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Integridade territorial Yawanawá: uma questão de reparação e justiça

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Ney José Brito Maciel
05 de Mar de 2006

Ocupo este espaço, a convite do amigo Txai Terri, com objetivo de
fazer algumas observações sobre o processo de redefinição dos limites
da Terra Indígena (TI) Rio Gregório, ocupada pelos povos Yawanawá e
Katukina. O foco deste artigo é principalmente mostrar o esforço de
suas lideranças pelo reconhecimento do direito de ocupar as terras que
habitam, imemorial e tradicionalmente.

Antes, como coordenador do Grupo Técnico (GT) que, em 2004, realizou
os estudos que resultaram na proposta de redefinição dos limites dessa
terra indígena, desejo, de público, compartilhar a preocupação quanto
à morosidade do processo, explicitada na carta enviada pelas duas
organizações Yawanawá à presidência da FUNAI, em final de janeiro de 2006.

Apesar do momento atribulado pelo qual passa a política indigenista,
os responsáveis pelo andamento do processo de revisão de limites dessa
terra devem agilizar as medidas administrativas cabíveis, por
reconhecer que os Yawanawá não reivindicam nada além do que é a
própria obrigação do Estado, conforme estipulado no Artigo 231, do
Capítulo VIII ("Dos Índios"), da Constituição Federal (CF) de 1988:
"são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam (...)".

Histórico da regularização

Em 1977, o Estado brasileiro deu início ao processo administrativo de
reconhecimento do direito dos Yawanawá e Katukina a uma terra
indígena. Naquele ano, um GT realizou os primeiros levantamentos de
populações e áreas indígenas na região. Alceu Cotia Mariz, funcionário
da FUNAI, falecido ano passado em Brasília, coordenou esse GT.

Essas ações faziam parte do empenho do governo federal em reativar
economicamente a região, após a desarticulação da economia da
borracha. Não por coincidência, os seringais, sob intervenção direta
de bancos estatais, saíam das mãos de antigos seringalistas para
empresas do centro-sul do país. Partes dos seringais dos rios
Gregório, Acuraua e Tarauacá foram transferidos do ex-senador Altevir
Leal à Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial
do Acre (Paranacre), que passou a se declarar proprietária de uma área
de 453.000 hectares, que incluía terras ocupadas tradicionalmente
pelos Yawanawá e Katukina.

Foi para responder às demandas da Paranacre que a FUNAI enviou, em
1982, um segundo GT ao rio Gregório. Sob coordenação de Artur Nobre
Mendes, atual Diretor de Assuntos Fundiários (DAF), este GT propôs a
delimitação de uma área com superfície de 92.860 hectares.

Foi a primeira terra indígena demarcada no Acre, em 1984. Registrada
no Cartório de Tarauacá três anos depois, e homologada em 1991, essa
área não contemplou vários lugares importantes, do ponto de vista
ambiental, econômico e cultural. Além das nascentes do rio Gregório,
área de relevante refúgio de fauna e flora, excluiu dezenas de
igarapés, lagos, poços e barreiros, usados pelos Yawanawá e Katukina
em suas atividades sócio-econômicas. Ficaram desprotegidos também
locais com presença de artefatos históricos, como urnas funerárias e
cemitérios, que marcaram a história de vários outros grupos Pano que
ali viveram.

Por que ambos GTs não responderam devidamente às demandas territoriais
indígenas? Vários foram os motivos. Primeiramente, as decisões sobre
os limites da terra foram tomadas exclusivamente por funcionários que
pouco sabiam sobre a realidade local. Só em 1976, um ano antes do
primeiro GT, foi implantada a Ajudância do Acre (AJACRE) em Rio
Branco, subordinada à 8ª Delegacia Regional da FUNAI, de Porto Velho.
O contato da AJACRE com os povos indígenas da região era ainda
incipiente e os técnicos responsáveis pelos GTs, vindos de Brasília,
realizaram viagens bastante breves ao rio Gregório.

