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Isolados, índios da etnia zoé são desafio para a Funai

OESP, Nacional, p. A14
28 de Jun de 2009

Isolados, índios da etnia zo'é são desafio para Funai
Aldeia com 245 remanescentes vive sob ameaça de ONGs, garimpeiros e madeireiros

Felipe Recondo

A área indígena Cuminapanema, no norte do Pará, abriga um grande sucesso e um dos maiores desafios da política indigenista da Funai. Os zo'é, etnia de recente contato com o homem branco, foram salvos pela Funai em 1989 de uma epidemia de gripe levada por missionários evangélicos. Hoje, preservados, eles mantêm seus costumes e sua cultura, protegidos do contato com o branco. A dúvida agora é como preparar esses índios para o contato inevitável que terão em pouco tempo com a realidade fora das aldeias.

Por enquanto, a política da Funai tem sido preservar ao máximo esses 245 índios numa frente de proteção etnoambiental. Mas os próprios zo'é mostram-se ansiosos pelo contato com o que está fora da área indígena. A depender da Funai, essa aproximação demorará pelo menos dez anos. Até lá, tentarão descobrir como preparar os zo'é para ter esse convívio e manter suas tradições.

"Muitos nos criticam porque criamos uma redoma aqui. Mas não temos uma cartilha para saber como faremos essa transição. Não temos fórmula matemática. Nós só sabemos o que queremos", afirmou João Rabelo, funcionário da Funai que cuida há 13 anos da área.

"Eles precisam ter um tempo necessário para que possam compreender o risco desse contato para eles. Colocá-los em contato imediatamente com a civilização ocidental seria um ato de violência", resume o presidente da Funai, Márcio Meira. "Precisamos fazer essa transição para que isso aqui não seja uma vitrine do exótico."

Nunca o órgão teve como - ou simplesmente não era essa a sua política - preparar os índios para o contato. "Essa é a política da Funai hoje com relação aos índios isolados. Não se procura contato para que não haja interferência, mas se os índios quiserem o contato, a Funai deve mediá-lo para que não seja devastador", afirmou o ministro da Justiça, Tarso Genro.

Enquanto não libera essa aproximação entre brancos e índios, a Funai tentará fortalecer a cultura dos zo'é e mostrar, paulatinamente, o que aconteceu com as outras etnias após o contato. Muitas foram dizimadas, outras abandonaram seus hábitos ou suas tradições.

"Queremos fazer isso para que estejam fortes para quando houver esse contato, queremos evitar um deslumbramento deles pelos nossos bens, o que pode causar uma desestruturação dos seus costumes. É importante que esse povo vá forte para esse contato", explicou o coordenador-geral de Índios Isolados da Funai, Elias dos Santos Bigio. "Se não houvesse isso, os índios seriam levados à promiscuidade, ao alcoolismo", acrescenta João Lobato.

O primeiro contato dos zo'é com os brancos, sem a intervenção da Funai, por pouco não provocou a extinção da etnia. A epidemia de gripe na década de 1980 provocou a morte de um quarto dos índios da área.

Quando a Funai chegou à região para intervir e expulsar os missionários, havia apenas 131 zo'é nas aldeias. Seis anos depois, o número havia subido para 155. Hoje, são 245 índios.

Um dos principais empecilhos para preservar os zo'é desse contato imediato é a constante pressão de missionários interessados em levar a religião católica ou evangélica para dentro das aldeias. A Funai tem detectado que índios Wai-Wai, que já foram contatados por esses missionários, tentam se aproximar dos zo'é. Como também são índios e habitam uma área próxima, a Funai não tem como proibir a aproximação.

Para evitar a presença de missões religiosas, o governo estuda um decreto que submeterá a um controle rígido o ingresso de organizações não-governamentais em áreas indígenas. O texto está parado na Casa Civil, mas será retomado por pressão do Ministério da Justiça. Além disso, a área é alvo constante do interesse de garimpeiros e madeireiros. A grande extensão e a dificuldade de acesso às aldeias dificultam a fiscalização. A Funai cobra a presença e fiscalização por parte da PF.

Viagem a convite da Funai

'Estado' presenciou epidemia

Uma equipe do Estado chegava há 20 anos à área indígena ocupada pelos zo'é para acompanhar a intervenção da Funai e expulsão dos integrantes do Missão Novas Tribos do Brasil que tentavam evangelizar os índios.

Naquele momento, uma operação emergencial de saúde foi montada na tentativa de salvar os zo'é de uma epidemia de gripe. Os missionários estavam na região havia seis anos, mas a Funai demorou a agir. Por pouco, os zo'é não foram dizimados.

Passadas duas décadas, outra equipe do Estado volta à região. Desta vez acompanha o presidente da Funai, Márcio Meira, o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o diretor da polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, que ainda não tinham visitado a área. O cenário encontrado é distinto. Um médico da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) avalia periodicamente o estado de saúde dos zo'é e uma dentista dá plantão na área. Com esses cuidados, caíram a zero os casos de mortalidade infantil e desnutrição.

"Eles estão muito melhor hoje do que no passado", avaliou a antropóloga Dominique Gallois, que esteve na reserva antes da chegada da Funai, em 1989. "Esse modelo serve para vermos como erramos no passado."

Mas Dominique critica o fato de a Funai não manter a qualidade nos cuidados nas outras áreas. "Conseguiu-se aqui, graças à atração que os zo'é conseguem ter em termos de imagem, uma política de proteção que deveria ser a regra."

Recepção com desconfiança, curiosidade, paz e história

O avião da Polícia Federal se aproxima de uma pista esburacada na área indígena Cuminapanema, no norte do Pará, em meio à Floresta Amazônica ainda preservada. Ao lado, algumas dezenas de índios aguardam, sisudos, o pouso da aeronave e a descida dos visitantes.

