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Índios lutam pela água

CB, Brasil, p. 9
23 de Mai de 2005

Índios lutam pela água
Comunidades buscam forças para resistir à investida contra o Velho Chico. Orçado em R$ 4 bilhões, projeto já está com edital lançado

Jaqueline Andrade

Do Diário de Pernambuco Os povos indígenas o conheciam como O para Rio tonto, doido e perdido. O nome fazia referência às curvas ao longo dos seus 2,7 mil quilômetros de extensão.
O homem branco o batizou de São Francisco. Às suas margens, as tribos indígenas se multiplicaram, criaram famílias, raízes, tiraram seu sustento. Em troca, o louvavam com rituais de agradecimento. O para sempre foi bondoso com os povos e derramou graças em forma de peixes e de terras férteis de onde brotavam mandioca, batata, arroz e feijão.
Em nome do desenvolvimento, os caras pálidas construíram barragens, usaram a sua força para gerar energia. Agora, arquitetam um plano mais audacioso. A transposição de suas águas, polêmico projeto que vem sendo falado há mais de cem anos e que agora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer tirar do papel.
A proposta é vista pelos índios como a maior de todas as aberrações do homem branco. E avisam: estão dispostos a lutar para que a obra não inicie. Afirmam que contarão até com a ajuda de forças espirituais.
Apesar disso, o governo federal segue firme em seu propósito. Já lançou, após sinal verde do Ibama, o edital de licitação para escolha das empresas que farão a obra, a partir do segundo semestre deste ano. O custo total é de R$ 4,5 bilhões. Por conta disso, Lula, que teve o apoio dos povos indígenas nas últimas quatro eleições presidenciais, passou a ser apontado como traidor pelas comunidades que vivem no Nordeste.
Dos 24 povos agrupados na bacia do São Francisco, sendo oito comunidades ribeirinhas no Nordeste, duas estão bem próximas da área de onde partirá um dos dois canais que farão a captação das águas. O Eixo Norte partirá do município de Cabrobó (PE), a 626 quilômetros do Recife e a 30 quilômetros da terra do povo Truká, que vive na Ilha de Assunção. Separados apenas pelas águas do Velho Chico, esse povo, na margem pernambucana, e o Tumbalalá, em Abaré, no lado da Bahia, estão definindo uma forma conjunta de barrar o projeto. Esses índios dividem ilhotas e braços do rio.
"Estão querendo que os índios batam de frente, mas vamos tomar outros caminhos. Estamos dispostos até a rumar para Brasília", alerta o cacique Neguinho Truká. Ao lado dos povos indígenas, estão organizações não-governamentais e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Estão dispostos a ingressar com ações judiciais para impedir a obra.
O cacique explicou que a preocupação do povo Truká, maior plantador de arroz de Pernambuco, responsável por mais de 80% da produção, é que a transposição diminua o volume de água do braço que corta a Ilha de Assunção. O povoado retira a água para irrigação e a utiliza para consumo humano. O rio também serve como proteção natural para a área indígena de 8 mil hectares.
Encontro
O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, chegou a receber, em abril, representantes das comunidades indígenas em seu gabinete. "Nenhum estudo de impacto ambiental foi feito junto às terras indígenas", afirmou Neguinho Truká. O cacique do povo Tumbalalá, Cícero Marinheiro, que também é vereador do município de Abaré (BA), adiantou que os povos ribeirinhos já foram prejudicados com as barragens de Sobradinho e Itaparica, inauguradas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) em 1979 e 1988, respectivamente.
"Na época, o governo federal também afirmava que não seríamos sacrificados. E hoje só não morremos de fome porque somos unidos. As barragens impediram apiracema (desova) e os peixes não conseguem se reproduzir", critica. Os índios também afirmam que, após as barragens, o rio deixou de ter o período de vazante e boa parte das terras ficaram inférteis. Além da articulação junto às ongs, os povos indígenas buscam nas entidades espirituais as forças para resistir. Eles já vêm celebrando rituais. "Se quiserem levar esse projeto adiante, as águas serão banhadas de sangue", avisa a índia Truká Maria de Lourdes dos Santos, 53 anos.

Governo admite impacto ambiental negativo
Estudiosos e o próprio governo federal reconhecem que os povos indígenas ribeirinhos sofreram impactos ambientais negativos com os projetos de irrigação e hidrelétricas ao longo do rio. O coordenador-geral do projeto do São Francisco,Pedro Britto, do Ministério da Integração Nacional, admite que as grandes obras do passado trouxeram uma história ruim para os povos.
No entanto, garante que dessa vez os estudos levaram em conta as áreas indígenas. "Reconhecemos que os índios foram afetados de maneira irreversível com as barragens e até compreendemos o seu temor. Acreditamos que a informação é a nossa única arma para acalmá-los. Temos a segurança do ponto de vista técnico e ambiental", garante.
Já o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, acredita que os povos indígenas têm motivos para se preocupar. "A captação de um dos canais inicia no município onde os índios dividem as ilhotas. O canal tem 25 metros de largura por cinco de profundidade. Será que a vazão continuará a mesma?", questiona. Ele acredita que não há vazão suficiente para mais esse uso do rio - dos 360 metros cúbicos alocáveis, cerca de 335 metros cúbicos já estão outorgados. "O governo tem Sobradinho como coringa. Mas a barragem só enche quatro anos a cada década", alerta.
A Chesf, que pleiteia a gerência da operação do sistema, garante que os índios serão poupados. Segundo Carlos Aguiar, coordenador de reassentamento em Itaparica, não haverá redução no nível do rio que banha as aldeias. "Os povos ficam entre Sobradinho e Itaparica. Teremos o controle da vazão para garantir a geração de energia", afirma.
Pelo projeto, a captação será de 1% do que o rio despeja no mar. As águas serão levadas por 620 quilômetros - o Eixo Leste também sai de Pernambuco (Itaparica), em Petrolândia, a 440 quilômetros de Recife. Os estados beneficiados pelas obras são Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, que será doador e receptor. (JA)

CB, 23/05/2005, Brasil, p. 9

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