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Indigenista coordena programa de etnia quase extinta com criação da BR-174

Globo Amazônia - http://www.globoamazonia.com/
Autor: Lucas Frasão
05 de Dez de 2010

Um acordo internacional nos anos de 1960 queria ligar a Patagônia aos Estados Unidos sem passar pelas Cordilheiras. E a criação da BR-174, que hoje conecta as capitais de Roraima e Amazonas, fazia parte do plano brasileiro para a integração do continente americano. A existência de 1.500 waimiri atroaris na divisa entre os dois estados era vista pelo governo como entrave ao avanço da estrada, cuja construção quase resultou na morte de uma etnia.

José Porfírio de Carvalho presenciou a derrubada da floresta amazônica para a passagem da via. Por conta de insurgências indígenas contra a obra, também sentiu, mais de uma vez, que estava prestes a dar seu último passo.

"Chegamos em um hidroavião. O piloto disse: 'só desço se vocês deixarem um papel me autorizando a ir embora, não fico.' Fizemos uma cartinha. Neste tempo eu ainda era jovem e solteiro e deixei um bilhete para minha família. Nos jogamos na água como se fosse a última vez na vida".

Nadando ao lado do indigenista Gilberto Pinto Figueiredo, Porfírio inciara ali a mais aventureira expedição de sua carreira. A missão era resgatar colegas de trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai), desaparecidos após tentativas de contato com povos que habitavam a região. Famosos pela reação enérgica a presença de estranhos em suas terras, os waimiri atroaris lutavam contra a chegada do operariado para a construção da BR-174.

Em um dos embates, acabaram atacando funcionários da Funai, que havia sido criada em 1967 e instalou ali um posto de atração com a meta de estabelecer contato com os indígenas. Porfírio avaliou a situação antes mesmo de pousar: "Olhamos para baixo e as canoas dos índios estavam lá. A porta do posto aberta. Sabíamos que o ataque tinha ocorrido".

Em uma parceria cinematográfica, ele e Gilberto se embrenharam na selva querendo encontrar seus colegas ainda vivos. "Combinamos que, se um de nós fosse flechado, o outro teria de voltar sem tentar socorrer, porque isso não valeria a pena", diz. A flecha passou perto e atravessou o corpo de uma cadela que os dois decidiram seguir no meio do mato, acreditando que ela os levaria ao local em que estavam seus companheiros.

"Eu ia na frente. Logicamente estávamos temendo morrer, mas se houvesse alguma chance de nossos colegas estarem vivos, precisávamos socorrê-los, porque acreditavam em nós. Caminhamos acompanhando a cachorra, mas em poucos minutos ela calou. Estava varada com uma flecha. Os índios estavam ali e, naquela hora, senti que era meu último passo. Paramos e voltamos de costas".

Os indigenistas avistaram seus colegas mortos na volta ao posto, onde deveriam aguardar o retorno do avião, previsto para a mesma tarde. Mas o piloto não veio. "Ficamos nós dois lá com os mortos. Descemos pela beira do rio e passamos a noite conversando bem baixinho para que ninguém ouvisse", diz.

A equipe da Funai que Porfírio e Gilberto tentaram resgatar não havia sido a primeira a ser atacada por indígenas. A estrada começou a ser construída no fim dos anos de 1960, pouco depois de o órgão ser criado. E a diretoria da Funai escalou o padre e antropólogo italiano Giovane Calleri para tentar conversar com os índios. "Ele tinha contrato assinado com o Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas para amansar os índios e colocá-los para trabalhar na estrada, que naquela época tinha muita carência de mão de obra", diz Porfírio.

"Chegamos a fazer um bolão para apostar quantos dias o padre ia sobreviver. Foi muito menos do que pensávamos. Em menos de 2 dias ele foi morto dentro de uma aldeia junto com toda sua equipe, com exceção de um ex-funcionário que sentiu que ia ter o ataque, fez uma balsa e se mandou".

Naquele dia de 1968, morreram Calleri e mais 10 pessoas. O corpo do padre foi velado por uma semana em Boa Vista e, de acordo com Porfírio, o ódio contra os waimiri atroaris aumentou a partir daquele momento. O resultado foi a adoção de uma estratégia mais rígida do governo militar para implementar a rodovia e a colocação de 6 batalhões de engenharia do Exército para concluir a obra.

A BR-174 foi finalizada em 1977 cortando um trecho de cerca de 125 quilômetros do território indígena. "Eles se entregaram quando viram que não tinha mais chance de sobreviver. Hoje dizem que se entregaram para tentar escapar", diz Porfírio. A população de waimiri atroaris caiu para 374 pessoas em 1986. Além da pressão que sofriam com o movimento gerado pela nova estrada, também adoeciam após encontrarem com garimpeiros do grupo Paranapanema, que havia começado a explorar cassiterita no local em 1971.

A inauguração da usina hidrelétrica de Balbina, no fim dos anos de 1980, alagou uma área de 30 mil hectares na reserva e poderia representar o ponto final na história dos waimiri atroaris, mas a injeção da verba prevista no estudo de impacto ambiental da obra acabou viabilizando a sobrevivência da etnia.

À frente do programa para os waimiri atroaris desde seu início, Porfírio tirou desta iniciativa o modelo que implantou também entre os índios paracanã. Antes, o indigenista também havia atuado ao lado de José Carlos Meirelles, no Acre, onde ajudaram índios tidos como escravos de seringalistas a reconquistarem suas terras. Seu esforço em ajudar os waimiri resultou no aumento da população, que soma 1.424 pessoas em 2010, ano que simboliza o centenário do indigenismo no Brasil, cujo marco inicial foi a inauguração Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhores Nacionais (SPI), em 1910.

Hoje os indígenas controlam a circulação na BR-174 e bloqueiam a rodovia todos os dias no fim da tarde, abrindo novamente às 5h da madrugada. Os indígenas também têm acordo com a mineradora, editam um jornal em sua própria língua e estão familiarizados com a internet, segundo Porfírio. "Tudo entre eles é decidido por todos, não com representantes. Por isso, às vezes demora para haver uma decisão. Não há cacique nem líder único", diz o indigenista.

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