Assim que estaciona e a hélice para de girar, o avião é cercado. A aeronave não é mais novidade, apesar de ainda despertar a curiosidade dos zo'é, mas cada homem branco que desce na região é alvo do interesse dos índios. Do avião descem o ministro da Justiça, Tarso Genro, o diretor da PF, Luiz Fernando Corrêa, e o presidente da Funai, Márcio Meira.

Os índios se aproximam sem cerimônia. Os homens enfeitados com pedaços de madeira cravados pouco abaixo do lábio inferior, o poturu, e um pequeno filete de palha amarrado na ponta do pênis; algumas mulheres enfeitadas com um arco feito de penas brancas retiradas do urubu real, outras poucas com o corpo pintado de vermelho. Do tronco linguístico Tupi, os zo'é são afáveis, pacíficos, passam longe da guerra.

Logo eles estendem a mão e fazem a pergunta que se repetirá insistentemente. "Nome?", uma das poucas palavras que alguns conhecem do português.

Em seguida, os visitantes caminham em direção ao posto da Funai localizado na Frente de Proteção Etnoambiental Cupinapanema, uma área de 2,1 milhões de hectares entre os rios Cuminapanema, Urucuriana e Erepecurú destinada aos 245 zo'é, uma das últimas etnias preservadas do não-índio.

O pouco contato com pessoas de fora estimula a vontade dos zo'é de viajar, de conhecer as cidades. "Brasília grande? Brasília bonita?", questiona um dos zo'é ao ministro Tarso.

Os zo'é mantêm ainda hoje inalterados seus costumes e hábitos alimentares. São nômades, revezam-se entre as 11 aldeias. Vivem da caça, coleta de frutas, da farinha de mandioca e de castanhas. Não há cacique. "Chefe não tem", diz um zo'é.

As lideranças são descentralizadas. É como se cada família tivesse uma figura mais importante e respeitada. Os homens podem ter mais de uma mulher, e vice-versa.

Os poucos objetos que recebem da Funai - facões, enxadas e lanternas - não substituem os já usados pelos índios. Justamente por não dependerem dos bens vindos de fora, são considerados índios de recente contato. Para manter os zo'é assim, os poucos visitantes autorizados a entrar na área são submetidos a um controle rígido.

Assim como a área dos zo'é, a Funai mantém outras cinco frentes de proteção: no Amazonas, Acre, Mato Grosso e Rondônia. Nessas outras, os índios permanecem isolados, sem qualquer contato com o branco. Indigenistas da Funai sabem apenas que é preciso preservá-los após o inevitável contato com o homem branco.

Ara'ba espera o tempo passar

Ara'ba está sentenciada por sua etnia: morrerá sozinha, num pequeno galpão de chão batido, acompanhada no máximo por brancos, funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai). Inicialmente por opção e depois pelas circunstâncias, Ara'ba viveu a maior parte da vida isolada dos demais índios zo'é na área Cuminapanema, no norte do Pará. Agora, quando se aproxima dos 80 anos, vive abandonada seus últimos dias.

Ara'ba passa as horas numa rede de palha feita pelas próprias mãos e ao lado de uma fogueira alimentada toda noite. Seu único relacionamento com os índios da etnia é precário. Periodicamente, recebe palha retirada da floresta e algodão. Com o material, Ara'ba tece redes e as troca depois por comida - beiju, farinha e castanhas, basicamente - levados pelos zo'é. Sem esse último resquício de convivência e sem os afazeres, provavelmente seria vencida pelo tédio.

Até chegar a esse ponto, Ara'ba viu de perto cinco tragédias. Assim que se casou, foi morar com o marido numa oca isolada das demais aldeias. Os dois viveram assim boa parte da vida. Não tiveram filhos.

Até que um dia seu marido morreu. Sozinha, ela passou a perambular pela floresta à procura de um lugar para morar e de alguém que lhe assistisse. Encontrou numa aldeia próxima o índio Soarim, que a levou para a própria oca. Lá, Ara'ba teria a companhia de Soarim, de sua mulher Dig e sua mãe. Mas a família aos poucos foi se desfazendo.

A primeira a morrer, de causas naturais, foi a mãe de Soarim. As duas tinham a mesma idade e tornaram-se amigas no tempo em que conviveram. "Meu coração dói", lamentou no dia do enterro.

Ara'ba permaneceria sob a proteção de Soarim e de Dig. Em 2007, Soarim estava no alto de uma árvore, tentando retirar um filete usado para produzir as flechas e lanças que os zo'é usam para caçar. Com o facão, batia seguidamente no caule.

O barulho atraiu uma onça que passava perto. Quando desceu da árvore, Soarim foi atacado. Morreu quase instantaneamente. Ara'ba ainda tinha Dig. Mas por pouco tempo. Sentindo a perda do marido, Dig cortou a própria garganta com um facão.

Foi a quarta morte no caminho de Ara'ba. Ela precisava buscar outra companhia, mas a única que se dispôs a acolhê-la, Deaby, morreu depois.

Definitivamente só, Ara'ba foi adotada pelos funcionários da frente de proteção dos zo'é. Ali permanecerá até morrer sob cuidados de um médico e alimentada pelos funcionários da Funai. Sua saúde é perfeita. Sua memória idem.

Ao final da vida e depois de tantos percalços, Ara'ba poderá ter ao menos uma alegria. Será submetida a uma cirurgia de catarata no posto da Funai. "Queremos que ela enxergue bem ao final da vida", disse João Rabelo, o funcionário da Funai que a acolheu. Enquanto espera, Ara'ba permanece sozinha, acompanhada somente por um mico de estimação, amarrado pelo pescoço para também não deixá-la.

OESP, 28/06/2009, Nacional, p. A14

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