VOLTAR

Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual

Inbrapi-Brasília-DF
Autor: Andila Kaingáng
05 de Ago de 2004

Ofício Circular no 27/2004/INBRAPI

Brasília, 05 de agosto de 2004.

Assunto: Encaminhamento de Denúncia.

Prezado(as) Senhores (as),

O INBRAPI vem encaminhar o documento, em anexo, proveniente da aldeia Serrinha, localizada no município de Ronda Alta/RS. O documento refere-se a denúncia de agressão a direitos humanos das comunidades indígenas Kaingáng do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil e apela para as autoridades e organismos de defesa dos direitos humanos, em prol da segurança e sobrevivência do Povo Kaingáng.

Face ao exposto, o INBRAPI solicita a análise da denúncia e a adoção das providências legais e administrativas cabíveis, bem como seu encaminhamento para instituições, nacionais e internacionais, de defesa dos Direitos Humanos. O INBRAPI agradece desde já a colaboração e coloca-se à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários.

Atenciosamente,

Lucia Fernanda Jófej Kaingáng
Diretora Executiva

__________________________________

Terra Indígena Serrinha, 25 de Julho de 2004.

SOS Povo Kaingáng

Dirijo esta reflexão a todas as autoridades direta ou indiretamente envolvidas na solução de conflitos internos em Reservas Indígenas Kaingáng. A crise e a ineficácia das leis Kaingáng há muito já vem demonstrando que está ocorrendo algo muito sério que precisa ser revisto, e quem sabe até modificado, a fim de que a mesma volte a ter o respaldo e o respeito das Comunidades Kaingáng. De maneira que os nossos problemas possam mais uma vez ser resolvidos dentro dos limites das nossas aldeias, com imparcialidade e justiça.

É muito doloroso para mim, enquanto kaingáng, admitir que esta é a nossa realidade. Mas quem sabe assim, poderemos encarar esta situação e juntos encontrarmos uma solução.

Nas últimas décadas tem crescido muito o número de famílias Kaingáng que aumentam as favelas das grandes cidades do Rio Grande do Sul, gerando grandes conflitos sociais entre índios e brancos na disputa de terrenos urbanos. A FUNAI tem trazido muitas e muitas famílias de volta às suas áreas de origem, mas logo o fato não só se repete como é cada vez maior o número de famílias que abandonam suas aldeias rumo às grandes centros urbanos. E quero deixar bem claro que para um kaingáng abandonar sua aldeia de origem, tem alguma coisa muito séria acontecendo.

Infelizmente a FUNAI nunca me pareceu preocupada em descobrir a causa de tal "êxodo", e tentar solucionar o problema. Porém, o que está acontecendo na Aldeia Indígena de Ligeiro, Município de Charrua-RS, em que a maioria das famílias indígenas estão vivendo, há mais de 2 meses, errantes pela estrada, sem terra e sem teto , à mercê das intempéries deste inverno rigoroso, carregando consigo apenas suas crianças, seus velhos e sua dor por tudo que deixaram para trás. Motivo: "Incompatibilidades com o Cacique".

Gostaria muito que o meu "grito de socorro" seja ouvido além dos limites do território brasileiro, de preferência nos grandes Fóruns onde se discute Direitos Humanos, para que eu possa perguntar: Onde estão os direitos humanos do meu povo e os direitos originários sobre nossas terras, como reza a Constituição do Brasil?

Agentes Indigenistas, municipais, estaduais e federais, inclusive a FUNAI, Juízes (Federal e Estadual), e membros do Ministério Público (Federal e Estadual), estão de posse da garantia de continuidade ou não do Povo Kaingáng, enquanto povo étnica e culturalmente diferenciado.

O que fazer em uma situação tão polêmica e vital como esta em questão: Qual é afinal a vontade de uma Comunidade Indígena? Quem a expressa? Como exemplo vamos tomar a Aldeia Indígena de Ligeiro em que a maior parte das famílias indígenas foi posta para fora de suas terras, por desavença ou incompatibilidade com o Cacique. Finalmente, quem é a voz da Comunidade Indígena? O Cacique, porque é o Cacique, ou a maioria expulsa de suas terras porque é a maioria?