Em segundo lugar, os próprios povos desconheciam seus direitos,
previstos na legislação. Desconheciam também as atribuições do órgão
indigenista e os procedimentos utilizados para a identificação de uma
área indígena. Além disso, os técnicos da FUNAI, com base no arcabouço
assimilacionista da tutela, então vigente, mantiveram os indígenas
afastados dos processos de decisão e definição dos limites de sua terra.

Por fim, as relações interétnicas, durante oitenta anos de dominação
no seringal, tinham fragmentado suas organizações política e
econômica. Sentindo-se frágeis diante das pressões públicas e
privadas, os Yawanawá e Katukina não conseguiram impor suas aspirações
territoriais.

Resultado: sem uma participação efetiva dos índios, os fundamentos
para delimitar a terra tiveram por base o então chamado "consenso
histórico", construídos a partir de levantamentos bibliográficos e de
uma historiografia produzida sobre esses povos, ambos bastante
superficiais.

O tempo dos direitos

Mesmo não respondendo integralmente às suas necessidades territoriais,
tais procedimentos de identificação da TI Rio Gregório serviram para
catalisar novos modos de organização e representação política. Os
Yawanawá e Katukina começaram, então, suas primeiras mobilizações para
conquistar um conjunto mais amplo de direitos, que possuíam, mas até
então desconheciam.

Deixados à margem das decisões inerentes ao processo administrativo,
os Yawanawá, sobretudo, foram responsáveis pela efetiva ocupação da
terra então reconhecida, ao expulsar os patrões seringalistas e os
missionários da Novas Tribos do Brasil para longe de sua aldeia.
Buscaram, para isso, alianças para além do indigenismo oficial. A
CPI-Acre e o CIMI foram instituições importantes nesse processo, não
só por ajudá-los a montar cooperativas, que substituiriam o barracão
de seus antigos patrões, mas, principalmente, por conectá-los a
instituições públicas e a movimentos da sociedade civil que então
surgiam e se fortaleciam no Acre.

Essas relações, contudo, eram parte de mobilizações amplas, que
acabaram sendo consideradas na CF. Esse novo marco legal impôs,
formalmente, o fim da tutela dos povos indígenas pelo Estado,
reconhecendo-lhes direitos à autonomia cultural, social e econômica e
a formas próprias de representação política.

Tais mudanças explicam muito sobre o papel oscilante da FUNAI na
atualidade. Criado para tutelar os povos indígenas, num contexto em
que desenvolvimento se confundia com autoritarismo, o órgão
indigenista se tornou anacrônico. Seus funcionários, assim como no
passado, continuam a reproduzir os princípios da tutela, tendo
dificuldades em ver com bons olhos o fortalecimento de uma cidadania
indígena. Isto ajuda a entender a causa de certos sinais
contraditórios oriundos do órgão nos últimos anos, como a evidente
paralisia no tramitar dos processos de regularização fundiária, a
resistência em dialogar com demandas territoriais apresentadas por
povos que só recentemente assumiram suas identidades étnicas e, agora,
o surpreendente argumento, do seu atual presidente, de que "os índios
querem terra demais".

A despeito desses descompassos nas práticas do indigenismo oficial, o
avanço legal contido na CF reside no fortalecimento de importantes
parâmetros que fundamentam, no que diz respeito ao processo de
reconhecimento fundiário, a definição da territorialidade indígena. O
Capítulo VIII da CF define as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles "habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos naturais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

Se nas primeiras intervenções da FUNAI, os antropólogos e indigenistas
podiam representar os interesses hegemônicos do Estado, com esta nova
legislação, a agencialidade indígena se impõe. A territorialidade é
agora definida a partir de lógicas e racionalidades dos grupos, que se
realizam em conformidade com suas necessidades socio-econômicas,
contemporâneas e futuras, fortemente vinculadas ao aproveitamento
especializado dos recursos naturais, sem deixar de lado elementos como
a religião, o sistema de parentesco e os laços afetivos.

