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Índios ameaçados

CB, Economia, p. 14
30 de Jul de 2007

Índios ameaçados
Grupo espanhol, investigado por crime de lavagem de dinheiro, é acusado de invadir 3,1 mil hectares de terras indígenas onde vivem 120 famílias. Área abrigará complexo turístico orçado em R$ 18,5 bilhões

Lucas Figueiredo

Itapipoca (CE) - Investigado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda, por suspeita de lavagem de dinheiro do crime organizado internacional, o grupo espanhol Nova Atlântida é acusado de invadir terras indígenas. Segundo o coordenador da Funai no Ceará, Nemésio Moreira de Oliveira Júnior, a área de 3,1 mil hectares no município de Itapipoca (200 quilômetros de Fortaleza), onde o grupo pretende implantar um megacomplexo hoteleiro, pertenceria de fato a 120 famílias Tremembés.

Orçada em US$ 15 bilhões, a Cidade Turística Nova Atlântida é o maior projeto turístico do país. Prevê a construção de 13 hotéis cinco estrelas, 14 resorts, seis condomínios residenciais e três campos de golfe, numa área contínua de 12 quilômetros de praia e 3,1 mil hectares (o equivalente a 167 estádios do Maracanã). Conforme noticiado ontem, o Coaf está monitorando a movimentação financeira do grupo, inclusive remessas feitas do exterior, por suspeitar que os recursos do projeto sejam provenientes do crime organizado internacional.

O coordenador da Funai no Ceará, Oliveira Júnior, afirma que a Nova Atlântida está cooptando índios das duas aldeias Tremembés de Itapipoca (São José e Buriti) com o objetivo de dividir a tribo e tomar suas terras. "A Nova Atlântida é um grupo poderoso. A empresa tem usado artifícios para tornar o ambiente hostil, colocando parente contra parente", diz ele. De acordo com Oliveira Júnior, cerca de 30% dos Tremembés da região já foram "aliciados" pela empresa em troca de contratos de trabalho e hoje negam a sua origem indígena.

O grupo Nova Atlântida afirma que as terras do empreendimento foram compradas em 1978. Segundo o advogado da empresa, Felipe Abelleira, não existem índios na região. O diretor da empresa, Erwin Frank Roman, afirma que eles são, na verdade, do MST. "Foi preciso cercar a área para que esses ditos índios não a invadissem", afirmou Abelleira.

Em fevereiro deste ano, a Funai emitiu uma declaração em que "reconhece a presença da população indígena da etnia Tremembé e o direito de usufruto das aldeias de São José e Buruti". Segundo Oliveira Júnior, mesmo que a demarcação esteja atrasada, a região já é oficialmente considerada como terra indígena e, portanto, não pode ser ocupada pela Nova Atlântida.

As obras da Cidade Turística Nova Atlântida já deveriam ter começado há dois anos, mas estão paradas justamente por causa da disputa com os Tremembés. Em 2004, o Ministério Público Federal pediu à Justiça que embargasse a obra, alegando a existência de falhas no processo de licenciamento ambiental do complexo turístico. De fato, como afirma o MP, o processo da Secretaria do Meio Ambiente do Ceará ignorou a presença dos índios na região. A Justiça acatou o pedido, em decisão liminar. A palavra final sobre a disputa ainda não tem data para acontecer.

Acusações

Tremembés de São José e Buriti relataram que desde 2002 a empresa vem pressionando pela saída dos índios. Policiais militares contratados pela empresa em horário de folga teriam ameaçado e agredido moradores e fechado cacimbas onde os índios tiram água. "Essa empresa é muito forte", afirma a professora Erbene Rosa Veríssimo, de origem Tremembé. "Sem a terra para sobrevivermos, não somos nada. Mas a empresa só pensa no dinheiro", diz ela.

