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Isolada, Boa Vista sofre falta de combustivel

FSP, Capa e Brasil, p.A1, A8-A9
08 de Jan de 2004

Roraima pede intervenção federal para resolver crise
O governador de Roraima, Flamarion Portela, cobrou do governo federal soluções para a crise no Estado, cujacapital está isolada devido a manifestações de índios e fazendeiros.
A razão dos protestos é a criação de uma área indígena equivalente a 7,7% do território do Estado numa região onde existem lavouras de arroz.
Ontem, índios tentaram invadir a Diocese de Boa Vista. Na cidade falta combustível, e o comércio fechou.

QUESTÃO INDÍGENAEstradas de acesso à capital de Roraima continuam bloqueadas no 2o dia de protestos contra reservaIsolada, Boa Vista sofre falta de combustível
JOSÉ EDUARDO RONDONDA AGÊNCIA FOLHA A cidade de Boa Vista começou ontem a enfrentar a falta de combustíveis em razão do bloqueio das estradas do Estado pelos manifestantes que protestam contra a homologação da terra indígena Raposa/ Serra do Sol, em Roraima. Fazendeiros e garimpeiros do Estado condenam a homologação. Os índios estão divididos.Ao final do segundo dia de protestos, 90% dos cerca de 40 postos da capital já estavam sem combustível, segundo o presidente interino do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de Roraima, Abel Mesquita. O centro de distribuição da Petrobras fica em Caracaraí, a 134 km de Boa Vista. Com o bloqueio, os caminhões não conseguem alcançar a capital.Os comerciantes de Boa Vista baixaram as portas em apoio aos manifestantes, tal como já haviam feito no dia anterior. As sedes da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) permaneciam invadidas por manifestantes. Até a conclusão desta edição, um missionário e dois padres tomados anteontem como reféns continuavam detidos, segundo a Polícia Federal.Ontem pela manhã, um grupo com cerca de 20 indígenas tentou invadir o prédio da catedral de Boa Vista, mas não teve êxito. Segundo o padre Edson Damian, os índios entraram na igreja e o ameaçaram. "Eles disseram que voltariam, com mais gente, e invadiriam a igreja", declarou.Após ser ameaçado, o padre chamou a polícia, que interceptou o grupo -que viajava em duas camionetes- nos arredores da catedral. Os indígenas foram levados para a Funai.ProtestosOs protestos começaram anteontem, 15 dias depois que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciou que será realizada ainda neste mês a homologação da terra indígena Raposa/ Serra Sol -uma área que compreende uma extensão de terra de 1,75 milhão de hectares, equivalente a quase 12 vezes o território do município de São Paulo.Dentro da área, vivem, segundo dados do Censo 2000, 19 mil pessoas, sendo 7.000 não-índios. De acordo com o Ministério da Justiça, ao todo, há hoje 14.719 índios na área. A principal queixa dos manifestantes é que a proposta do Ministério da Justiça vai homologar a área como contínua, ou seja, incluindo as cidades e plantações (sobretudo de arroz) dentro de seus limites. Com isso, os não-índios -fazendeiros e garimpeiros- terão de ser removidos.Alguns índios são contrários à homologação da reserva como contínua porque alegam que as comunidades indígenas ficariam isoladas dentro da reserva."Manipulação"Outros índios, favoráveis à medida, acham que o isolamento não ocorrerá e que eles serão beneficiados com a homologação.O chefe de divisão de assistência da Funai em Boa Vista, Manoel Tavares, disse que os índios que são contrários à homologação da reserva são manipulados pelos produtores de arroz do Estado."Esses protestos são orquestrados pelos produtores de arroz, que manipulam as lideranças indígenas", declarou Tavares. Segundo Tavares, a Funai aguarda que a polícia retire os manifestantes do prédio da sede do órgão.Para o coordenador do CIR (Conselho Indígena de Roraima), Jaci José de Souza, que é favorável à homologação da terra indígena como uma área contínua, a culpa pelos protestos é do governo federal: "Se era para homologar a área, o governo federal tinha de ter feito isso, e não avisado antes. Com o aviso por parte do ministro da Justiça, as pessoas que são contrárias à homologação tiveram tempo para se organizar", disse.

