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Índios do Amazonas querem intérpretes nas escolas

Folha de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: AURELIANO BIANCARELLI
29 de Set de 2003

Professores indígenas da região do Alto Rio Negro criticam condições para ensino durante assembléia na mata

Criança da etnia hupda em Santo Atanásio, comunidade que tem um tradutor durante as aulas

A professora tukana Eneide Prado Freitas, 28, ensina em português, e as cartilhas são em português. As crianças são da etnia hupda e só entendem sua própria língua. Virgulino Penedo Pena, 30, da mesma etnia, é o intérprete. Vai passando cada frase do português para o hupda. É ele também quem conta a história, os costumes e as tradições da tribo.
As cerca de 20 crianças, do pré e em início de alfabetização, pertencem à mais esquecida das 22 etnias que habitam a região da Boca do Cachorro, na região do Alto Rio Negro, divisa do Estado do Amazonas com a Colômbia.
As aulas são dadas debaixo de uma grande palhoça, e a merenda escolar -leite em pó, feijão, macarrão, carne enlatada -é preparada pela própria professora. Quando acaba a comida, os alunos não vão à escola. "Quase metade do tempo ficamos sem aula", dizem os professores. Das 57 crianças que começaram o ano nas duas escolas da aldeia, só 27 continuam estudando hoje.
Para chegar à comunidade hupda de Santo Atanásio, saindo de São Gabriel da Cachoeira (a 847 km de Manaus), são necessárias 14 horas de barco a motor (voadeira) subindo o rio Negro, o rio Uaupés e entrando pelo igarapé Japuri. Depois são outras duas horas de caminhada pela mata, na velocidade dos hupdas, "os senhores do caminhos", como são conhecidos.
O que acontece com os hupdas de Santo Atanásio é um dos sonhos da comunidade indígena do Alto Rio Negro. Ou seja, que cada escola, além do professor que ensine o português e as matérias convencionais, tenha um interprete na sala, alguém aceito pela comunidade como conhecedor dos costumes e das tradições e que possa ensinar a língua materna para os alunos.

Aberrações
A presença de professores indígenas de outras etnias e que não falam a língua das crianças é uma das aberrações que acontece na região, fruto de um sistema estabelecido em gabinetes, "por gente que não conhece a nossa realidade", como dizem líderes locais.
Segundo Henrique Veloso Vaz, 47, professor da etnia desano e representante da Funai (Fundação Nacional do Índio), para ser professor indígena, é preciso estar cursando o magistério indígena. O intérprete hupda, Virgulino, continua dando aulas na mata sem saber que já foi demitido.
Vaz falou como coordenador da primeira assembléia dos professores indígenas do Alto Rio Negro, que terminou ontem em São Gabriel. Alguns dos 150 professores indígenas viajaram mais de quatro dias e quatro noites. Reagiam sobretudo às decisões que não levam em consideração as distâncias e as diferenças de etnias e línguas. Para receber o salário em São Gabriel, muitos perdem até dez dias de aula. Os contratos precisam ser renovados a cada ano, o que desperdiça meses.
Juscelino Pereira Azevedo, tukano de Pari-Cachoeira, uma das mais distantes comunidades, falou pela Apiarn, associação que reúne os cerca de 400 professores indígenas do Alto Rio Negro. "Somos discriminados como índios e como professores." Cerca de 95% dos professores são indígenas. "As autoridades precisam saber que quem manda na nossa terra somos nós", disse o professor tukano Gilmar Luiz Lara Vieira, 33.
A Secretaria de Estado da Educação do Amazonas, que tem 12 escolas na áreas indígenas do Alto Rio Negro, disse que criou uma subcoordenadoria para educação escolar indígena, coordenada por um indígena. "Estamos empenhados na formação de professores", disse Nídia Regina Sá, representante da pasta.
Tanto a secretaria estadual quanto a municipal reconhecem, no entanto, problemas nas condições de ensino. O tukano João Bosco Aguiar Marinho, coordenador de educação indígena da prefeitura, diz que ainda há "muitas crianças que estudam sentadas em folhas de bananeira".
"As autoridades não estão dando a importância que a questão indígena merece", reconheceu.

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