Para esta questão crucial e ao mesmo tempo complexa, de um ponto de vista antropológico, tem sido comum ouvir, de membros da Procuradoria da República e até da FUNAI, uma resposta "burocraticamente simplista": - "não podemos interferir nas questões internas das comunidades indígenas".

Em outras palavras, um preceito constitucional que foi estabelecido para restringir as práticas intervencionistas, sobretudo aquelas motivadas por ignorância e o por preconceito em relação as culturas de povos minoritários, tornou-se, na interpretação mencionada acima, uma conveniente justificativa para o "imobilismo" e para a acomodação diante dos conflitos nas aldeias kaingáng.

Mas, está mais que na hora de se questionar essa interpretação simplista antes que seja tarde para salvar as reservas kaingáng, dos incontáveis abusos que elas vêm sofrendo em nome de atitudes e práticas de autoridades indígenas, supostamente amparadas na "cultura", e no respeito que a lei exige às Organizações Internas Indígenas.

A primeira pergunta a fazer para os que insistem que se deve respeitar as "formas próprias de organização", é: de quais formas próprias se está falando? No nosso caso aqui no sul do Brasil tais "formas" seriam representadas por caciques autoritários? Ou lideranças corruptas? Não estou afirmando, é bom que fique bem claro, que todos os caciques são autoritários, nem que boa parte das nossas lideranças são corruptas. Mas quando e onde surgem conflitos que colocam parte importante da comunidade contra o cacique ou as lideranças, quase sempre, nestes casos, encontramos caciques e lideranças autoritários e corruptos (ou ambos), e é nessa hora e nesses casos, em que o Ministério Público, a Procuradoria da República e até mesmo a FUNAI, se colocam olimpicamente alheios aos conflitos, alegando não dever interferir nas "tais formas próprias", de organização social kaingáng. Mas quem disse que tal cacicado e tais formas de organização, são "próprias" do meu povo?

Quem tenha estudado um pouco sobre a nossa história e sobre a nossa cultura, sabe que autores idôneos e realmente grandes pesquisadores e conhecedores da cultura kaingáng, no fim do século XIX, e começo do século XX, afirmam categoricamente: "o cacique entre os kaingáng, tem que ser (generoso), com todos os membros da sua comunidade". E um daqueles famosos autores chega a dizer que um cacique kaingáng, jamais conseguiria levar seu povo a fazer algo contra a sua vontade, antes o "abandonariam". Ora, esse é um quadro muitíssimo diferente do que vemos de modo geral, nos caciques kaingáng do começo do século XXI. Se é para respeitar "formas próprias e culturais", porque respeitar cacicados que contradizem completamente aquela descrição dos caciques a um século atrás?

É provável que a reposta daqueles que defendem a intocabilidade, dos atuais caciques seja alguma coisa como: depois de um século a cultura kaingáng não é a mesma, e o que a lei manda respeitar, são as formas de organização social vigentes.

Essa resposta merece dois reparos. O primeiro vem da história. Se o cacique kaingáng, já foi no passado não muito distante alguém que "tinha", que ser sobretudo "generoso", muita coisa mudou ao longo de décadas de atuação do SPI e da FUNAI nas aldeias kaingáng. O SPI, depois de afastada a geração de seus fundadores (Rondon e seus colaboradores), nos anos 40 e principalmente nos anos 50, instaurou um regime militarizado nas aldeias indígenas, explorando as terras e o patrimônio florestal com base em um sistema repressivo em que o cacique era apenas um subalterno e preposto do chefe do posto (branco). Tal sistema teve amplo reforço e continuidade nos anos de ditadura militar, já com a administração da FUNAI sobre as áreas. Criaram-se à sombra de coronéis e capitães da FUNAI e por direto aprendizado com os mesmos, lideranças indígenas autoritárias, repressivas e corruptas. Com muita freqüência caciques recebiam salários da FUNAI, ou eram sócios do chefe do Pôsto (branco), em rou bos de madeira, ganhos de arrendamentos ou outras ilegalidades.