Revisão de limites

Em 1996, as lideranças Yawanawá foram visitadas e consultadas pelo
antropólogo Terri Aquino, responsável pelos estudos sócio-econômicos
necessários à criação da Reserva Extrativista do Riozinho da
Liberdade. Ao olhar do antropólogo, a consulta foi considerada
indispensável, pois, de um lado, a proposta original de limites dessa
unidade de conservação pretendia incluir as cabeceiras do Gregório,
com intuito de protegê-las, retirando-as da propriedade da Paranacre,
e, de outro, estas comprovadamente constituíam parte do território
imemorial de vários povos Pano, dentre os quais os Yawanawá. Dessa
consulta, resultaram a redefinição dos limites inicialmente propostos
para a Reserva Extrativista, criada em fevereiro de 2005, e o início
de uma série de mobilizações do povo Yawanawá, visando a revisão dos
limites da TI Rio Gregório.

Em resposta a essas mobilizações, já em 2003, a Coordenação Geral de
Identificação e Delimitação (CGID), da Funai, então chefiada pelo
próprio Terri, promoveu um "levantamento prévio" na TI Rio Gregório,
que constatou a legitimidade da demanda territorial dos Yawanawá e
Katukina, que resultou na inclusão dessa terra no planejamento
operacional da DAF para 2004.

Como parte dessas mobilizações, em março de 2004, lideranças Yawanawá
estiveram no Ministério da Justiça e na sede da FUNAI em Brasília,
reivindicando a realização desses estudos técnicos necessários à
revisão de limites. Convencido pelos argumentos das lideranças, que
contaram com o apoio efetivo de importantes políticos acreanos, o
Ministro da Justiça garantiu-lhes que os estudos seriam urgentemente
executados. Vinte anos após a demarcação, a FUNAI constituiu o GT de
revisão de limites da TI Rio Gregório, no mês de dezembro daquele
mesmo ano.

Com base em trabalhos de campo que contaram com plena participação dos
Yawanawá e Katukina, e a partir de argumentos históricos,
etnográficos, econômicos e ambientais, o GT concluiu pela incorporação
dos locais não contemplados pelas duas primeiras identificações e pela
demarcação. Reconheceu, assim, direitos territoriais garantidos pela
CF e o Decreto 1.775/96, ao apresentar uma proposta de revisão de
limites que incluiu as nascentes do rio Gregório e dezenas de
igarapés, lagos, poços, barreiros, áreas de manejo florestais, além
das áreas onde estão localizados antigos cemitérios e sítios
arqueológicos.

Incluiu também as cinco aldeias Yawanawá - Nova Esperança, Mutum,
Escondido, Tibúcio e Matrinchã - e a aldeia Timbaúba, dos Katukina,
espaços onde esses povos constróem suas residências, fazem seus
roçados, plantam seus quintais, vivem seu cotidiano de maneira
própria, criam seus filhos, se educam e realizam seus rituais e parte
de suas atividades econômicas.

A superfície da terra indígena, hoje reivindicada por esses dois
povos, é de cerca de 187.395 hectares, conforme defendido no relatório
de revisão entregue à analise da FUNAI em setembro de 2005.

Aumento da população indígena

O reconhecimento da terra revisada servirá para abrigar uma população
Yawanawá, que praticamente quadruplicou nos últimos 25 anos. A
conjunção das medicinas ocidental e tradicional contribuiu para tornar
mais eficaz o combate às doenças perigosas e diminuir sensivelmente a
mortalidade infantil, permitindo esse considerável aumento de sua
população.

Em 1977, no primeiro levantamento oficial realizado, 65 Katukina
viviam no seringal Sete Estrelas e 135 Yawanawá no seringal Caxinauá.
Em 1982, eram 110 Katukina e 161 Yawanawá. No ultimo censo, de 2004,
elaborado pelo GT de revisão, foram contados 520 Yawanawá e 76 Katukina.

