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Índios Kaxinawá são exemplos de organização e vitalidade na floresta

Página 20-Rio Branco-AC
11 de Jul de 2004

Viagem pelo rio Jordão mostra como um povo pode viver feliz e em harmonia com o que a floresta lhe oferece

Antes deles, os índios ficavam bem lá embaixo da cadeia social conhecida na selva acreana. Ninguém queria saber de índio. Índio bom era índio marcado como gado, escravizado, quando não chacinado nos "bons tempos" das correrias, época em que os brancos cercavam as aldeias, matavam os homens e velhos, escravizavam as mulheres e jogavam suas criancinhas pra cima para serem aparadas na ponta do facão.
Mas eles, os índios Kaxinawá, que significa "povo do morcego", ajudaram a mudar definitivamente o que os antropólogos consideram um dos quadros mais tristes da história da colonização do Acre. Pioneiros, no início da década de 70, na luta pela consolidação dos direitos dos povos indígenas acreanos, os Kaxinawá, no entanto, não só ajudaram a reverter o triste quadro em que eles e seus irmãos índios se encontravam quanto passaram a ser considerados agentes importantes e fundamentais da organização social e econômica do estado.
De escravos no passado, os Kaxinawá e outros grupos indígenas acreanos passaram hoje a ser chamados de "povos da floresta", participando inclusive do primeiro escalão da atual administração pública do estado, cujo slogan, "Governo da Floresta", também foi concebido em homenagem a eles. A participação dos índios no governo acreano se dá principalmente através da Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas.
Foi para conhecer esses fantásticos índios que se autodenominam "Hunikuin", termo Kaxinawá que significa "povo verdadeiro", que eu e o fotógrafo Sérgio Vale, acompanhados de uma equipe da TV Nacional, nos dirigimos na terceira e última etapa da viagem que fizemos em maio deste ano pelas florestas do Vale do Juruá. Percorremos de barco uma região que, pela grande biodiversidade de sua flora e de sua fauna, faz do Acre verdadeiramente a terra da biodiversidade, título atribuído a esta série de reportagens.
Nossa viagem para a terra dos Kaxinawá começa no aeroporto de Rio Branco no dia 18 de maio passado, quando embarcamos num pequeno avião bimotor rumo ao município do Jordão, situado em linha reta a cerca de 700 km da capital do estado. Fomos para uma das regiões mais isoladas do estado, próximo à fronteira com o Peru, onde ainda existem até índios isolados, que perambulam nus pela selva pouco explorada naquela região entre os dois países.
Dirigido pelo descendente de polonês João Kolankiewicz, o bimotor pairou tranqüilo por sobre a selva muito densa da região, só descendo depois de meia hora de vôo para a equipe conhecer do alto a cidade de Santa Rosa, situada às margens do rio Purus a poucos metros da fronteira com o Peru. Ali estava a sede do município de menor população do estado, com 2,5 mil habitantes, detentor de uma das menores densidades demográficas do mundo, com cerca de 0,4 habitante por quilômetro quadrado.
"Esse vôo entre Santa Rosa e Jordão é conhecido como vôo dos macacos porque quando o avião vai passando os macacos vão se agitando nas árvores lá embaixo", dizia o bom piloto João, passando baixo por sobre Santa Rosa para a equipe conhecer a menor cidade acreana e certamente uma das menores do país. A floresta próxima a Santa Rosa assume nesta época do ano tons coloridos com muitos ipês roxo e amarelo.

Povo Kaxinawá dança e canta para fazer um bom plantio
Luta pela terra começou com cacique Sueiro

