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Indio em campo

JB, Domingo, p.18-22
04 de Jul de 2004

Índio em campo
Jogos indígenas reúnem 500 atletas de 14 povos diferentes durante uma semana, às margens do Rio Tocantins, no Pará
Lula Branco Martins
Quando o progresso, em forma de usina hidrelétrica, chegou aos arredores de Tucuruí, os índios Parakanãs dançaram. Dançaram no mau sentido. Até os anos 70, eles eram os donos do lugar, mas foram expulsos para a barragem ser construída. Pois semana retrasada lá estavam eles dançando de novo - mas agora numa arena montada bem no centro daquela cidadezinha do Pará, e desta vez dançando de alegria: eram estrelas de uma espécie de olimpíada de índio, evento bancado pelo governo do Estado e organizado pelo homem branco a partir da reivindicação das próprias tribos.
Este foi o nome oficial da coisa: Jogos Tradicionais Indígenas do Pará, em sua primeira edição. Uma equipe da revista Domingo esteve lá, às margens do Rio Tocantins, na beirada da Amazônia, registrando, na memória e em fotos, momentos de beleza inesquecível, flagrantes de superação, de força e orgulho.
Além dos Parakanãs, outros 13 povos participaram da competição, 500 atletas no total. Enrola a língua quem tenta falar certinho o nome de todas as etnias - palavras em inglês a essa altura podem nos soar mais naturais. Mas em Tucuruí, por sete dias, reinaram os índios da tribo Wai-Wai, craques da pesca. Também os Aikewaras, caçadores por excelência. Ainda os Xipayas, que um dia já foram antropófagos. Guerrearam, sob as mesmas regras, tribos densamente povoadas (como o povo Munduruku, que são 7.500 indivíduos só no Pará) e tipos humanos quase em extinção, caso dos Anambés, que não passam de 140 pessoas em todo o país, sendo que só seis ou sete entre eles ainda falam a língua tradicional.
Aliás, o que poderia ser o maior entrave para o desenrolar dos jogos - pois, como numa olimpíada mundial, cada um ali falava uma língua - foi superado com a intervenção, logo no primeiro dia de provas, do líder Marcos Terena, representante dos índios brasileiros nas Organizações das Nações Unidas, um dos caciques do evento. Esperto, agregador, ele pegou o microfone das mãos do locutor oficial e ensinou à assistência como se diz ''amigo, irmão'' em sua língua natal, do Mato Grosso do Sul: é algo como ''boainú'', na fonética do português comum. Daí em diante foi um tal de ''boainú'' pra cá, ''boainú'' pra lá, e todo mundo de repente ficou amigo, virou irmão. Organizadores, voluntários, a torcida, gente de Tucuruí, todos se saudavam com um afetivo ''boainú''. Bom, isso pelo menos até o apito do juiz.
Pois uma vez começado o jogo, cada índio vira, ao pé da letra, guerreiro. São inimigos, pelo menos enquanto não é decretado o vencedor. E eles dão tudo de si. Vê-se isso com mais nitidez em competições como o cabo-de-guerra. Uma equipe faz força para um lado, outra faz força para o outro, tanta que aos poucos eles vão se enfiando na areia, chegando quase a deitar. Na corrida de toras o suor e a garra também ficam evidentes. O treco pesa mais de cem quilos, vai de ombro em ombro e chega a machucar alguns. No arco-e-flecha a disputa se dá em nível mais sutil, sofisticado até. É arte do detalhe e da concentração. Não por acaso nesta modalidade os mais velhos se deram melhor. E a galera - cerca de 3 mil pessoas por dia - bem que gosta. Vem um jovem fortão, erra o alvo (um peixe desenhado numa tela) nas suas três tentativas. Vem um índio adulto barrigudo e faz um pouco melhor: acerta o rabo do bicho. Aí chega aquele velhinho, cara de pajé, magrelo, a pele já parecendo descolada do corpo, e acerta três flechadas bem na cabeça do peixe, justo onde vale mais. Arena de pé, aplaudindo longamente e, como sempre, gritando ''boainú, boainú''.
Índio é um cara que gosta de carinho. Fica todo bobo quando recebe aplausos. São também muito vaidosos: logo se pintam, por exemplo, para serem fotografados. A equipe da Domingo, junto com outros jornalistas convidados, visitou uma aldeia, no meio do mato, distante uma hora da cidade. Ao perceberem a presença dos convidados inesperados, índios e índias rapidamente armaram uma dança. Daquelas de bater o pé no chão, daquelas em que parecem pedir chuva. E deixaram suas casas de portas abertas, para todos entrarem. Alguns meninos bateram bola com os repórteres. Algumas jornalistas se emocionaram ao pegar bebês, pintadinhos de corpo inteiro, no colo.
Longe de seu habitat, circulando pela cidade lotada por causa dos jogos, os índios parecem qualquer um de nós. Certo, têm os cabelos mais lisos, a pele morena (vermelha, como aprendemos no colégio) e a cara quase sempre amarrada. Mas, de short, chinelo e às vezes vestindo camisetas com grife americana, postam-se na fila do restaurante a quilo como qualquer outro brasileiro faz, e pegam táxi - em Tucuruí a preço único, R$ 6 -, vans ou microônibus próprios, com o logotipo de cada tribo, para conhecer outros cantos da cidade, como a Praia (de rio, claro) do Breu. Não sabem, porém, beber: os comerciantes das redondezas da arena estavam orientados a não vender cerveja aos indígenas, que costumam entornar até cair.
Tal como o homem branco, vão tomando gosto pelo dinheiro e montaram, na beira do Tocantins, um camelódromo para vender cocar, colares e artesanatos. Por R$ 1, faziam pinturas nos braços e nas nucas de turistas e dos moradores da cidade. Com habilidade, rapidez, um pauzinho flexível e uma tinta à base de jenipapo ou urucum, as índias (geralmente elas, e não eles) desenhavam símbolos das tribos e adornavam os admiradores. Os dois jornalistas da Domingo engrossaram a fila dos pintados. A pintura é mesmo leve, sairá em 15 dias. As marcas ficarão para sempre.

JB, 04/07/2004, p. 18-22

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