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Índios isolados apóiam saída de arrozeiros

FSP, Brasil, p. A12
Autor: João Carlos Magalhães e Marlene Bergamo
14 de Dez de 2008

Índios isolados apóiam saída de arrozeiros
Grupos que passaram a viver no interior da Raposa/Serra do Sol, longe de fazendeiros, se dizem felizes com isolamento étnico
Segundo comunidades, a vida "melhorou quase 100%" após início da debandada de produtores no início de 98, com demarcação da reserva

João Carlos Magalhães
Da agência Folha, na Raposa/ Serra do Sol
Marlene Bergamo
Enviada especial à Raposa/ Serra do Sol

No interior dos 1,7 milhão de hectares da terra indígena Raposa/Serra do Sol (RR), onde o STF (Supremo Tribunal Federal) deve decidir no ano que vem pela retirada da população não-índia, índios macuxis que já passaram a viver em isolamento aprovam a experiência.
A polêmica sobre a retirada dos não-índios se concentra na Vila Surumu, onde estão as propriedades de rizicultores como Paulo César Quartiero. Mas em quase todo o resto da Raposa/Serra do Sol o "homem branco" já foi embora -debandada que começou com a demarcação da terra, em 1998 .
E, nas comunidades por onde a Folha passou, algumas a cerca de 200 km de estradas de terras de Pacaraima (RR), aqueles que os índios chamam de "invasores" não deixaram boas lembranças.
Mesmo morando nos casebres que sobraram dos antigos fazendeiros, com suas vias de acesso em péssimo estado e apenas com o atendimento mais básico de saúde, todos os índios entrevistados (sem a mediação de líderes envolvidos na disputa) se disseram felizes com o isolamento étnico.
Eles vivem da mandioca e do milho que plantam, do gado que criam -já são cerca de 40 mil cabeças, segundo a Funai- e do diamante e do ouro que conseguem garimpar ilegalmente (leia texto nesta página).
Segundo disseram, só vendem o boi para fora quando precisam pagar dívidas.
"Ah, melhorou quase 100%", disse Danilo de Souza, 38, morador da Vila Socó, na região próxima à fronteira com a Guiana. "Antes, eles [os não-índios] não deixavam a gente ter nossa roça, batiam na gente. Foram passando cercas, tirando a gente da nossa terra."

Marcado a ferro
Outras pessoas também relataram agressões na época da presença de não-índios. De acordo com um agente da Funai na região, há até um homem ainda vivo que, antes da demarcação, foi marcado a ferro por um proprietário rural.
Segundo Souza, os índios eram empregados pelos fazendeiros. Mas recebiam muito pouco ou eram pagos com cachaça, popularizada pelas dezenas de garimpeiros que atuavam ali na década de 1980. "Trabalhei dois anos para eles e ganhei só um bezerrinho."
O processo de saída do "homem branco", afirmou Souza, só foi possível quando os índios da vila criaram um grupo apelidado de "Vai ou Racha", com apoio de missionários católicos que atuam na reserva.
Eles impediram os índios de beber e forçaram os fazendeiros a aceitar suas criações e lavouras. Até hoje o álcool está banido da comunidade.

Arco e flecha
Em direção ao norte, encontram-se índios com pouco contato com outras culturas, que falam suas línguas originais e ainda caçam e pescam com arco e flecha, algo impensável quando se vê os moradores da Surumu, onde muitos usam celular, tocadores de MP3 e roupas de marca -falsificadas.
"Comecei a aprender a atirar flecha há 11 anos", afirmou Maique José, 28, da comunidade Caxirimã, enquanto manejava seu arco. Quando adolescente, ele chegou a trabalhar em fazenda, só para aprender a criar gado sozinho.
Mas a retomada das tradições produtivas indígenas, que incluem o trabalho e o consumo coletivo, ainda sofre alguma resistência dentro das comunidades. "Tem pessoa que fica com frescura, não quer participar", disse Nunes da Silva, 24, também morador da Vila Socó.

Vila dentro de reserva está "uma tristeza só" com saída de fazendeiros, diz índia

Da agência Folha, na Raposa/ Serra do Sol
Da enviada à Raposa/ Serra do Sol

Para a índia macuxi Erotéia Mota (DEM), 35, secretária de Administração e Planejamento de Pacaraima (RR), cidade que tem como prefeito o arrozeiro Paulo César Quartiero (DEM), a Vila Socó, visitada na sexta-feira pela reportagem da Folha, virou "uma tristeza só" com a saída dos fazendeiros.
Ligada à Sodiurr (Sociedade em Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima), ela ficou conhecida em maio quando ameaçou se explodir -com um colete que supostamente tinha bombas- em protesto contra a operação da Polícia Federal para retirar os não-índios.
"[Quando] tiraram os fazendeiros dali [Vila Socó], acabou tudo, as casas, as estradas." Ela, que nasceu na vila, saiu de lá ainda criança e é mal vista pelos índios que ainda moram no local, pois, para eles, traiu suas origens.
Erotéia disse que o mesmo vai ocorrer com a Vila Surumu se os ministros do STF não mudarem seus votos e os fazendeiros forem obrigados a sair. "Ninguém vai querer morar num lugar onde não tem nada." Ela afirmou que o governo não vai ser capaz de dotar a área com infra-estrutura necessária para manter a população no local.
Além disso, disse, movimentos como o CIR (Conselho Indígena de Roraima), que ajudam a organizar a reserva, vão perder poder e se esvaziar com o possível fim da disputa no ano que vem.

Garimpo é antigo dentro de terra, dizem indígenas

Da agência Folha, na Raposa/ Serra do Sol
Da enviada à Raposa/ Serra do Sol

Se para a Polícia Federal e para a Funai os garimpos ilegais na Raposa/ Serra do Sol são ações isoladas, para índios ouvidos pela reportagem são um meio antigo de sobrevivência, apesar de não tornarem nenhum indígena rico.
"Eles [garimpos] estão todos na beira do rio, [fazemos] com peneira mesmo. Mas é só para comprar uma roupa, uma rede para nós", disse Audésio Lima Pereira, 21, que até dois anos atrás também tentava, manualmente, achar pepitas de ouro ou pequenas pedras de diamante. Desistiu porque, afirmou, não dava muito dinheiro.
Segundo o IBGE, apenas de ouro há 26 locais de exploração, que, diz a Constituição, só pode ser feita em terras indígenas com autorização do Congresso.
Lima e outros dois índios garimpeiros disseram que a prática, segundo seus familiares mais velhos, remonta ao começo do século 20, quando os não-índios começaram a chegar em maior número à região. "Tinha tanto ouro que o pessoal usava para fazer bala para espingarda", afirmou Edilson da Silva, 42, lembrando que seus antepassados não tinham noção do valor.
Hoje, quando um índio consegue achar algum mineral de valor em um dos rios da reserva, tentam revender em cidades próximas, como Uiramutã, Pacaraima ou Boa Vista.
"Se for ouro, vende em qualquer lugar. Se for diamante, precisa conhecer alguém", disse Silva, que não soube dizer quanto se ganha em média por mês com a exploração.
Segundo a Funai, os próprios índios avisam a fundação quando vêem alguém garimpando, já que boa parte das comunidades tem estação de rádio.
Isso, dizem os índios, não impede que "homem branco" entre na reserva para a atividade. "Mas antes da homologação era pior, porque não deixavam a gente nem chegar perto [do garimpo]", disse Lima.

FSP, 14/12/2008, Brasil, p. A12

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