De Santa Rosa para o Jordão são mais alguns minutos de vôo, após os quais pousamos numa pequena pista de barro, com restos de piçarra, que garantem ainda uma boa aterrissagem de pequenas aeronaves. A pista se situa ao lado da pequena cidade do Jordão, que fica espremida numa área aberta entre a floresta e os barrancos onde se dá a confluência dos rios Tarauacá e Jordão. Descemos do avião e fomos recepcionados por algumas crianças, grande parte índias, que se ofereciam para levar nossas bagagens até o porto. Àquela altura, já podíamos perceber a elevada participação dos índios na população do município, cuja Câmara conta hoje com três vereadores de origem Kaxinawá. Dos cinco mil habitantes do Jordão, cerca de dois mil ou 40% do total são indígenas.
Tão logo chegamos na cidade encontramos Getúlio Sales, antigo cacique geral dos Kaxinawá, que preparava alguns sacos de legumes que iria transportar em seu batelão para vendê-los ao longo do rio Tarauacá. Estávamos, na verdade, reencontrando o "velho amigo" Getúlio, que não víamos a mais de 15 anos, desde que ele estava concluindo o seu "mandato" em substituição ao pai já falecido, o velho cacique Sueiro Sales, que foi a primeira liderança indígena do Acre a sair da aldeia e ir para Rio Branco reivindicar a demarcação de suas terras.
Foi Sueiro Sales, por exemplo, quem se acompanhou em 1974 do antropólogo acreano Terri Aquino e saiu pelo mundo afora proclamando, na imprensa e em todos os fóruns que encontrava pela frente, que o seu povo, assim como todos os povos indígenas do Acre, tinham direito de reaver os seringais em que seus pais e avós viviam na floresta acreana. Naquela época, aos Kaxinawá de Sueiro só restava apenas um dos oito seringais de seus antepassados. "A luta dos nossos parentes antigos pela demarcação da terra foi importante para toda a nação Kaxinawá", assinalou o filho do cacique Suero.
Ainda bem disposto e demonstrando muita alegria em nos reencontrar, Getúlio Sales, depois de indagar várias vezes como estava o irmão antropólogo Terri Aquino, deu todas as dicas sobre o que deveríamos fazer para conseguir um barco a motor na cidade a fim de seguirmos viagem subindo o Jordão em direção às aldeias de seu povo.
Quem nos socorreu para prosseguir viagem foi o professor Norberto Sales, primo de Getúlio, que acabara de deixar a direção da Associação de Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão (Askarj), entidade civil que congrega todos os interesses dos Kaxinawá nesta região do Acre. Norberto deixou o cargo em março passado para ser ocupado por outra liderança indígena.
Já passava das duas horas da tarde quando embarcamos na canoa de Norberto, que decidiu nos acompanhar até as aldeias junto com a esposa e um filho menor. Iríamos subir o Jordão para visitar as primeiras aldeias que concentram uma parte dos dois mil Kaxinawá existentes nas três terras indígenas da região: a do Alto Jordão, a do Baixo Jordão e a do Seringal Independência. O Seringal Independência virou terra indígena porque, a alguns anos, foi comprado pelos próprios índios. As três terras indígenas formam uma área total de mais de 110 mil hectares distribuídos ao longo dos rios Jordão e Tarauacá.

Cocares dos Kaxinawá são feitos de penas de pássaros
A dança comemora a boa colheita

Navegar pelo Jordão em maio já fica um pouco mais complicado porque as águas do rio, nesta época, já começam a baixar, criando muitos balseiros em suas margens, o que torna qualquer viagem de barco até três vezes mais demorada. Mas, mesmo assim, seguimos em direção às primeiras aldeias Kaxinawá, que começam pela de São Joaquim e prosseguem rio acima pelas aldeias Extrema, Empresa, Boa Esperança, Bela Vista, Boa Vista, Morada Nova, Cana Vista, Alto do Bode, Três Fazendas, Belo Monte e Novo Segredo, já nas cabeceiras do rio Jordão. Ali, a terra indígena Kaxinawá fica situada na margem direita do Jordão. Na margem esquerda, está a Reserva Extrativista do Alto Tarauacá, habitada por seringueiros brancos.

Já estava anoitecendo quando aportamos para dormir na aldeia Boa Esperança, onde crianças, jovens, adultos e velhos de sete famílias que ali habitam nos receberam com muita atenção e carinho. De pronto, os índios se pintaram e se enfeitaram para cantar a dançar alguns dos rituais que promovem para celebrar ora uma boa colheita ou ora boa saúde para toda a aldeia.
No dia seguinte, dia 19 de maio, continuamos logo cedo a viagem rumo à aldeia Boa Vista, que era o ponto até onde iríamos nas terras indígenas e onde pousaríamos para filmar, fotografar e entrevistar grande número de Kaxinawá das aldeias próximas. Cerca de quatro horas depois de subir ainda mais o Jordão, chegamos finalmente na aldeia Boa Vista, onde mais de 100 índios já nos esperavam nos barrancos do rio.
Vestidos com grandes cocares de todas as cores, feitos de penas de araras, papagaios, gaviões e outras aves da floresta, enfeitados com colares e pulseiras e pintados com os mais diversos desenhos da arte Kaxinawá, os índios nos receberam celebrando o ritual da dança da boa colheita, que também serve para dar as boas vindas aos visitantes das aldeias. Tocando em cornetas feitas com bambu e pele de tatu e cantando e dançando em volta da grande oca construída no centro da aldeia Boa Vista, os Kaxinawá nos saudaram com muita alegria. Logo nos convidaram a sentar em pequenas redes que armam dentro da oca e que servem como cadeira para todos sentarem e conversarem.
Na aldeia Boa Vista pudemos, enfim, conhecer um pouco da história, da cultura, da arte e da economia dos Kaxinawá, um povo que apesar de viver disperso em várias aldeias, apresenta uma organização interna muito forte e bem definida, com cada elemento da aldeia exercendo um papel importante determinado pela comunidade.
Um a um, os diversos agentes das aldeias foram se apresentado. Primeiro, foi o "Shaneybu", que é a liderança local da aldeia, que forma o que os índios chamam de "verdadeiro governo" de cada aldeia, que é auxiliado pelos outros agentes constituídos pela comunidade. E que são o "Yucinambu", o professor bilíngue; o "Dauiá", o agente de saúde; o "Neibu", o agente agroflorestal; o "Tywe", o agente de prevenção à violência (espécie de guarda da aldeia), as "Aimbu", as mulheres; o "Yuxiã", o pajé; os "Binibu", os seringueiros; os "Mastybu", os mais velhos; e os "Pixta", que são os meninos e adolescentes da aldeia.
Cada liderança reúne semanalmente as famílias sob a sua responsabilidade para trocarem informações e experiências que sirvam para viver melhor na floresta. Além disso, as lideranças fazem uma reunião semestral de toda a comunidade Kaxinawá para ampliar as trocas de informações e experiências que cada aldeia acumulou nos últimos seis meses para melhorar a qualidade de vida na selva.

