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A impossibilidade do estado de Roraima

O Eco
Autor: BESSA, Paulo
01 de Mai de 2005

A impossibilidade do estado de Roraima

Paulo Bessa

Curumim chama cunhatã que eu vou contar
Antes que os homens aqui pisassem
Nas ricas e férteis terraes brazilis
Que eram povoadas e amadas
Amadas por milhões de índios
Reais donos felizes
Da terra do pau-brasil
Pois todo dia e toda hora era dia de índio
Mas agora eles só têm um dia
O dia dezenove de abril
Amantes da pureza e da natureza
Eles são de verdade incapazes
De maltratarem as fêmeas
Ou de poluir o rio, o céu e o mar
Protegendo o equilíbrio ecológico
Da terra, fauna e flora pois na sua história
O índio é o exemplo mais puro
Mais perfeito mais belo
Junto da harmonia da fraternidade
E da alegria, da alegria de viver
Da alegria de amar
Mas no entanto agora
O seu canto de guerra
É um choro de uma raça inocente
Que já foi muito contente
Pois antigamente
Todo dia era dia de índio
(Jorge Benjor)

O noticiário nacional tem divulgado com grande alarde o fato de que o Sr. Presidente da República, finalmente, homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no Estado de Roraima. Foi feita uma demarcação contínua, como era a reivindicação dos indígenas e das principais ongs vinculadas à defesa dos direitos das populações autóctones.
O reconhecimento oficial das reivindicações indígenas foi feito mediante a edição de um decreto presidencial e uma portaria do Ministério da Justiça. Efetivamente, a portaria no 534, de 13 de abril de 2005, "reconhece a área contínua demarcada pela Fundação Nacional do Índio (Funai)", com 1.747.464 hectares, e dispõe sobre as várias "situações de fato" que determinaram resistências e morosidade na decisão sobre o caso. A área urbana da sede do município de Uiramutã ficou excluída da demarcação, assim como o leito das rodovias estaduais e federais que cortam a área e permitem o acesso a este município e à cidade de Normandia, também situada numa espécie de enclave dentro da área contínua", conforme informa o Instituto Socioambiental que, sem favor nenhum, é a ong mais atuante na defesa dos direitos indígenas.
A homologação, entretanto, não significou o fim dos graves problemas relativos às Terras indígenas no estado de Roraima. Ao contrário, reacendeu outras questões. O tema das terras indígenas em Roraima, no meu ponto de vista, tem sido mal focado. Parte-se do pressuposto de que há um exagero em favor dos índios e que as demarcações só servem para privilegiar uma parcela destes em detrimento do progresso social e do desenvolvimento do estado amazônico. É neste contexto que, infelizmente, o assunto vem sendo debatido. Ultimamente chegamos ao paroxismo de vermos movimentos indígenas "contra" a homologação da reserva, o que é, francamente, um despautério. Há uma pergunta, no entanto, que não é feita. Seria Roraima viável? Entendo que não. Não me refiro aos potenciais econômicos do estado, às riquezas minerais e às ecológicas. O problema é outro.
Roraima é um estado com ocupação recentíssima e que, claramente, resulta da última expropriação em larga escala de terras indígenas feita pelos "brasileiros". É uma ocupação ilegal e que foi "legitimada" pela chamada "Constituição cidadã". Com efeito, o tão criticado estatuto dos índios contém uma previsão legal que, se tivesse sido aplicada, teria solucionado grande parte dos problemas hoje enfrentados pela população de Roraima que é a criação do chamado Território Federal Indígena, visto que antes da "invasão branca", seguramente, mais de um terço da população local era indígena (1).
A população do estado é de 324.397 (2003) habitantes, com migração interna da ordem de 54,45% (1997). Roraima em 1980 tinha cerca de 78.159, tendo quase que quintuplicado em 20 anos (dados retirados do documento Roraima em Números editado pelo Governo de Roraima). Não é necessário muito esforço para se perceber que tal aumento populacional, obviamente teve um reflexo na cidade de Boa Vista e na pressão sobre as Terras indígenas. A mortalidade infantil é de 38,54% (1998). Um dado importante: 170.620 eleitores que elegem 3 senadores e 7 deputados federais. Tradicionalmente, a população de Roraima era constituída por diversas etnias indígenas e uma parcela de "brancos" que se situava basicamente na capital do então território federal.
"Visando estimular a colonização de Roraima, o Governo elaborou um projeto de aproveitamento do rio Contigo para a construção de uma hidrelétrica, que deveria fornecer 1 milhão de quilowatts ao território. O custo da obra estava calculado em 750 milhões de dólares. Ainda dentro desse plano, em 1981 o Governo resolveu fornecer gratuitamente aos migrantes (principalmente nordestinos) glebas de terra de até 300 hectares. Além das terras, o Governo do território pagava as despesas de viagem e ajudava os colonos, emprestando máquinas e fornecendo financiamentos através do Banco de Roraima S.A . Com tal plano, as autoridades pretendiam que 1,5 milhões de hectares, hoje improdutivos, passassem a produzir, elevando as rendas do território e assim, fazendo crescer cidades e trazendo progresso para a região." É indiscutível, portanto, que já nos estertores do Território de Roraima, havia uma indução de população não indígena para a região, estabelecendo-se uma nova fronteira às custas das populações autóctones.
Muita polêmica existe em torno das Terras Indígenas, principalmente no que concerne à sua extensão: "os maiores latifundiários do Brasil são os índios", afirmam os contrários à demarcação de Terras Indígenas. Afinal, onde estão localizadas as Terras Indígenas e qual é a parcela do território nacional que ocupam? Atualmente existem cerca de 627 Terras Indígenas que ocupam aproximadamente 12,33% do território nacional. A maioria das Terras indígenas está localizada na Amazônia Legal, ocupando por volta de 20,67% do território amazônico e mais ou menos 98,61% da extensão de todas as Terras Indígenas. As demais estão situadas nos outros pontos do território nacional. A homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é, sem dúvida alguma, a demarcação mais emblemática em todo o conjunto de situações envolvendo as populações indígenas brasileiras. O Instituto Socioambiental possui um estudo comparativo muito interessante no qual é apontado o número de terras demarcadas e o número de terras homologadas, desde o governo José Sarney.

