Ismael procurou as pessoas mais velhas da comunidade, que ainda preservam costumes, mesmo que apenas no ambiente familiar, e promoveu encontros entre os alunos e esses antigos líderes, bem menos influentes que outrora." Minha intenção foi colocar as crianças em contato com eles para que ouvissem as histórias, vissem como é importante conhecer nossa cultura e não tivessem vergonha de ser índios", revela Ismael.A tática deu certo. "Os estudantes ficavam perplexos com a sabedoria dos idosos", conta. Nesses encontros, pessoas como dona Élida, 62 anos, e o pajé Ramon, 60, fizeram verdadeiras palestras sobre rezas, danças e outros hábitos. A moçada anotava tudo no caderno. Ou quase tudo." Algumas tradições não podem ser escritas, apenas transmitidas oralmente, como nos ensinou o pajé", explica Ismael.

Ramon também esteve na escola. Em contato com o material de São Paulo, ele apontou pequenas mudanças que deveriam ser feitas de acordo com a tradição caiová, um dos três subgrupos guaranis (os outros são o ñandeva e o mbya). "Fiquei muito feliz em poder falar com as crianças", diz Ramon. "A gente faz o que pode.Nossa casa de rezas foi queimada alguns anos atrás e já não há mais madeira nem disposição para erguer outra.Para sobreviver, eu tenho de ir para a roça todos os dias e já não sobra mais tempo para a pajelança."

Taquara de defesa

O pajé ainda mostrou como produzir a taquara decorada que os meninos empunham na jerojy, dança de defesa corporal que deveria ser ensinada na pré-adolescência. Instrumentos musicais, como o chocalho, e a pintura da pele com tinta à base de sementes já haviam caído no esquecimento. Mas Ismael, que também lecionava Arte em 2005, recuperou esse tipo de técnica, essencial para o guachiré (dança da alegria) e o guahú (dança ao som de uma melodia mais triste, que sustenta o lamento do pajé quando algo de ruim acontece).

Além de conversar com as pessoas mais velhas da comunidade, as crianças foram estimuladas a entrevistar os pais e a procurar informações sobre a formação da aldeia, sua localização e os problemas atuais. A poluição da água, por exemplo, é resultado do não-tratamento de efluentes despejados rio acima por frigoríficos e matadouros de porcos.Na sala de aula, os alunos leram e ouviram mais histórias sobre o tekoha (local onde vivem) e produziram textos.

Com as informações levantadas e as coreografias preparadas, a turma passou para os ensaios até a primeira grande apresentação, no dia 19 de abril de 2005. "Foi um sucesso.Vieram muitas pessoas da cidade e os pais dos alunos que dançaram ficaram muito contentes", comenta Ismael. Depois disso, o grupo passou a se apresentar em todas as festas comemorativas da região, inclusive no aniversário de Amambai.

A situação na aldeia, no entanto, não mudou muito. Ismael ainda enfrenta olhares atravessados de alguns moradores, mas ele e as crianças se tornaram referência. Se não consegue provocar mudanças imediatas no atual modelo social da comunidade, o Educador Nota 10 certamente está garantindo um futuro melhor para os guaranis.Até hoje, quando se pintam e se preparam para as apresentações, os jovens demonstram certa timidez no contato com os karai (brancos). Mal sabem eles que estes é que ficam tímidos frente à beleza e sabedoria de sua história.

1. A lição dos mais velhos

Assim que começou a ensinar dança nas aulas de Educação Física, Ismael promoveu o contato da turma com antigos líderes da aldeia, como dona Élida. A sábia senhora falou durante horas com os alunos...

O sol quente não tirou o ânimo de dona Élida, que, em seguida, dançou e cantou sem parar o guachiré, uma das danças que mais tarde seriam reproduzidas nas aulas de Ismael.

...que, em guarani, anotavam suas impressões no caderno para depois produzir textos em sala de aula.

2. As histórias do pajé

A pesquisa prosseguiu com o pajé Ramon, que, na escola, revelou lendas e mitos às crianças e ensinou a produzir adereços, como a taquara adornada para o jerojy, dança de defesa corporal. O primeiro passo é descascar o desenho que se quer.

Em seguida, ensina o pajé, queima-se toda a superfície numa fogueira para escurecê-la.

O resultado esperado surge ao retirar a parte que não havia sido descascada, criando um fundo claro e deixando o desenho em destaque.

3. Os ensaios

Assim que começaram os ensaios na quadra da escola, a comunidade estranhou. A dança já não era mais algo típico dos guaranis de Amambai. Mas Ismael encontrou força na empolgação das crianças e seguiu adiante.

4. A pintura

Pintar a pele com tinta à base de sementes também havia caído no esquecimento da aldeia. O professor fez reviver a tradição: traços paralelos para os meninos e circulares para as meninas.

5. As apresentações

Como um diretor teatral, Ismael se afasta na hora da apresentação e deixa as crianças à vontade para mostrar a coreografia ensaiada. Mas não resiste e cai na dança também.

PALAVRA DO CONSULTOR

Documentação é a cereja do bolo

Na opinião do professor de Educação Física Marcelo Barros da Silva, formador de professores e consultor de programas socioeducativos, o principal destaque do trabalho realizado pelo professor Ismael Morel é a relevância social e cultural. "O contexto do trabalho é muito complicado. Ele precisa de muita bravura para superar as dificuldades e a incompreensão de alguns setores da comunidade", explica o consultor. Para dar ainda mais força ao projeto, Marcelo sugere que Ismael tenha um cuidado especial com a documentação. "Boa parte do que ele descreve sustenta-se apenas por relatos orais que ficam gravados na memória. Se as crianças registraram suas impressões ao conversar com os maisvelhos, penso que o Ismael deveria fazer também um registro mais detalhado como professor, destacando pontos que podem ter passado despercebidos para os estudantes." Esse material, segundo Marcelo, serviria de base para aprofundar as análises em sala de aula. "Outra ferramenta muito proveitosa, se a escola tiver recursos, é a gravação em áudio ou vídeo das conversas, dos ensaios e das apresentações", acrescenta. O consultor ainda sugere que Ismael fique atento às questões de gênero, algo que pode enriquecer o debate. "Ao contrário do que eu imaginava, quando Ismael propôs a dança aos alunos, os meninos ficaram mais animados do que as meninas", conta Marcelo.

Quem é Ismael

Ismael Morel tem 26 anos, é filho de mãe indígena e pai paraguaio. Formado em Educação Física pela Unigran, de Dourados (MS), tem pós-graduação em Psicomotricidade e agora batalha por uma vaga de mestrado. Entre as diversas qualidades que apresenta, uma se destaca: jamais levanta a voz. Reside na argumentação clara e objetiva seu poder de convencer as pessoas e, sobretudo, seus alunos. Por mais que a turma esteja na maior algazarra, comandos rápidos e certeiros como uma flecha, disparados em guarani pelo professor, recuperam a ordem e a disciplina. Neste ano, Ismael foi convidado para uma conversa com o prefeito de Amambai, que pediu que ele se dedique em tempo integral ao trabalho com dança. E as conquistas continuam. Recentemente, ele foi eleito um dos vencedores do Prêmio Culturas Indígenas, promovido pelo Ministério da Cultura, e viaja em breve a Brasília para receber o troféu.

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