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Indígenas articulam partido próprio para entrar no Congresso

FSP, Poder, p. A15
27 de Mai de 2017

Indígenas articulam partido para entrar no Congresso 'pela porta da frente'

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
DE SÃO PAULO

Em 1o de fevereiro de 1983, a Folha publicou na primeira página uma foto de Mário Juruna (1943-2002) tomando café no Congresso. A reportagem descrevia a irritação do cacique xavante, primeiro indígena eleito à Câmara, com um churrasco insosso" que lhe serviram: "Gente branca não sabe comer carne".
Não era seu único incômodo. Se acabar a Funai (Fundação Nacional do Índio), criada em 1967 pela ditadura, "vai ser bom pra índio, pois Funai não faz nada pra Índio", disse. "Quem vai ter prejuízo é militar, que está empregado lá."
Passaram-se 34 anos, a Funai voltou a ter um general como líder, e nunca outro indígena conseguiu uma cadeira parlamentar. Um quadro que o Partido Nacional Indígena (PNI) quer reverter, diz o índio caincangue Ary Paliano, 56.
Advogado formado pela Unochapecó (SC), ele preside a sigla em formação, que precisa de 487 mil assinaturas para ser aceita pelo Tribunal Superior Eleitoral. A colheita -que costuma demorar anos e nem sempre dá certo- começa agora, diz Paliano.
O lema: "Colocar os índios no Congresso pela porta da frente". Secretário-geral do partido, Francisco de Oliveira Lima Tabajara, 57, cearense da tribo Tabajara e hoje cirurgião-dentista em Brasília, foi ao Acampamento Terra Livre, que juntou 4.000 indígenas na capital entre 24 e 28/4. No segundo dia, vários tentaram entrar no Congresso pela porta da frente -à força.
Conseguiram furar o bloqueio policial até o espelho d'água em frente à entrada. Reagiram com arco e flecha às bombas de gás da polícia. Protestavam pela retomada das demarcações de terras indígenas e pela saída do ministro Osmar Serraglio (Justiça), que um mês antes disse à Folha que era preciso "parar com essa discussão sobre terras. Terra enche a barriga de alguém?".
Tabajara acha que sim. Uma de suas lutas é contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215. Apoiado pela bancada ruralista e repelido por índios, o texto transfere do Executivo ao Legislativo a palavra final sobre terras indígenas. "O ruralista quer tomar de vez as causas indígenas. Coloca pra lascar mesmo, quer tomar até o que a gente não tem,"
"Índio é realidade viva da ladroagem do poder público: é dono das terras, mas não se preparou e não conseguiu escrituração. E tem terra muito rica, cheia de diamantes, de ouro", afirma.
O general Franklimberg Ribeiro de Freitas, 61, indicado pelo Partido Social Cristão para presidir a Funai (o primeiro militar no cargo em 25 anos), é rejeitado por referências no meio, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Mas, dentro do PNI, seu nome foi bem recebido.
"O primeiro indígena a assumir a presidência da Funai é muito significativo", diz a historiadora Kuana, 41, ladeada por outra simpatizante do PNI, Silvia Nobre Waiãpi, 42, que em 2011 se tornou a primeira indígena mulher nas Forças Armadas.
Freitas, porém, já afirmou à Folha: "Não sou índio, sou de origem indígena. Minha mãe, avo e bisavó eram indígenas".
Assumirá o órgão em momento delicado. No fim de abril, no Maranhão, mais de dez índios Gamela foram feridos em ataque por conflito de terras. Um deles por pouco não teve a mão decepada por golpes de facão. Não é um caso isolado, afirma Tabajara. "Isso acontece direto, já nos mataram famílias inteiras."
E há duas semanas, parlamentares da bancada ruralista aprovaram o relatório final da CPI Funai-Incra, que pede o indiciamento de cerca de cem pessoas ligadas à causa indígena no país.
O estatuto do PNI foi publicado em 2013 no "Diário Oficial da União" e fala do "anseio dos índios em obter as rédeas de suas próprias vidas". "Nada adianta prometer o paraíso aos índios se não se tem os meios para realizar nada", diz texto assinado por Paliano, funcionário da Funai, "que em Brasília virou um cabine de emprego".
Se a vizinha Bolívia até presidente indígena elegeu (Evo Morales), o Brasil tem muito a avançar nessa área, afirma Tabajara. Ele só diz temer que agendas políticas à esquerda ou à direita sequestrem sua causa. Não concordou, por exemplo, com a invasão do espelho d'água do Congresso.Tabajara viu a repressão policial como justa ("não pode ultrapassar as regras da lei").
Para Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Políticas e Direitos Socioambientais do Instituto Socioambiental, a "presença de milhares em Brasília" mostra a "força e capilaridade" do movimento. Ela vê como "fundamental que os povos indígenas conquistem representação no Congresso", mas aponta como "caminho" a entrada em partidos que já existem, não a formação de um novo.

FSP, 27/05/2017, Poder, p. A15

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1887847-indigenas-articulam-…

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