Última atualização: 20/04/2005
*As colunas: número de terras e de extensão não podem ser somadas, porque várias terras indígenas declaradas e/ou homologadas no governo Sarney, ou mesmo em governos anteriores e também posteriores foram refeitas.
** Inclui aqui a TI Baú que já havia sido declarada no governo FHC com 1.850.000 hectares, e no governo Lula foi reduzida para 1.543.460 hectares.
** Inclui também a TI Raposa Serra do Sol, que já tinha sido declarada em 1998 no governo FHC.
Os indígenas, por força da Constituição Federal, têm assegurado uma gama de direitos que, em conjunto, são amplamente suficientes para garantir a reprodução física, étnica e cultural das sociedades indígenas no Brasil.(2) É muito importante ressaltar que a organização constitucional dos povos indígenas no Brasil não foi definida pelos próprios índios; ao contrário, é fruto da deliberação da Assembléia Nacional Constituinte que, como sabemos, não teve um único representante indígena entre seus membros. Aliás, não se deve esquecer que as Terras Indígenas são terras públicas federais, por força do artigo 20, XI da Constituição Federal (3), que foram cedidas aos indígenas sob o regime de usufruto. No usufruto, o usufrutuário tem o dever de zelar pelo bem objeto do usufruto (4). Assim, se abuso existe, cabe ao governo fazer com que as terras sejam mantidas em bom estado, sem extração ilegal de madeira, garimpos clandestinos, etc.
Foi também a própria Assembléia Nacional Constituinte que extinguiu os antigos territórios federais de Roraima e Amapá, estabelecendo os estados de Roraima e Amapá, conforme o artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (5). Grande parte dos problemas hoje existentes em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol é originada pela junção dos direitos indígenas com a construção do estado de Roraima. Roraima, na minha opinião, não deveria existir como estado. É um estado artificial que foi construído, muito mais por pressões das nascentes oligarquias locais do que a partir de um estágio de desenvolvimento que justificasse a sua existência. Também, não se pode esquecer que a super-representação política de tal estado é uma excelente moeda de troca para a aplicação da degeneração moral do princípio franciscano do "é dando que se recebe", d'après Robertão, falecido Avatar do "Centrão", que reinou soberano na Assembléia Nacional Constituinte. A economia regional tem um desempenho pífio e se sustenta basicamente com o salário de servidores públicos que são estipendiados pelo governo federal.
Na verdade, Roraima é um verdadeiro "faroeste caboclo" no qual abundam notícias de corrupção envolvendo altas autoridades públicas que, se verdadeiras, são muito mais nocivas para o país do que a homologação de Terras Indígenas. Odorico Paraguassú seria café pequeno.
Os principais políticos de Roraima devem a sua projeção aos índios, seja porque recebem votos da população indígena, seja porque exerceram cargos de relevância na Funai.
Por fim, não posso deixar de registrar que as próprias elites "bem pensantes" deste país e que, certamente, estão ligadas à proteção do meio ambiente, muitas vezes, raciocinam com base em uma "contradição" entre Terras Indígenas e parques nacionais e outras unidades de conservação. Afirmam, de forma muito tranqüila e, seguramente, refletindo o ideal urbano de uma "natureza intocada" que os indígenas destroem o meio ambiente e que as unidades de conservação devem ser excluídas das Terras Indígenas. De fato, isto não é possível por várias razões, a mais expressiva do ponto de vista jurídico é aquela que reconhece ser o direito indígena sobre as terras que tradicionalmente ocupam um "direito originário" com fonte diretamente Constitucional. E mais, o próprio Código Florestal determina que as terras que integram o patrimônio indígena são de preservação permanente (6).
