VOLTAR

Inferno na Selva

Veja, Ambiente, p.94-95
05 de Out de 2005

Inferno na selva
Está faltando água no Acre, em pleno coração da maior bacia hidrográfica do mundo
Leonardo Coutinho
Na região que guarda 20% de toda a água doce do planeta está ocorrendo um dos fenômenos climáticos mais severos registrados desde quando se iniciou o monitoramento meteorológico no Acre. Nas últimas quatro décadas, os acreanos jamais enfrentaram seca tão intensa. Antes disso, havia pouca gente para testemunhar, sentir ou ajudar a piorar os efeitos de uma estiagem tão grave. A população da capital multiplicou-se por cinco nesse período. Já são quatro meses praticamente sem chuva. Em agosto, o índice pluviométrico ficou próximo de zero. Em anos de clima normal, a média é de 40 litros por metro quadrado. No mês passado também choveu muito menos do que o esperado. O Rio Acre, o principal curso de água e fonte de abastecimento para os 255.000 habitantes de Rio Branco, está mais de 12 metros abaixo de seu nível regular. Com 1,6 metro de profundidade, praticamente desapareceu. A navegação parou. O racionamento de água já dura três meses. Poços artesianos também estão secando. Os mais pobres, moradores da periferia, estão cavando cacimbas na floresta e caminhando até trinta minutos com baldes de água barrenta nas mãos.
Ao drama da falta de água se sobrepõe a fumaça. As florestas, esturricadas pelo sol, têm incêndios diários, que levaram o estado a apresentar níveis de poluição três vezes maiores do que o tolerado pelas organizações internacionais. Nos últimos quatro meses, registraram-se mais queimadas do que durante todo o ano passado. Estudantes vão à escola usando máscara para não respirar fuligem. O ar seco e a água contaminada favorecem a disseminação de vírus. Onze crianças com menos de 5 anos morreram. A visibilidade chega a ser inferior a 300 metros, o aeroporto fecha com freqüência e o sol pode ser olhado de frente, obstruído por uma cortina cinzenta.
Fora das cidades, sofrem os fazendeiros e os seringueiros. Em Xapuri, o fogo torrou um terço da Reserva Extrativista Chico Mendes. Centenas de seringueiras morreram ou deixarão de produzir látex, enfraquecidas pelas chamas. Perto da capital, o pecuarista Luiz Augusto Ribeiro do Valle lutou por dez dias contra o fogo de uma queimada originada por um caboclo que preparava carvão a quilômetros de sua propriedade. "Foi um pesadelo", lembra Valle, que perdeu 4.000 metros de cerca, madeira de lei de sua reserva privada e mais de 500 hectares de pasto. "Muitos terão prejuízos", afirma o presidente da Federação da Agricultura do Estado, Assuero Veronez. Plantações inteiras de pupunha, café e banana foram arrasadas. Veronez prevê uma queda na produção estadual de carne de até 10% e aumento da inadimplência dos agricultores nos bancos.
Análises de um grupo de cientistas coordenados pelo cubano Alejandro Fonseca Duarte, professor do departamento de ciências da natureza da Universidade Federal do Acre, mostram que as secas e as queimadas formam um ciclo vicioso. Folhas secas e baixa umidade aumentam a inflamabilidade das florestas. Quando elas queimam, as micropartículas de fuligem emitidas no incêndio interferem na composição das nuvens e pioram as condições para a formação de chuvas. Esse processo impede as gotas de alcançar o peso necessário para cair. A umidade acaba transportada pelo vento para outros lugares. Em resumo, quanto mais fumaça, menos chuva; quanto menos chuva, mais fumaça. "Se esse ciclo não fosse interrompido pelas frentes frias que vêm do sul do país, o Acre se transformaria em um deserto", diz Fonseca Duarte.
As chuvas devem reaparecer neste mês, mas podem se atrasar, na avaliação do climatologista José Antonio Marengo, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Marengo não vê relação entre o fenômeno acreano e as mudanças climáticas globais. Por enquanto. "A seca é um evento natural cíclico, que pode ter sido ampliado pela presença do homem na região", explica. "Não é provável que se torne uma situação regular." Na segunda-feira passada, uma massa de ar frio originada na Argentina chegou ao Acre. A friagem, como são chamadas as frentes, provocou chuva por algumas horas. A precipitação serviu para aumentar a umidade, apagar muitas queimadas, mas não melhorou a falta de água. A chuva só aumentou em 2 centímetros o nível do rio.

Veja, 05/10/2005, p. 94-95

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.