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Imagens engajadas

CB, Pensar, p.3-5
Autor: VENTURELLI, Luiza
02 de Out de 2004

Fotografia
Faces da floresta, de Valdir Cruz, serve como denuncia da descaracterização e agonia cultural de um povo
Imagens engajadas
Luiza Venturelli
Especial para o Correio
Esta não é a primeira vez que um profissional da fotografia usa seu talento e sua técnica para revelar ao mundo as injustiças contra a nação indígena Ianomâmi: Há mais de 20 anos, Claudia Andujar, fotógrafa suíça radicada no Brasil, já denunciava o que seria um dos grandes genocídios do século. Claudia dedicou vários anos de sua vida defendendo essa nação e foi uma das três pessoas que projetaram o Parque Ianomâmi, buscando resguardar os valores de uma cultura milenar, ameaçada pelos garimpeiros, pela malária, pela violência e pelo mercúrio da mineração que contaminava as águas. Em 1978, lançou seu livro intitulado Ianomâmi. Suas fotos em preto-e-branco constroem, a partir dos detalhes, um emocionante apelo a uma cultura ainda preservada mas com sérios perigos de desaparecimento. Num posfácio, Darcy Ribeiro reforça o drama e nos alerta para o crime contra esses homens, mulheres e crianças.
Outros fotógrafos brasileiros também revelaram esse grau de consciência dedicando anos em projetos numa extensa e sistemática documentação sobre os povos indígenas. Entre outros citaremos Milton Guran e João Roberto Ripper. Guran numa visão mais antropológica, e Ripper numa denúncia das injustiças contra os índios do Pará.
Valdir Cruz pertence a essa raça de fotógrafos. Com um currículo invejável, esse paranaense radicado há mais de 20 anos nos Estados Unidos nunca ficou alheio aos problemas e às belezas do Brasil. Desde 1994, seu interesse está voltado para o projeto Faces da Floresta, cujo objetivo é documentar a vida dos povos indígenas do norte da Amazônia, o que lhe valeu uma bolsa da Fundação Guggenheim.
0 interesse pelos ianomâmi começou ao assistir a uma palestra do líder indígena Davi Kopenawa em Nova York, onde relatava nas Organizações das Nações Unidas a gravidade do problema. Numa série de expedições na Amazônia do Brasil e Venezuela, Cruz começou a documentar os ianomâmi, visitando 28 aldeias. Pretende estender essa documentação a todos os índios do Brasil. Dessas expedições resultou o livro lançado em 2002 nos Estados Unidos, intitulado Faces of the Rainforest- The Ianomâmi, agora lançado no Brasil pela Cosac & Naify, com o mesmo título: Faces da floresta - Os ianomâmi.
Faces da floresta é prefaciado pela ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva. 0 texto de abertura é do xamã Davi Kopenawa Ianomâmi. O próprio Valdir fez a introdução - onde relata as origens do trabalho e as várias expedições na região. A obra conta ainda com ensaio do antropólogo Kenneth Good e posfácio da crítica Vicki Goldberg. As 89 fotos em preto- e -branco tratadas em selênio são pontuadas por recordações do autor que formam uma espécie de diário e situam as fotos no contexto onde foram realizadas.
A documentação sobre os ianomâmi é apenas uma parte do projeto que Cruz almeja realizar. Ele pretende documentar o maior número possível de tribos brasileiras, que parecem ser mais de 150. Essa grandiosidade coloca o trabalho de Cruz no mesmo patamar do fotógrafo americano Edward S. Curtis (1868-1952), como bem lembrou Vicki Goldberg.
Curtis documentou os índios do oeste americano no início do século 19 imbuído de uma certeza que estava fotografando uma espécie em extinção. Começou então a fotografar todos os tipos indígenas num espírito enciclopédico de conservação. Durante 30 anos, fotografou as reservas indígenas do oeste americano focalizando a vida cotidiana, as cerimônias e o trabalho manual.
Toda essa documentação foi reunida num volume intitulado The North American Indians (Seattle-1907-1930), contendo mais de 2200 imagens. No desejo de documentar os índios ainda num estágio original, Curtis recorreu às vezes a certos artifícios. Muitos dos índios já tinham cortado os longos cabelos e se vestiam como um europeu. Nestes casos, o fotógrafo se utilizou de perucas e costumes originais, construindo a imagem que buscava retratar.
Apesar da intensidade de suas fotos, é possível detectar um olhar "branco" e romântico sobre os índios. Seu trabalho talvez esteja muito mais próximo de uma visão pictórica idealizada do que de uma visão etnológica. Entretanto, o valor de sua obra é inestimável, pois ele conseguiu restituir o sentido do sagrado num povo já destituído.