Um dos desdobramentos desse crescimento demográfico foi a dispersão
dos Yawanawá em núcleos habitacionais espalhados ao longo do rio
Gregório, com o abandono, após oito décadas, da antiga aldeia
Caxinauá. Ajudaram a acelerar esta dispersão a crise na economia da
borracha, as novas alternativas econômicas surgidas na década de 90,
bem como a necessidade de fiscalizar e garantir os limites do novo
território. Quatro aldeias foram fundadas em início da década passada
(Nova Esperança, Mutum, Tibúcio e Escondido) e, mais recentemente, a
Matrinchã, esta na área pleiteada para revisão.

Já a população Katukina segue uma dinâmica distinta, que dificulta
determinar sua evolução a partir de levantamentos usuais. As famílias
migram e se estabelecem por períodos variáveis na TI
Campinas/Katukina. A área do seringal Sete Estrelas permanece,
todavia, como importante referência territorial. A atual aldeia
Timbaúba possui pouco mais de 70 pessoas, uma população variável, ora
para mais, ora para menos.

Além disso, no futuro próximo, um forte crescimento demográfico da
população não-indígena pode ser previsto no entorno da TI Rio
Gregório, como resultado dos processos de desenvolvimento regional em
curso, com o asfaltamento da BR-364 e novas formas de exploração
florestal. Intensos processos migratórios e a chegada de empresas
devem vir a acontecer, face às perspectivas abertas para as atividades
de manejo madeireiro, que deverá atingir em cheio a região,
especialmente nas três florestas estaduais criadas no seu entorno em
março de 2004. Há pouco tempo, a própria Paranacre vendeu áreas de
antigos seringais para a empresa Tinderacre, cujo principal acionista
é o apresentador Carlos Massa, o Ratinho, explorar madeira nas
proximidades dessa terra indígena.

O reconhecimento de seus novos limites torna-se, portanto, uma forma
importante de atenuar as pressões a que estarão submetidos, não só
esses dois povos, mas também os recursos da fauna e flora, plenamente
conservados nas cabeceiras do rio Gregório. Ambos, segundo a lei e o
bom senso, devem ser protegidos pelos governos federal e estadual.

Retomada cultural, planos de futuro

Um outro motivo importante deve ser levado em conta para essa nova
definição da terra indígena: os processos de retomada cultural
protagonizados pelos Yawanawá e Katukina. Tais processos movem, hoje,
tanto estes quanto outros povos no Acre, que pelejam para o
fortalecimento de suas identidades étnicas, que nem o cativeiro dos
patrões seringalistas, as missões religiosas e os processos econômicos
liberais conseguiram diluir.

As contingências históricas do passado exigiram que os Yawanawá
tecessem estratégicas relações de parcerias com setores da sociedade
civil, com órgãos governamentais e empresas nacionais e
internacionais. Parcerias essas que se mostraram bem sucedidas, pois
atualmente garantem aos Yawanawá, e às suas organizações, certa
autonomia econômica e reconhecimento político.

Por todos os motivos já apontados -reparação, proteção, conservação e
justiça-, defender a revisão de limites é defender também as culturas
dos Yawanawá e Katukina, pois o território constitui para estes povos
algo além do espaço de reprodução física e econômica, ou mesmo das
relações sociais. É também o lugar onde são atualizados o imaginário
mitológico e praticados seus atos religiosos.

Por fim, aproveito para solicitar, publicamente, às instâncias
responsáveis na FUNAI, que agilizem a análise do "Relatório de Revisão
de Limites da TI Rio Gregório". Suas ponderações são hoje essenciais
para submeter o relatório à aprovação da presidência da FUNAI e para a
publicação de seu resumo e mapa no Diário Oficial da União. Essas
medidas são de fundamental importância para que os povos Yawanawá e
Katukina possam continuar a enfrentar, com segurança e autonomia, os
novos tempos marcados pelo avanço da pavimentação da BR-364.

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