Com a redemocratização do país, aos poucos também democratizou-se a FUNAI. Mudaram as práticas também nas áreas indígenas, com chefes de Postos deixando de interferir 100%, na organização interna das comunidades kaingáng. Mas, infelizmente a essas alturas, estragos irremediáveis já haviam acontecido. Com o desaparecimento da figura de um chefe de Pôsto despótico e dirigente de um aparelho repressivo dentro das áreas indígenas, "o vazio", foi ocupado pelos caciques formados pela práticas das décadas anteriores. Com tal origem histórica, é a isso que se chamará de "Formas Próprias de Organização Social Kaingáng"? Ou seja, são resquícios da nossa cultura?

O segundo vem da Antropologia que nos alerta que as culturas são dinâmicas. Logo, se são dinâmicas, é compreensível que tenham mudado no contato e na convivência com o mundo dos "brancos", ainda que tenha mudado para pior. No entanto, como já mencionado, o mundo dos "brancos" também é dinâmico,da mesma forma sofrendo modificações. O Brasil foi redemocratizado há quase 20! Também isso teve forte repercussão e conseqüências nas comunidades indígenas. E, além disso, nunca é demais lembrar que também os povos indígenas e suas lutas ajudaram a redemocratizar o Brasil. Logo, há uma cultura de democratização que também é parte, hoje, da vida das comunidades indígenas.

Defender que o respeito à "forma de organização própria" do povo kaingáng, significa defender a estagnação de formas historicamente gestadas nos anos 50, de domínio autoritário dentro das áreas kaingáng, é absolutamente contraditório com a lição antropológica de que as culturas são dinâmicas.

Mas não são apenas estas as contradições e as inconsistências do discurso "imobilista", que prega a não intervenção na realidade conflitiva atual de muitas Aldeias Kaingáng. Acontece que aquele discurso não se dá conta do fato contraditório que as autoridades indígenas cujos atos, os não-índios "não querem", nem aceitam contestar.

São pessoas que participam ativamente da política partidária. Houve aqui no Sul caso de caciques vereadores e, até vice-prefeito, assim como houve casos conhecidos de caciques envolvidos em formação de quadrilha com não-índios, para fraudar documentos contábeis ou, simplesmente, para dilapidar o patrimônio indígena.

Qual seria o Antropólogo que classificaria todas essas práticas como "Organização Social própria dos kaingáng"? Como se vê é uma situação muito complexa e importantíssima para nós Kaingáng! Por suas práticas de poder absoluto, a qual tomo a liberdade de classifica-las como abusivas e inconseqüentes, Caciques interferem na qualidade da Educação Escolar Indígena, comprometendo a formação dos nossos jovens e conseqüentemente "o projeto de futuro do nosso povo".

Como professora bilíngüe Kaingáng, não posso me dar o direito de ficar calada, vendo o nosso futuro abandonado nas mãos de lideranças individualistas e preocupadas apenas com o bem-estar de suas famílias e decidindo a existência ou não de índios-sem-terra, em terras com amplas áreas de arrendamento: a continuidade ou o desmantelamento de comunidades inteiras.

Pela complexidade e por seus efeitos vitais, não se pode responder a uma questão dessas com o "Simplismo" e "Comodismo" de dizer, como dogma, que "Tem" que respeitar as "Formas próprias de Organização Social Kaingáng", sem que se reflita profundamente, em conjunto com as comunidades indígenas em questão, reformulando as leis internas, estabelecendo como será doravante essa organização social.

Com esses questionamentos quero alertar as autoridades não-índias para essa visão distorcida, que muito sofrimento nos tem causado, no que se refere a conflitos internos. E, principalmente, para que o meu silêncio não me faça cúmplice de tudo que aqui relatei.

Através desta responsabilizo publicamente todas as Autoridades, que direta ou indiretamente estão envolvidas na solução dos conflitos internos nas Áreas kaingáng, pelo futuro do meu povo, que tenho certeza quer continuar vivendo.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.