VOLTAR

Índios e fazendeiros em guerra

A Crítica, Brasil, p. A9
22 de Jan de 2004

Índios e fazendeiros em guerra
Não cumprimento de ordem judicial de reintegração foi à causa do confronto no Mato Grosso do Sul. Jornalistas foram envolvidos

Índios e fazendeiros entraram em luta ontem em Iguatemi, em Mato Grosso do Sul, a 510 quilômetros de Campo Grande, em disputa pelas terras da região. Houve disparos de armas de fogo dos dois lados, mas ninguém foi atingido pelas balas. Um fazendeiro foi golpeado no braço por um índio armado de facão, e um índio, atingido na cabeça pela pá de um fazendeiro. Dois homens, acuados pelos indígenas, saltaram de uma ponte de 20 metros de altura, nas águas do rio Iguatemi. Um deles passou mal e foi socorrido. Uma jornalista que cobria o incidente foi feita refém pelos caiovás-guaranis e libertada uma hora depois, com o corpo pintado.
Não havia nenhum policial ou autoridade do governo no local. 0 confronto ocorreu às 13h45 durante um protesto dos fazendeiros contra a demora no cumprimento de uma liminar do juiz federal Odilon de Oliveira, dada no último dia 16, para a desocupação de 14 fazendas invadidas pelos índios na região.
Aproximadamente 500 fazendeiros e empregados rurais bloquearam com tratores e caminhonetes, às 11h30, a passagem pela ponte da rodovia estadual de terra batida que dá acesso à Aldeia Porto Lindo, dos caiovás-guaranis, e às áreas invadidas. A estrada liga também Iguatemi e Japorã, na fronteira com o Paraguai. Do outro lado da ponte, os índios começaram a se preparar para o embate. Por volta das 13h, já eram aproximadamente 600 armados com flechas, bordunas, facões e espingardas, e tinham chegado a cerca de 300 metros do bloqueio.
De repente, os índios começaram a entoar o grito de guerra e avançaram contra os fazendeiros. O confronto foi inevitável.
Disparos
Do lado dos índios houve vários disparos de espingardas para o alto. De cima de um trator, um dos fazendeiros descarregou seu revólver mirando acima das cabeças dos índios. Outro homem também atirou. No total, foram dados mais de dez tiros. Um índio armado de facão avançou contra o fazendeiro Márcio Margatto. Ao esquivar-se, ele foi atingido no braço, de raspão, e caiu no rio. Os colegas usaram um laço para resgatar Margatto.
O cacique, com o rosto pintado sobre o cavalo, brandia uma lança e desafiava os fazendeiros. "Atira, atira aqui. Mata o índio! A terra é nossa", gritava, batendo com a mão no peito. Os fazendeiros, empunhando paus, chaves de roda e outras ferramentas, foram recuando. O comerciante Geonedis Ledesma Peixoto colocou-se à frente para conter os mais exaltados. "Não viemos aqui para brigar, estamos fazendo um protesto em paz", dizia. "Cadê as balas, atira em nós", retrucava o cacique. Outros índios gritavam para que avançassem sobre a ponte. "Vamos derrubar todos."
Reforço
Os próprios fazendeiros foram chamar a polícia. Às 14h20, quatro policiais militares do destacamento de Iguatemi chegaram no local. O tenente Natanael Bonatto de Souza, que comandava o grupo, assumiu as negociações. Os índios concordaram em não avançar se os "brancos" saíssem da ponte. Os fazendeiros recuaram. Tratores e caminhonetes foram removidos para o outro lado. "Outra vez eles nos expulsam, agora não podemos nem protestar", reclamou Ilmara Varago,.filha de um dos fazendeiros que tiveram as terras invadidas. "Nosso gado está morrendo, ninguém faz nada, cadê o governo?"
Choro
A jornalista Jaqueline Lopes chorou depois de ser libertada. "Eles me trataram bem, mas fiquei muito assustada". 0 cinegrafista Ademir Almeida foi pintado pelos índios mas não ficou refém. Os fazendeiros acusaram uma equipe de televisão da BBC de Londres de ter estimulado o conflito, pois estavam com os índios quando houve o bloqueio. 0 jornalista inglês Tom Gibb considerou absurda a acusação. "Estamos apenas fazendo o nosso trabalho".
No fim da tarde, os fazendeiros decidiram suspender o bloqueio na rodovia. Às 18h, os veículos que estavam sobre a pista foram removidos. Dois delegados e 14 agentes da Polícia Federal chegaram ao local da briga quando o bloqueio já havia sido suspenso. Os representantes regionais da Fundação Nacional do índio (Funai) não apareceram. Durante o confronto, os quatro PMs ganharam apenas o reforço de três colegas que estavam de férias e de um delegado e um investigador da Polícia Civil.
Margatto lamentou o confronto que o deixou ferido. "Nosso objetivo era fazer uma manifestação pacífica para chamar a atenção da sociedade e exigir que a decisão do juiz seja cumprida". Os fazendeiros vão continuar mobilizados, disse ele. Na cidade de 14 mil habitantes, a maior parte do comércio fechou as portas, a partir do meio-dia, em apoio aos fazendeiros.

Comandante da PM
Sorte evitou mortes dos dois lados
IGUATEMI, MS (AE) -O tenente Natanael Bonatto de Souza, comandante da Polícia Militar em Iguatemi, disse que foi pura sorte" não terem ocorrido mortes no conflito entre índios e fazendeiros. O clima era de extrema tensão, comentou. "Tanto que foram feitos disparos que, felizmente, não atingiram ninguém." Primeiro policial a chegar ao local do conflito, o comandante disse ter encontrado uma situação explosiva, na qual "os índios estavam dispostos a ir para cima do pessoal". Ele disse ter falado com firmeza com os índios, mostrando as inconveniências de um conflito - e ameaçou prender um fazendeiro que insistia em não recuar. Quanto ao pequeno número de policiais deslocados para a área - inicialmente, apenas os 4 PMs que estavam de serviço - ele explicou que não adiantaria ter um efetivo maior naquele momento. "O número de pessoas se enfrentando era muito grande e íamos precisar de um exército, caso fossemos obrigados a agir pela força". Segundo Souza, o secretário da Segurança Pública do Estado, Dagoberto Nogueira, foi informado da situação, "mas os conflitos que envolvem índios são de competência da Polícia Federal".
Posse
Os antepassados dos índios caiovás-guaranis, que hoje reivindicam terras em Mato Grosso do Sul, já foram donos de boa parte da Região Sul do País. Quando os portugueses aqui chegaram, os guaranis se espalhavam desde Cananéia, no litoral paulista, até o Rio Grande do Sul e parte do Paraguai. Os rios Tietê, ao norte, e Paraguai, ao sul, fechavam seus territórios, segundo estudos arqueológicos. Os caiovás, ou caiowas, constituem um dos três subgrupos guaranis conhecidos. Os outros dois são os nhandeva e mbya. Cada um deles possui características próprias, da língua à orientação religiosa. Somados, os guaranis representam o maior grupo populacional indígena do País, com cerca de 34 mil indivíduos. Isoladamente, os caiovás somam quase 20 mil.

A Crítica, 22/01/2004, Brasil, p. A9

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.