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Iluminando o roteiro para o pós-Kyoto

Valor Econômico
Autor: VEIGA, José Eli da
30 de Out de 2007

Iluminando o roteiro para o pós-Kyoto

José Eli da Veiga

Os resultados do Protocolo de Kyoto nem se aproximarão daqueles que foram sonhados por seus articuladores e tão repetidos por ingênuas torcidas. Apesar de terem sido irrisórias as metas atribuídas a cada país - emissões de carbono em 2010 apenas 8% inferiores às de 20 anos antes (ainda menos em vários casos) - somente um parzinho de nações de peso poderá apresentar balanço positivo: Alemanha e Reino Unido. É verdade que o vexame não será completo para dois outros dos grandes emissores - França e Holanda -, já que poderão exibir talhos próximos a 2%. Outros países que também se valerão dessa atenuante quase não contam: Bélgica, Suécia, Dinamarca e Finlândia. Reduções verdadeiramente significativas só ocorrerão em uma dezena de economias destroçadas do Leste Europeu, entre as quais só chegam a ter alguma importância relativa as da Polônia, da Romênia e da República Checa. Por isso, não há dúvida de que em 2008-2012 as emissões terão aumentado na maioria dos países com metas, ao lado dos recalcitrantes EUA e Austrália e de intrépidos emergentes como a China, Índia, África do Sul, Brasil e México. Um fracasso retumbante.
Diante desse panorama, o que pensar das perspectivas de outro regime para depois de 2012? A resposta mais comum é afirmar que tudo dependerá de quem vier a ocupar a Casa Branca no início de 2009. As inequívocas mudanças de percepção sobre os riscos do aquecimento global, particularmente entre os americanos, já teriam criado as condições políticas para se chegar a algum compromisso mais sério e global. E, nesse embalo, também seria provável que a semi-periferia se dispusesse a aceitar algum tipo de compromisso, mesmo que diferenciado.
Esse raciocínio considera, portanto, que foi bom o arranjo institucional construído em Kyoto, e que ele só fez água por não ter sido ratificado pela principal potência mundial. Ou seja, com uma possível mudança no tabuleiro político, a questão poderia ser resolvida com a fixação de novas metas de emissão. E não seria mero "mais do mesmo" porque algum outro tipo de responsabilidade viria a ser assumido pelos principais países emergentes. Como, por exemplo, um basta ao desmatamento de florestas tropicais.

Relatório do InterAcademy Council dá uma contribuição importante à tese de que a emissão de carbono tem que custar muito caro

Todavia, pode-se pensar exatamente o oposto. Que o arranjo de Kyoto foi é boboca, pois teria levado a resultados semelhantes mesmo sem dissidência americana. Não devido à ilusória esperteza dos emergentes que conseguiram ficar de fora para aumentar impunemente suas emissões. Afinal, isso só foi um valioso presente político aos republicanos de Bush. A bobagem foi muito mais séria, pois a arquitetura institucional do acordo foi equivocadamente copiada do Protocolo de Montreal sobre a camada de ozônio e de esquemas anteriores de combate à chuva ácida. Nesses dois casos, o desafio era criar estímulos para a adoção de inovações tecnológicas já disponíveis. Além disso, os poucos atores envolvidos, fossem governos ou empresas atingidas, só tinham a ganhar com o esquema de limites às emissões acoplados ao livre comércio de permissões ("capand-trade"). Uma proposta que não funciona quando ainda se depende é de descobertas científicas, e quando são 170 os países que precisam chegar a um acordo que incentive o surgimento das inovações.
Por isso, não poderia ter sido mais oportuno o relatório "Iluminando o caminho: em direção a um futuro de energia sustentável", lançado há oito dias pelo InterAcademy Council, que articula as mais importantes academias de ciência e de engenharia do mundo, com sede na Holanda. Toda a ênfase está na necessidade de acelerar as pesquisas científicas e tecnológicas focadas nas possibilidades de descarbonização das matrizes energéticas. Claro, enquanto esses futuros modos de subverter a ditadura das energias fósseis não se viabilizarem, será imprescindível avançar em soluções paliativas, entre as quais se destacam nove: a) aumento da eficiência energética; b) redução da intensidade de carbono das economias; c) captura e seqüestro de carbono proveniente de combustíveis fósseis, em especial do carvão; d) uso da energia nuclear condicionado ao equacionamento de sua tripla restrição (custo, segurança e risco bélico); e) maior uso de energias renováveis já disponíveis; f) maior uso de biocombustíveis; g) tecnologias de armazenagem de energia; h) melhores infra-estruturas de transmissão; i) desenvolvimento de novos vetores energéticos, como o hidrogênio.
Todavia, tanto a aceleração das pesquisas de fronteira, quanto esses imprescindíveis avanços em soluções paliativas, dependerão de "sinalização de preço para a emissão de carbono", repete incansavelmente o relatório. Nas dezenas de páginas em que tal condicionante é mencionada, lê-se que tal sinalização deve ser "certa",certa", "significativa", "realista", "clara", "robusta", "firme", "consistente" e "efetiva". Outras passagens garantem que já existiria razoável consenso de que o preço da emissão de uma tonelada de carbono deveria estar hoje entre US$ 100 e US$ 150, o que significaria um preço entre US$ 27 e US$ 41 para a tonelada de CO2.
Esses valores podem ser facilmente contestados, pois seus cálculos dependem de duas escolhas arbitrárias com evidentes pressupostos éticos: a de um teto para o aumento da temperatura (ou para a concentração de CO2 na atmosfera) e a de uma taxa de desconto do futuro. Também não há clareza no relatório sobre a necessidade de se acoplar um imposto ao esquema de metas quantitativas de emissões, o que engendraria uma política híbrida ("cap-and-tax"). Mas tais insuficiências são bem secundárias se comparadas à relevância da contribuição desse relatório para o fortalecimento da tese de que emissão de carbono tem que custar caro. E isso só aumenta as chances de que a racionalidade econômica também seja convidada a participar da próxima reunião da Convenção do Clima, marcada para o início de dezembro em Bali.

José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA/USP e autor de "A Emergência Socioambiental" (Ed. Senac, 2007), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br

Valor Econômico, 30/10/2007

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