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Infantilizamos espiritualidades indígenas, transformando-as em folclore

Uol: https://www.uol.com.br/ecoa
Autor: Fred Di Giacomo
22 de Ago de 2021

Aconteceu primeiro quando as primeiras civilizações surgiram na Mesopotâmia, muitos anos antes de Cristo. Era comum que um povo, como os judeus, por exemplo, transformasse as divindades que seus rivais adoravam em demônios, crendices ou fábulas.

Lembra do monstro marítimo Leviatã, que devorou Jonas? Ele seria uma versão caricata do deus marítimo cananeu Lotan, que na mitologia desse povo havia sido derrotado pelo deus dos raios e das tempestades Hadad.

Se você não está com sua leitura da Bíblia em dia, os cananeus são um povo vencido pelos judeus após o êxodo do Egito. Algo parecido aconteceu com o "culto ao bezerro de ouro" -- condenado por Moisés, no Velho Testamento, e que parece uma referência direta a cultos dos povos inimigos dos judeus.

Quando os romanos adotaram uma nova dissidência do judaísmo como religião oficial, que chamaríamos de cristianismo, muitos deuses greco-romanos também foram demonizados ou tornaram-se "folclore".

Não é raro ver o demônio, por exemplo, retratado como o deus da natureza Pã ou o Minotauro. O mesmo aconteceu com os povos nativos europeus, africanos e asiáticos que os romanos (e posteriormente os impérios cristãos) colonizaram. Muito do "folclore" europeu é o que restou da espiritualidade celta ou nórdica.

O que é folclore e por que ele é comemorado no dia 22/08?

Folclore é um neologismo vindo da união de duas palavras da língua inglesa: "folk" (povo) e "lore" (conhecimento). Quem criou o termo foi o escritor e folclorista britânico William John Thoms, em uma carta enviada no dia 22 de agosto de 1846.

A partir daí, diversas nações passaram a celebrar o dia do folclore no 22/08. No Brasil, o dia do folclore foi oficializado pela ditadura militar em 1965.

Espiritualidade indígena vs folclore
Assim como os judeus "demonizaram" as divindades dos povos que dominaram e os católicos transformaram os deuses dos colonizados em monstros, contos de fadas e crendices populares, os portugueses e demais europeus, que chegaram nas Américas, fizeram o mesmo com a espiritualidade dos milhões de indígenas que aqui vivia.

Os povos originários do Brasil falam diversas línguas, seguem costumes diferentes e têm, cada um, seus próprios encantados e entidades.

Maukanaimã, que Mário de Andrade transformou no protagonista do livro "Macunaíma: o herói sem nenhum caráter" é uma divindade do povo macuxi.

O Saci-Pererê, que Monteiro Lobato popularizou como um menino negro de gorro vermelho, é uma entidade guarani, também conhecida como Jaxy Jaterê ou Kambaí.

"Jaxy Jaterê, ele é o protetor da floresta. Então, na aldeia, a gente já tem esse conhecimento de história, que a gente sempre ensina pras crianças. O nosso personagem Jaxy Jaterê, ele não é um folclore, ele é uma história viva, que é contada até os dias de hoje", disse o escritor Olívio Jekupé ao site Hypeness.

Já o escritor indígena Yaguarê Yamã Aripunãguá ensina: "Em tupi antigo seu nome Sasy significa dor e pererê significa aos pulos o que em português seria mais ou menos "dor que salta ou pula" justamente por se tratar de uma entidade não muito amistosa". Sua aparência original seria a de um jovem indígena com uma perna só, fumando o petynguá, tradicional cachimbo guarani. Já a caipora é uma entidade que nas línguas do tronco tupi chama Ka-aporãga, que significa "Espírito que mora na mata"

Bom, assim como o saci e a caipora, praticamente todos os "personagens" do folclore brasileira (curupira, boto, cobra grande, yara, mapinguari) são, na verdade, divindades, encantados ou entidades de povos específicos que habitavam o Brasil antes dos portugueses chegarem.

Colocar o mapinguari (ser da espiritualidade dos maraguás e dos sateré-mawé, que moram no Norte do país) no mesmo saco do Jaxy Jaterê (entidade dos guarani, que vivem no sul e sudeste do país) é a mesma coisa que dizer que Jesus era filho de Shiva e Zeus.

Ao transformarmos a espiritualidade dos povos que habitavam nosso país antes da chegada dos portugueses em folclore e contos de fada, contribuímos com seu epistemicídio (a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental) e com a crença de que toda cultura original destas terras faz parte de algo primitivo, pronto a ser superada e substituída pela cultura europeia dos colonizadores. Também reforça o mito de que indígenas (e sua cultura e espiritualidade) são seres do passado, quando ambos estão vivos no presente hoje. Folclore e lenda é acreditar nisso.

FONTE: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/fred-di-giacomo/2021/08/22/infantil…

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