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Índios unem modernidade e tradição

O Globo, O País, p. 23
20 de Ago de 2006

Índios unem modernidade e tradição
Após adotar quatro línguas oficiais, município no Amazonas estimula criação de escolas indígenas

O médico Drauzio Varella tem sido visto com freqüência por aqui, acompanhado de uma equipe de filmagem. A revista italiana "Colors" também veio fazer uma visita, e o resultado está na edição que saiu na quintafeira passada. A National Geographic igualmente incluiu a região em seu roteiro.

Mas, afinal, o que a distante São Gabriel da Cachoeira tem para atrair atenções tão distintas? Para começo de conversa, é o município mais indígena do país - mais de 90% da população são compostos por índios ou seus descendentes. São 23 etnias e cerca de 16 línguas faladas por uma população de apenas 35 mil moradores que vivem num território maior que Portugal. Aqui fica o ponto mais alto do país, o Pico da Neblina, com 3.014 metros de altitude. A sede do município está a 23 quilômetros da linha do equador, que divide Norte e Sul.

Achou pouco? São Gabriel é uma região estratégica para as Forças Armadas, porque faz fronteira com dois países, a Colômbia e a Venezuela. Mas o que nos interessa agora é que o lugar tem sido palco de experiências inovadoras na educação. É o primeiro município do país a ter aprovado uma lei tornando oficiais três línguas indígenas, ao lado do português: tukano, baniwa e nheengatú.

Projeto leva tecnologia a municípios com baixo IDH

- As crianças indígenas querem as duas coisas, a modernidade e a tradição - diz Roberto Carlos Fernandes Sanches, de 18 anos, da etnia dãw, que dá aulas na sua comunidade.

Uma das escolas que fazem a ponte entre o novo e o antigo é a Dom João Marchesi. Ela integra o Projeto Telemar Educação (PTE), que leva tecnologia a municípios com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH). Já são quase 400 escolas atendidas em 16 estados, cada qual com laboratório de informática com dez computadores e conexão pela internet via satélite.
- Quando se tem uma tecnologia que permite a troca, você tem voz e se sente valorizado - diz Samara Werner,diretora-executiva do PTE.

Com 109.669 quilômetros quadrados, São Gabriel é o terceiro maior município do país, atrás apenas de Barcelos, também no Amazonas, e Altamira, no Pará. Fica numa região conhecida como Cabeça de Cachorro. São quase 700 aldeias, e mais de 80% do território são compostos por terras indígenas homologadas - e ainda há duas em processo de demarcação.

Os projetos educacionais começam a render frutos, como a valorização da identidade étnica, a melhoria no rendimento escolar, a conciliação do "mundo dos brancos" com os conhecimentos indígenas e a redução do êxodo do interior para a sede, diminuindo problemas como desemprego, alcoolismo, suicídio e violência. Em 2002, foi aprovada lei municipal proposta pelo vereador indígena Camico Baniwa, que tornou cooficiais as três línguas. Aos poucos, o município começa a se adaptar aos novos tempos - no futuro, os serviços públicos serão prestados nas quatro línguas. Quase esquecido na região noroeste da Amazônia, São Gabriel recebe cuidados de algumas instituições, em especial do Instituto Socioambiental (ISA), ONG que há 12 anos trabalha na região, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foim) e das Forças Armadas.
- Em 2009 e 2010, virão para esta região mais dois batalhões, aumentando o número de homens de 1.700 para 3.500 - diz o tenente-coronel Vianna Peres, comandante do Comando de Fronteira Rio Negro e 5oBatalhão de Infantaria de Selva, que engloba São Gabriel, Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, e guarda as portas de entrada do país no noroeste do Amazonas.

Entre os desafios enfrentados pelo Exército estão o risco da guerrilha colombiana, o contrabando e o narcotráfico.

Aos 17 anos, Daniel Delgado, da etnia baré, é monitor na Dom João Marchesi:
- Quero consertar hardware e programar software - diz.
- O computador está melhorando o rendimento de todo mundo na sala de aula - atesta a coordenadora de informática, Marly Vieira, da etnia tukano.

Irlei, de 12 anos, e Memedes, de 11, vão às aulas de canoa com a irmã Paula, de 9, e o irmão Wagner, de 6. Acordam às 4h, tomam café aguado e pegam os livros, as mochilas e os remos. Já viraram com a pequena embarcação cinco vezes. Depois de remarem, ainda andam três quilômetros até a escola.
- Mas vale o sacrifício - diz a menina Irlei.

O colégio ensina em português. A diretora, Maria Edna, diz que, antes de implantar as línguas indígenas, fará um trabalho de conscientização de pais e alunos. Ela diz que um professor começou a dar aulas de baniwa e nheengatú.
- Quando foi ministrar a aula, os alunos caíram na gargalhada. Ele disse: "Os estudantes não estão preparados para isso." E parou - diz ela, que é da etnia baré. - A escola deve dar noções elementares da língua indígena, mas a responsabilidade maior deve ser da família.

O Globo, 20/08/2006, O País, p. 23

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