O caso brasileiro
No Brasil, há muito tempo as imagens de índios brasileiros povoam nosso imaginário. Nem sempre essas imagens foram construídas por um olhar consciente da realidade que ora se apresentava. Grande foi o número de viajantes europeus que se dirigiram para cá nas primeiras décadas do século 19, compondo as expedições científicas estrangeiras, cujo objetivo era desvendar a exuberância da floresta Amazônica.
Essa documentação - ilustrações feitas pelos pintores e desenhistas nas primeiras décadas do século 19 e fotografias, a partir de 1840 - foi realizada dentro de fórmulas determinadas, regidas pelo distanciamento e fascínio, ou assumindo um apelo a um olhar ávido em consumir imagens exóticas, distantes de seu continente.
O "exótico", "selvagem", "pacificado", "integrado" ou "herói" formavam quase sempre as categorias imagéticas do índio dessa época. Normalmente, o índio era transferido para um estúdio improvisado, fotografado como um ornamento e destituído de todo traço cultural. No Brasil de hoje, a imagem do índio pode ser diferente mas não para melhor.
Faces da floresta é um apelo em defesa dos povos indígenas. Pode-se dizer que Valdir Cruz é um fotógrafo engajado pelo grau de envolvimento no seu trabalho. Numa entrevista concedida ao Correio Braziliense, disse: "Fui em busca de imagens, meu foco não era preservação da comunidade indígena. Mas percebi que havia uma situação de saúde terrível e que tinha de fazer um trabalho para expor essa situação". Esse envolvimento é expresso tanto nas suas palavras como nas suas imagens.
A postura lembra a mesma do fotógrafo humanista Eugène Smith, que em 1975 documentou Minamata, um vilarejo de pescador no Japão, onde a maioria dos habitantes sofreu envenenamento por mercúrio. Smith mostrou que o engajamento do fotógrafo está no seu grau de implicação, tanto físico como mental. Ele e sua mulher, de origem japonesa, moraram por mais de três anos em Minamata onde realizou uma das mais fortes e implacáveis reportagens dos últimos anos. Conseguiu levar para o tribunal os responsáveis pela intoxicação criminosa que destruiu o meio ambiente da ilha japonesa e matou ou alijou quase uma população inteira. Minamata foi para Smith o ponto extremo do seu engajamento e onde quase deixa sua vida. Para ele, fotografar era tomar consciência e não ficar indiferente face à realidade fotografada.

Parcialidade
A postura de Smith serve de exemplo para abordar uma questão crucial na fotografia, que é a subjetividade da imagem fotográfica. Felizmente os próprios antropólogos, e outros cientistas sociais começam a duvidar dessa reputação de neutralidade e transparência da imagem fotográfica. Não sendo eu uma antropóloga, não poderia estabelecer uma reflexão nesse campo, mas posso lembrar como é ilusória a transparência da imagem fotográfica, mesmo a mais documental; o quanto é precária a objetividade da câmara fotográfica. John Berger nos adverte: "Ao registrar o que foi visto, uma fotografia se refere sempre e por sua própria natureza àquilo que não foi visto. Ela isola, conserva e preserva um momento tomado numa continuidade, o que ela mostra evoca o que não foi mostrado". 0 olho do fotógrafo é sempre um olho politizado, socializado, pertencente a uma cultura e jamais inocente.
Entretanto, essas questões parecem não ser um problema para Valdir Cruz. Ele assume a subjetividade da fotografia e, nem por isso, suas imagens não possuem um valor documental. Ele se faz claro, quando "afirma tentar ser apenas um observador, e registrar as coisas como ele as vê". Cruz possui talento suficiente para se colocar diante da realidade ianomâmi e dar a forma desejada ao que ele viu diante de seus olhos.
Essa forma não é apenas uma construção plástica, mas também no sentido do historiador francês André Rouillé, segundo o qual é pela forma que o fotógrafo se posiciona socialmente face à realidade, realizando assim um conteúdo. Forma e conteúdo estão em harmonia, por exemplo, nas linhas formadas pelas três redes da foto "Pashohapemi em sua rede tradicional", conduzindo o olhar do leitor para o ponto desejado, que é o corpo mutilado de Pashohapemi.
A foto é uma denúncia mas não desprovida de intenções estéticas, que aliás estão presentes em todas as fotos de Valdir Cruz. 0 tratamento em selênio dá às fotos um contraste suave, colocando tudo na mesma escala de cinzas, onde nenhum excesso vem perturbar, reforçando o mito da simbiose entre índios e floresta.
A fotografia "arranjada", ou seja, aquela feita num estúdio onde tudo foi premeditado, existe como um todo. Mas a foto "tomada", ou seja, a foto instantânea, é um fragmento do real. Cruz optou pela forma do instantâneo e da observação. Isto significou a presença do fotógrafo no cotidiano dos ianomâmi. A presença física, reforçada ainda mais pela presença da câmara, pode se tornar uma intrusão. A função de relator de saúde que ele exerceu talvez tenha aliviado essa questão, facilitando sua familiaridade no grupo.

