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Índios sem-terra?

Diário de Cuiabá-Cuiabá-MT
Autor: PAULO AUGUSTO MÁRIO ISAAC,
28 de Out de 2002

Nos últimos dias tenho sido indagado sobre algumas questões que dizem respeito aos povos indígenas da região sul. Vou respondê-las em artigos separados para favorecer ao leitor uma reflexão mais abalizada.

Este primeiro artigo, sobre a dúvida se existem outros povos indígenas sem-terra no Brasil ou se os Terena-MT são os únicos, tem o objetivo de mostrar o quanto é complexo esse problema.

Em julho de 2002, quando realizei minha última pesquisa na FUNAI, constatei que das 12 (doze) terras indígenas chamadas "tradicionais" dos índios Terena, todas estão invadidas por não-índios e possuem super-população.

Outra constatação foi a seguinte: há, no Brasil, 24 (vinte e quatro) comunidades ou grupos étnicos reivindicando terras e reconhecimento de identificação étnica. Trata-se dos chamados grupos "remanescentes" e de índios que perderam suas terras no processo de colonização e agora as reivindicam de volta.

Estas duas informações já seriam suficientes para responder a questão acima colocada, mas o hábito acadêmico de fornecer mais subsídios para o debate me instiga a dar-lhes mais alguns dados.

Para que não haja dúvidas sobre a fonte das informações dadas, o órgão encarregado dos estudos acerca da procedência ou não dessas reivindicações é a Coordenação Geral de Estudos e Pesquisa da Funai, no qual trabalha uma equipe gabaritada de etnólogos, lingüistas, antropólogos e arqueólogos, em parceria com Associação Brasileira de Antropologia e outros órgãos científicos especializados.

Ao fazer meu levantamento, fui alertado de que existem outros processos no mesmo sentido que não estão cadastrados na Funai e sim em ONG's (entre elas o Cimi - Conselho Indigenista Missionário e o ISA - Instituto Sócio-Ambiental). Vários processos foram encaminhados diretamente aos Ministérios Públicos dos Estados Unidades da Federação, sobretudo de regiões do Nordeste, Sudeste e Sul do país e não são do conhecimento da Funai. Isto quer dizer que, no momento, há uma dificuldade de se obter os dados exatos de quantas comunidades ou grupos étnicos estão reivindicando terras no Brasil.

Há, porém, uma constatação inequívoca: terra indígena é um dos maiores problemas enfrentados pela Funai e pelo Ministério da Justiça.

Assim como os Terena tiveram suas terras reduzidas em Mato Grosso do Sul por invasões de fazendeiros não-índios, na região sul de Mato Grosso o mesmo fato tem ocorrido com os Bororo. A Terra Indígena Tereza Cristina está sofrendo reduções constantes. Só nas duas últimas décadas ela sofreu uma redução de 10 mil hectares e, no último século, de aproximadamente 75% (setenta e cinco) de sua área originalmente destinada aos índios. Outro caso grave é o de Jarudore, uma área indígena de quatro mil e setecentos hectares demarcada e totalmente reconhecida pela Funai, mas que foi totalmente invadida por não-índios. Hoje não há nenhum Bororo habitando naquela terra, mas há um agrupamento urbano.

Nos anos de 2000 e 2001, quando residi em São Paulo como parte do programa de doutorado da UFMT, fui testemunha do drama da terra para os Tupi-Guarani. Tendo recebido o honroso convite dos índios, fui um dos coordenadores do I Seminário sobre Terras Indígenas Tupi-Guarani do Litoral Sul do Estado de São Paulo. Presenciei o sofrimento daquele povo e as dificuldades que envolvem as autoridades e organizações civis locais, especialmente a Prefeitura de Itanhaém, a Associação Comercial e Industrial local e a Apeoesp (Sindicado dos Profissionais de Educação do Estado), cujos dirigentes não se omitem diante dos problemas fundiários e culturais indígenas. Naquela cidade existe, inclusive, um bairro chamado Aldeinha, cuja população é 100% Tupi-Guarani.

Com a redução das terras indígenas, a migração de milhares de índios para outras regiões do país e para as periferias das grandes cidades tornou-se fato constante. Só em Campo Grande (MS) calcula-se que residem aproximadamente cinco mil índios Terena, Guarani e Kadiwéu. Por tudo isso, no caso dos Terena-MT e de outras comunidades indígenas que reivindicam terras e/ou identificação étnica, não se pode fazer um julgamento simplista.

Este assunto é tão sério que mereceu uma Convenção (a de n.o 169) da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os povos indígenas e tribais em países independentes. O Brasil assinou essa Convenção e ela foi regularizada de acordo com o Decreto Legislativo n.o 143 de 2002, que foi aprovado em 20/06/2002 pelo Congresso Nacional, conforme publicação no Diário Oficial da União n.o 118 - Seção 1, 21/06/2002. Observe-se que a regularização brasileira deu-se há apenas 4 meses atrás.

Diante do exposto, espero que o leitor possa dimensionar a complexidade do problema e verificar que a questão central não é se há muitos ou poucos povos indígenas reivindicando terras, reduzindo-se a questão ao termo "índios sem-terra". É claro que quando se usa essa denominação, não se trata da mesma categoria conceitual aplicada aos milhares de camponeses sem terra existentes no Brasil. Mesmo porque há outra questão a considerar: as terras indígenas não são dos índios. Elas pertencem ao Estado e as sociedades indígenas têm sobre elas apenas o direito de usufruto.

Apesar da distinção que deve ser feita, não há como negar que a política fundiária exercida no Brasil tem criado situações sociais que se tornaram insuportáveis, tanto para índios como para não-índios.

Assim sendo e diante dos conflitos existentes tendo como fulcro a questão da terra, a sociedade não-índia precisa estar atenta para não se deixar influenciar por discursos levianos e inconseqüentes, venham eles de onde vierem.

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