Colaborou ALESSANDRA KORMANN, da Agência Folha

Juiz determina perícia sobre a demarcação
KÁTIA BRASILDA AGÊNCIA FOLHA, EM MANAUS O juiz federal Helder Girão Barreto determinou a realização de uma perícia técnica por uma comissão interdisciplinar na reserva indígena Raposa/ Serra do Sol. O laudo da comissão embasará a sentença do magistrado sobre a ação popular que questiona, desde 1999, a demarcação contínua da área.Se a ação for julgada procedente, abre-se uma brecha para questionar a homologação da reserva, anunciada pelo ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça). A portaria é base do decreto de homologação, que pode ser assinado a qualquer momento pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Essa homologação vai ficar condicionada porque ela está sub judice. Não sei se o presidente homologaria ou não, a portaria está sendo questionada judicialmente. Então ela [a portaria] pode ser mantida como está [demarcação contínua] ou pode ser simplesmente anulada, como pede a ação popular", afirmou o juiz à Agência Folha.A comissão de cinco peritos, que serão remunerados pela União [a reportagem apurou que seriam gastos R$ 100 mil], é formada por um antropólogo, um geólogo, um economista, um agrônomo e um especialista em relações internacionais.Segundo o juiz, a demarcação não é de interesse exclusivo dos índios. "Quando chegava um processo aqui eu sempre via que a base para o juiz dar uma sentença era apenas um parecer antropológico. Eu achava muito pouco para um juiz dar uma sentença porque essa questão da demarcação não é só de interesse dos índios, interessa a todo mundo que está em volta. Nomeei essa comissão interdisciplinar para que ela me mostre com mais elementos quais seriam as consequências da demarcação da forma como está proposta".A demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol começou a ser discutida pela Funai em 1977 -que na época iniciou a identificação da área na qual vivem hoje, além dos índios, garimpeiros e fazendeiros (sobretudo produtores de arroz).A ação popular interposta por advogados de Roraima quer a nulidade da portaria ou a revisão desta área para descontínua, ou seja, deixando três cidades na área de 1,57 milhão de hectares. A ação argumenta que a demarcação inviabiliza a economia do Estado.Em 2002, em outra ação, o STJ negou liminar pedida pelo governo de Roraima para impedir a homologação da área. A portaria da demarcação foi assinada em 1998 pelo então ministro da Justiça, Renan Calheiros, que declarou a reserva posse permanente dos índios das etnias macuxi, uapixana, ingaricó e taurepang. No processo de demarcação, a Funai emitiu o laudo antropológico sobre a reserva e ouviu todos as partes interessadas. Desde então, já indenizou com cerca de R$ 1,5 milhão cerca de 37 fazendeiros.
Governador e Planalto divergem sobre demarcação de terrasPró-manifestantes, Flamarion exige ação da União para área
DA AGÊNCIA FOLHA O governador de Roraima, Flamarion Portela, 48, investigado por uma força-tarefa que apura desvio de dinheiro da folha de pagamentos do Estado, cobrou ontem do governo federal "soluções" para o caso da terra indígena Raposa/Serra do Sol.Flamarion disse à Agência Folha que "o governo federal terá de apresentar soluções para os problemas que ocorrerão" caso a terra indígena seja homologada como área contínua, como prevê o Ministério da Justiça.A demarcação da área é "contínua" porque inclui cidades e fazendas que estão em seus limites.Segundo ele, o remanejamento das pessoas que terão de deixar a área e a forma que será adotada para escoar a safra de grãos local são os principais problemas que o governo federal terá de enfrentar caso a demarcação contínua seja homologada. O governo de Roraima defende que seja feita uma demarcação não-contínua na área, deixando de fora cidades, estradas e algumas propriedades.Flamarion era vice de Neudo Campos (PP) e assumiu o governo em seu lugar em abril de 2002. Em outubro daquele ano, se reelegeu governador pelo PSL, com a bandeira da demarcação não-contínua da terra indígena.Em 18 de março do ano passado, Flamarion se filiou ao PT. No mesmo dia, o presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), dom Gianfranco Masserdotti, disse à Folha que a filiação levantou "suspeitas" sobre uma possível "moeda de troca" entre o governo federal e o do Estado na questão da homologação da terra indígena. De acordo com o Cimi, o PT teria garantido a Flamarion que, antes de ser assinada, a homologação seria "discutida" com o governo roraimense. Na época, Flamarion negou qualquer tipo de troca de favores na questão.Em novembro passado, o "escândalo dos gafanhotos" (que havia sido noticiado pela primeira vez em 2002) voltou à tona com a prisão por alguns dias do ex-governador