Invisibilidade
Cruz consegue participar das cenas cotidianas sem perturbar, sem ser percebido, respeitando o momento, dando assim uma espontaneidade à quase todas as fotos. Dessa forma, consegue captar um jovem absorto fazendo uma flecha, sem alterar a concentração do gesto. As mulheres que participam da dança vespertina parecem também ignorar a presença do fotógrafo, se abandonando à ternura do momento. Assim como a família que prepara a carne recém-caçada, ou ainda o grupo preparando-se para um ritual vespertino e muitas outras. Às vezes no grupo, apenas um olhar se dirige para a câmara, denotando a presença do fotógrafo, como se tivesse tido um curto momento de cumplicidade entre eles, como no olhar do jovem no centro da foto em "Encontro à tarde"
É incontestável o uso da luz, da composição e da arte nas fotografias de Valdir Cruz. Ele deixa que certos elementos pictóricos entrem e participem na construção formal da foto, mesmo naquela em que a denúncia é explícita pelo próprio assunto. As duas fotos de Elena Valero apresentam um certo fiou, talvez numa alusão à sua cegueira? Na primeira foto, o fiou é criado por condições técnicas ( pouca luminosidade, exigindo baixa velocidade e diafragma aberto); na segunda, é causado pelo véu do mosquiteiro que se interpõe entre a objetiva e a mulher.
São várias as fotos em que o fotógrafo trabalhou no limite da luz. Na foto "Mulher com gripe e asma", a luz é a mínima necessária para insinuar o corpo esquelético doente na rede. O tom escuro da foto vai acentuar ainda mais a gravidade da cena. As vezes, o fotógrafo não resiste e se deixa seduzir pela beleza da luz salpicada e filtrada por entre galhos e folhas, desenhando uma borboleta nos cabelos da mulher que cata caranguejo. Essa mesma luz pontua os corpos das mulheres e dos bebês à beira do rio e cria uma atmosfera de paz e harmonia na foto "Yarima amamentando em meio ao seu povo".
Acontece, às vezes, que a textura do drapeado da rede, ou do trançado do buriti, é substituída pela textura viscosa do plástico escuro que agora cobre ou então divide o. interior das casas. O texto explica que os garimpeiros causaram muitos estragos na cultura dos ianomâmi da região e são os responsáveis pela presença de elementos alheios à sua cultura. Uma foto mostra crianças com sandálias havaianas ou então com botas de plástico no centro de um chabuno, onde olhares perdidos denunciam a invasão sofrida. Aqui desaparecem a harmonia e o equilíbrio cedendo espaço para a degradação e a desesperança.
Faces da floresta são as mulheres, os homens e as crianças ianomâmi que conseguiram sobreviver na Amazônia, fotografadas no cotidiano de suas vidas. Apenas uma foto de cerimônia. Assim mesmo sabemos que é uma cerimônia porque o texto fala. 0 fotógrafo não mostra o todo, mas isola cinco homens pintados de preto, olhares distantes, talvez sob o efeito de algum alucinógeno, segurando sem grande entusiasmo grandes flechas. A foto é estática e triste.
Os retratos são vários: meninos brincando, menina na rede, menina doente, esposo, esposa, família sobrevivente da epidemia do sarampo, pequena Renata, mulher com cinzas e lágrimas no rosto, mulher na rede, mulher paramentada, três jovens mulheres, mulher com oncorcencose, etc. Em quase todos os retratos o plano é fechado não mostrando quase nada do ambiente, a não ser no retrato do grande e controverso líder César Dimanawa e suas mulheres, onde vemos a floresta ao fundo e no primeiro plano o líder com suas seis mulheres e filhos.
Dignidade
No outro retrato, César Dimanawa posa dignamente, segurando com uma das mãos o arco e a flecha, diante do enorme tronco de uma árvore. Ao fotografá-lo num ambiente ainda intacto da floresta, ou então tendo como fundo uma secular e grandiosa árvore, têm-se a impressão que Cruz quis resgatar e devolvê-lo à dignidade de um líder.
Teria a fotografia o poder suficiente para mudar o rumo da história? Talvez, mas de forma limitada. Eugène Smith se perguntava: "Por que fotografar?" Ele próprio dava a resposta. "Porque algumas vezes - apenas algumas vezes - uma foto vem dar aos nossos sentidos um nível de consciência mais aguçado. Isso depende muito do espectador; mas em certas pessoas, as fotos suscitam emoções suficientes para levar a uma reflexão. Alguém - talvez nesse caso sejamos numerosos - será influenciado ao ponto de querer encontrar um meio de substituir o mal pelo bem, de se consagrar, por exemplo, à procura necessária para curar uma doença. O resto, as fotos poderão permitir compreender melhor, amar melhor aqueles que nos são estrangeiros. A fotografia é uma pequena voz. E uma voz que conta na minha vida - mas não é a única. Eu creio. Se ela for bem concebida, dará às vezes resultados. Por isso, eu e Aileen fotografamos Minamata."
Acredito que esses mesmos motivos levaram Valdir Cruz a fotografar os ianomâmi. Ele sabe que sua fotografia não vai resolver de imediato, ou talvez nunca, os problemas que afligem a nação Ianomâmi e de todos os povos indígenas brasileiros. Mas enquanto houver profissionais como ele podemos ter ainda alguma esperança.
Luiza Venturelli é fotógrafa

CB, 02/10/2004, p. 3-5 (Pensar)

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