A Nova Atlântida tem tentado negociar a saída dos índios, oferecendo em troca dinheiro e casas em outras regiões. Erbene reconhece que os Tremembé de Itapipoca estão divididos, mas afirma que dois terços do grupo não aceitam deixar suas terras. "Nós não vamos negociar com a empresa, por dinheiro nenhum. Se perdermos essa terra, para onde iremos? Essa é uma questão de sobrevivência das próximas gerações", argumenta Erbene.

Os índios afirmam que a Nova Atlântida quer tomar a terra à força. "Eu nasci aqui e hoje tenho 73 anos. Meus pais e meus avôs também nasceram aqui. Vivemos da caça, do plantio da mandioca e da pesca, como nossos ancestrais. Ainda hoje dançamos o torém (dança Tremembé), como os antigos faziam. Mas agora querem tomar o que é nosso", afirma Francisco Veríssimo. No final do ano passado, os índios reagiram, ocupando uma estrada da região para impedir o transporte de material da empresa. Foi preciso a intervenção da Polícia Federal, da Funai e do Ministério Público para diminuir a tensão e convencer os índios a desobstruirem a estrada. A Anistia Internacional acompanha o caso.

Miséria

Cerca de 80 moradores de São José e Buriti que renegam a origem indígena trabalham para a empresa. Um deles é Moacir Carlos do Nascimento. "Os que se dizem índios na verdade não desejam a bondade que a Nova Atlântida vem fazendo. Nós nascemos na miséria. Por que temos de morrer na miséria?", questiona Moacir, que supervisiona o trabalho nos viveiros, onde cada funcionário tem jornada mensal de 10 dias de trabalho e ganha R$ 130.

O salário pago pela empresa tem um grande impacto na região, já que a maioria da população não tem renda fixa, vivendo do que consegue obter com a venda de farinha de mandioca ou dos recursos do Bolsa Família. As aldeias São José e Buriti até hoje não têm luz e as casas não têm banheiro, por falta de rede de esgoto. "A Nova Atlântida tem um poder financeiro muito grande. Quer mandar na gente, mas nós não aceitamos", afirma a professora Tremembé Adriana Carneiro Costa.

Decisão judicial é descumprida

Apesar da liminar da Justiça que impede o início das obras de seu megacomplexo turístico, a Nova Atlântida continua trabalhando no projeto. A reportagem esteve no local e constatou que a empresa está fazendo dois viveiros com 20 mil mudas de árvores, destinadas ao projeto paisagístico do complexo. A empresa também construiu um quiosque, onde ficam seguranças da Nova Atlântida, cercou áreas e colocou estacas e marcos na praia.

Em dezembro passado, o analista pericial em antropologia do MP, Sérgio Telles Brissac, produziu um parecer técnico em que constata o "flagrante descumprimento por parte da empresa Nova Atlântida da decisão liminar". Segundo o perito, "percebe-se claramente a consecução de uma estratégia da empresa visando a inviabilizar a forma tradicional de vida da comunidade indígena Tremembé".

Segundo o perito, "as intervenções realizadas pela empresa na terra têm diminuído as possibilidades de subsistência do povo indígena, (...) impedindo a coleta de caranguejos na gamboa próxima ao viveiro de mudas em São José". Na conclusão do parecer, Brissac afirma que "as constantes rondas dos seguranças da empresa, as ameaças, ofensas e o que chamei de 'boicote ao modo de vida tradicional' tudo isto se constitui claramente constrangimento, pessoal ou patrimonial, à comunidade indígena, ou seja, ação vedada à empresa pela decisão liminar". O advogado da Nova Atlântida nega que a empresa esteja descumprindo a liminar. Afirma também que não é verdade que a empresa tenha ameaçado os Tremembés. (LF)

"Intervenções da empresa na terra têm diminuído as possibilidades de subsistência do povo indígena "
trecho do parecer do MP sobre o projeto Nova Atlântida

CB, 30/07/2007, Economia, p. 14

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