Enfim, a demarcação de Terras Indígenas é um grande problema de direitos humanos e precisa ser encarado como tal. O governo brasileiro, no particular, está de parabéns.
(1) Lei no 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Art. 30. Território federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios.
(2) Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1o - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2o - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3o - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei; § 4o - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5o - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6o - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7o - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3o e § 4o. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
(3) Art. 20. São bens da União: XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
(4) Código Civil - Art. 1.390. O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades. Art. 1.391. O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis. Art. 1.392. Salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos. § 1o Se, entre os acessórios e os acrescidos, houver coisas consumíveis, terá o usufrutuário o dever de restituir, findo o usufruto, as que ainda houver e, das outras, o equivalente em gênero, qualidade e quantidade, ou, não sendo possível, o seu valor, estimado ao tempo da restituição. § 2o Se há no prédio em que recai o usufruto florestas ou os recursos minerais a que se refere o art. 1.230, devem o dono e o usufrutuário prefixar-lhe a extensão do gozo e a maneira de exploração. § 3o Se o usufruto recai sobre universalidade ou quota-parte de bens, o usufrutuário tem direito à parte do tesouro achado por outrem, e ao preço pago pelo vizinho do prédio usufruído, para obter meação em parede, cerca, muro, vala ou valado. Art. 1.393. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.
(5) Art. 14. Os Territórios Federais de Roraima e do Amapá são transformados em Estados Federados, mantidos seus atuais limites geográficos. § 1o - A instalação dos Estados dar-se-á com a posse dos governadores eleitos em 1990. § 2o - Aplicam-se à transformação e instalação dos Estados de Roraima e Amapá as normas e critérios seguidos na criação do Estado de Rondônia, respeitado o disposto na Constituição e neste Ato. § 3o - O Presidente da República, até quarenta e cinco dias após a promulgação da Constituição, encaminhará à apreciação do Senado Federal os nomes dos governadores dos Estados de Roraima e do Amapá que exercerão o Poder Executivo até a instalação dos novos Estados com a posse dos governadores eleitos. § 4o - Enquanto não concretizada a transformação em Estados, nos termos deste artigo, os Territórios Federais de Roraima e do Amapá serão beneficiados pela transferência de recursos prevista nos arts. 159, I, "a", da Constituição, e 34, § 2o, II, deste Ato.
(6) Art. 3o Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas: g) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas; § 2o As florestas que integram o Patrimônio Indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente (letra g) pelo só efeito desta Lei.

Paulo Bessa
[editor@oeco.com.br]
Advogado (Dannemann Siemsen Meio Ambiente Consultores), Mestre e Doutor em Direito.

O Eco, 01/05/2005

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