Kaxinawá invocam os espíritos da floresta em dança dentro da oca
Lideranças acompanham o desenvolvimento social nas aldeias

A organização dos Kaxinawá é reforçada ainda com reuniões que cada uma das três terras indígenas fazem anualmente para também reciclarem os conhecimentos em favor de toda a comunidade. Para finalizar, as lideranças fazem uma grande assembléia geral anual para que os coordenadores de todas as aldeias discutam e definam um calendário de atividades que serão executadas ao longo do ano em todas as três terras indígenas.
"Com este encontro anual, definimos e debatemos o nosso programa que se liga ao município do Jordão, ao estado do Acre e ao Brasil. Assim, ficam definidos os papéis das lideranças para a ano que se segue. Desta forma, construímos uma estrutura básica que prepara as lideranças para acompanhar o desenvolvimento social e político das nossas comunidades", explicou José Osair Sales, mais conhecido como Siã Kaxinawá, também filho do velho Suero, que na última assembléia geral, realizada em março passado, foi reconduzido ao cargo de cacique geral das três terras indígenas, cargo que os índios preferem denominar de "coordenador geral".
A exemplo dos Ashaninka, do rio Amônia, os Kaxinawá do Jordão e Tarauacá, sob o comando de agentes florestais indígenas, que se formaram com o apoio do Governo da Floresta, também fazem manejo de árvores na floresta, plantando especialmente aquelas destinadas à construção de casas e canoas. Além disso, plantam muitas árvores frutíferas ao redor das aldeias, como pupunha, cupuaçu, coco, manga, tangerina, laranja, graviola, cacau, acerola, amora, cupuí, castanha, cheiro verde e urucu. Com a árvore do mulateiro, os índios fazem teto, caibro, esteio e barrote para casa, além de produzirem lenha. A paxiúba, por sua vez, é usada para fazer o assoalho da casa.
A economia dos Kaxinawá é completada com a produção de artesanatos dos mais variados tipos, principalmente vasos, panelas e totens. Os índios também extraem seringa para a produção de couro vegetal e colhem duas vezes por ano o amendoim, uma de suas principais fontes de alimento, que é plantado em todas as aldeias próximo aos barrancos dos rios Jordão e Tarauacá.
Primeiro povo indígena a estudar a sua própria língua, além do português, os Kaxinawá são conhecidos por serem um povo alegre, pacífico e muito arraigado às suas tradições, cujas lembranças eles procuram sempre resgatar em suas pinturas, em suas roupas e em seus variados artesanatos, que lembram cenas de histórias de floresta, de lua, de sol e de cipó, como as que o professor Ibãn Kaxinawá, que concluiu o ensino médio em 2000, adora contar para as crianças e os visitantes das aldeias. Em nossa passagem pela aldeia, Ibãn estava trabalhando num CD que pretende gravar com músicas de festa do Mariri ou festa do cipó de Aywasca, que os Kaxinawá fazem periodicamente para saudar os espíritos e as divindades da floresta.
O professor Norberto Sales, nosso guia, revelou que também está trabalhando na confecção de um livro que pretende publicar em breve sobre o batizado das crianças entre 10 e 12 anos das aldeias, que se constitui numa das cerimônias de maior significado da cultura dos Kaxinawá. À noite, nas aldeias dos Kaxinawá, além de uns bons "banhos de estrela" de céu iluminado, pudemos desfrutar de especiarias que nos foram oferecidas pelos índios, tais como suco de mandioca, mandioca cozida, banana cozida, farinha de mandioca e alguns nacos de carne de animais silvestres, cassados na floresta com o único objetivo de saciar a fome nas aldeias.
Com direito de se casarem com mais de uma esposa, os Kaxinawá vivem em plena paz e harmonia entre si, comendo o que o rio e a floresta oferecem e dando a oportunidade para velhas lideranças, como Luiz Pinheiro Kaxinawá, chegar aos 82 anos em pleno vigor físico. "Me sinto muito mais forte do que um jabuti velho", confessou seu Luiz, hoje aposentado do Funrural, ao revelar que sente muitas saudades dos tempos em que lutou junto com o antropólogo Txai Terri Aquino pela demarcação das terras de seu povo. No dia seguinte, 20 de maio, deixamos o rio Jordão de volta para Rio Branco, não sem antes sermos recebidos, com mais festas, pelos índios da aldeia São Joaquim, situada a uma hora de barco da cidade do Jordão.

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