Neudo Campos.A PF e o Ministério Público investigam se Flamarion foi conivente e sustentou o desvio em sua administração. Pressionado pela direção do partido, em 12 de dezembro Flamarion pediu afastamento do PT por 90 dias.Dez dias depois de seu afastamento, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que a homologação como área contínua da reserva indígena Raposa/ Serra Sol ocorrerá neste mês.Flamarion afirmou que a intenção do governo estadual, até o momento, é de apenas "acompanhar" as manifestações.Segundo o governador, nos próximos dias deve ir até Boa Vista, novamente, uma comissão interministerial para discutir pontos da homologação com lideranças indígenas e rurais do Estado.Questionado pela reportagem se há um descaso do governo em relação aos protestos no Estado -já que Flamarion é a favor das reivindicações dos manifestantes-, o governador disse haver não um descaso, mas sim "um acompanhamento detalhado da situação pelo governo"."Mandamos para a região em que os padres estão sendo mantidos reféns soldados da tropa de elite da PM. Adotamos, até o momento, o caminho da negociação." (JOSÉ EDUARDO RONDON)
Bastos tentará resolver impasse em encontro
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, vai se reunir com o governador Flamarion Portela e a bancada de Roraima no Congresso até o fim desta semana para tentar resolver a homologação da reserva indígena de Raposa/ Serra do Sol, naquele Estado.A homologação, que vem se arrastando desde 1998, tomou contornos políticos desde anteontem, quando índios e fazendeiros invadiram prédios públicos e bloquearam os acessos à capital Boa Vista, na avaliação do governo federal. No encontro, o ministro tentará, mais uma vez, convencer o governador a retirar fazendeiros e não-índios da área já demarcada como reserva."Bem que o governador poderia assentar logo essas pessoas", disse o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes.O governo federal vem tentando convencer Flamarion desde o ano passado a retirar os 665 moradores de cinco vilas que ficam dentro da reserva -Surumu, Água Fria, Uiramutã, Socó e Mutum. A idéia é transferi-las para outra área federal de Roraima.Além deles, há 67 núcleos rurais no interior da reserva que também devem ser retirados e os moradores, indenizados. Segundo avaliação do governo federal, há também áreas griladas, interesses de mineradoras e cerca de 25 mil hectares de mata nativa já devastados por fazendeiros.Flamarion, que se licenciou do PT devido ao "esquema dos gafanhotos", diz que as plantações de arroz dos núcleos rurais são fundamentais para a economia do Estado. Mas esse argumento é recebido com ceticismo em Brasília.O esquema dos "gafanhotos", apelido dos funcionários-fantasmas que "comiam" a folha salarial do Estado, está sob investigação da PF. O ex-governador de Roraima, Neudo Campos, chegou a ser preso por suspeita de envolvimento no esquema e agora responderá a processo.Ao todo, há 14.719 índios, em 148 aldeias, no 1,751 milhão de hectares da Raposa/ Serra do Sol. A reserva é a 12ª em tamanho na região Norte. (IURI DANTAS)
Dependência gera apoio indígena
DA REPORTAGEM LOCAL Com grande absorção de elementos da cultura branca e ocupando áreas próximas de grandes fazendas ou cercadas por elas, muitos índios do mesmo grupo dos que moram na Raposa/Serra do Sol, em Roraima, criam laços de dependência econômica e adotam "a estratégia de associação com os poderes locais", afirma o professor titular de antropologia da UFRJ João Pacheco de Oliveira, que só no ano passado visitou três vezes a região.É essa estratégia -"não é correto falar em cooptação"- que explica o apoio de índios de Roraima da etnia macuxi aos interesses dos fazendeiros, diz Oliveira.Muitos macuxi (etnia predominante, que se associa a outras, como ingaricó, taurepangue, uapixana e patamona) criam, segundo o antropólogo, "relações de dependência muito forte" com fazendeiros, políticos e governo. E acabam se opondo aos interesses da principal entidade representativa dos índios no Estado, o CIR (Conselho Indígena de Roraima), favorável à unidade da reserva Raposa/Serra do Sol.Júlio Macuxi, liderança da entidade, diz que esses grupos recebem "benefícios" e temem a perda de empregos e benesses caso a atividade dos fazendeiros seja prejudicada. Mesmo dentro da reserva, "há rizicultores com grande poder econômico que investem nas comunidades, dão salários", ele diz.Os macuxi e etnias associadas são bastante diferentes do outro grande grupo indígena de Roraima, os ianomâmi. Além da maior absorção da cultura dos brancos entre os macuxi, as línguas e os grupos têm origens diferentes, diz o antropólogo. (RAFAEL CARIELLO)

FSP, 08/01/2004, p. A1, A8-A9

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