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Identidade indígena

Florêncio Vaz-Belém-PA
Autor: Florêncio Vaz
29 de Abr de 2005

E mais uma vez passou o Dia do Índio. E também o 22 de abril, aniversário de cinco anos da vergonhosa repressão policial à Marcha Indígena dos 500 Anos, em Coroa Vermelha (BA). Olhando as condições de vida da população indígena hoje, nos perguntamos: é pra rir ou pra chorar? É pra festejar ou lamentar?

"Sua descendência permanecerá para sempre e a sua glória não se apagará jamais". (Eclesiástico 44,13)
E mais uma vez passou o Dia do Índio. E também o dia 22 de abril, aniversário de cinco anos daquela vergonhosa repressão policial à Marcha Indígena dos 500 Anos, em Coroa Vermelha (BA). Olhando mais criticamente as condições de vida da população indígena hoje, nos perguntamos: é pra rir ou pra chorar? É pra festejar ou lamentar?

Temos que lamentar, se pensarmos nas centenas de Terras Indígenas (TI) que ainda aguardam demarcação ou homologação, enquanto são invadidas por fazendeiros, garimpeiros ou madeireiros; na baixíssima expectativa de vida dos índios brasileiros, de 43 anos, em média; nas 30 crianças Guarani Kaiowa que morreram de desnutrição em Dourados (MS), e nas outras que morrerão nos próximos meses.

A tragédia Kaiowa não é de hoje. Há uma década dezenas de jovens se suicidavam por ano. Em 1980 Marçal Tupã-y, um combativo líder dos Guarani na região, foi escolhido para discursar diante do papa João Paulo II, na sua primeira visita ao país. Anos depois quando o Papa voltou ao Brasil, Tupã-y já não vivia mais, fora assassinado em 25 de novembro de 1983 pelos que não queriam a demarcação das terras dos Guarani.

Paremos nestes exemplos, pois temos motivos para muita festa também. Se em 1971 apenas 97 mil pessoas eram contadas como indígenas, e os militares esperavam nosso fim iminente pela política de assimilação à sociedade nacional (ou apressavam o processo através de envenenamentos ou massacres de populações inteiras, como ocorreu na Amazônia), o censo do IBGE de 2000 contou 734.127 pessoas que se auto-identificavam indígenas. Temos aí um fantástico crescimento do número de índios que vivem em aldeias e, mais interessante, vários grupos voltaram a se assumir como indígenas, deixando cair a máscara de "caboclos" (aqueles que não são mais índios e que nunca chegarão a ser brancos), que durante tantos anos falseou os números da população indígena no país.

Estes são os povos "resistentes". Os altos burocratas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), principalmente o seu presidente, não simpatizam com esses povos. Dizem que eles não pareceriam "índios" de verdade, e só estariam querendo ganhar terras. Deixam isso bem claro na lentidão com que conduzem os processos de identificação, delimitação e demarcação das suas TI. Um deles falou até que no Brasil "já tem índios demais", como se a Convenção 169 da OIT (ratificada pelo Brasil) não garantisse aos povos tribais o direito da auto-identificação e de dizerem, eles próprios, em que consiste a sua diferenciação étnica.

Não é a FUNAI que diz quem é e quem não é índio. Cabe à FUNAI demarcar suas terras e zelar pelo respeito aos seus direitos. Atitudes como essa mostram que o órgão realmente está na contramão da história. Apesar disso, o movimento dos "resistentes" se fortalece e se espalha por todo o país.

Nas cidades também milhares de pessoas perderam a vergonha e passaram a se assumir como indígenas, mostrando que estamos superando aquele estereótipo de que só é índio quem vive na floresta e anda nu, com o corpo pintado. Ser índio é também uma questão de decidir e assumir tal identidade étnica. Independente de onde vive ou da roupa que usa, o índio continua índio. Podemos observar isso nas associações, escolas e universidades. Como essa tendência continua - e precisa ser mais incentivada até -, certamente o censo de 2010 vai constatar esse crescimento: já serão 2 milhões de indígenas, pelo menos.

Paralelo ao crescimento numérico há uma melhora qualitativa na participação política dos índios. Crescem as organizações e articulações indígenas em todo o país. São caciques, professores, mulheres, pajés, estudantes e escritores indígenas se reunindo para buscar formas de melhorar a vida das suas comunidades, pressionando o Estado pelo respeito aos direitos garantidos na lei e desenvolvendo projetos de apoio e capacitação às suas comunidades.

Construíram grandes redes regionais no Norte e Nordeste, que levam a Brasília as maiores reivindicações dessa população. Exemplo disso são os acampamentos "Terra Livre", que acontecem em abril, desde o ano passado. E também pelo país já são dezenas de vereadores e alguns prefeitos eleitos nos últimos anos, fiscalizando e influindo no poder local. E os deputados indígenas não demorarão.

Muitos jovens conseguiram concluir o ensino médio nos últimos anos, e alguns já entraram e estão estudando nas universidades - coisa incomum nos anos 80. Dos que concluíram um curso superior, alguns já estão até na pós-graduação. E não estamos contando ainda com o impacto que terá o sistema de cotas para os índios, que começou a ser implantado na UFBa, e se espalha para outras universidades públicas. Os resultados positivos dessa política se farão notar muito em breve.

O presidente Lula bem que tentou, mas não conseguiu ignorar o crescente descontentamento das lideranças indígenas com a falta de uma política indigenista condizente com o que ele prometeu quando candidato. A homologação da TI Raposa Serra do Sol (RR) foi uma tentativa de acenar positivamente aos índios e seus apoiadores. Afinal, aí vêm as eleições de 2006.

A tendência é que a médio prazo o movimento indígena no país deverá superar suas debilidades e divergências internas, construir uma articulação nacional e se aproximar bem mais de outros movimentos sociais, como o Movimento dos Sem Teto e o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). Será mais presente no meio acadêmico e nas grandes cidades, e terá mais força política, a exemplo do que ocorre no México, na Bolívia ou no Equador, onde organizam-se como partidos políticos e lideraram grandes mobilizações de massa que sacodem todo o país, já tendo derrubado até vários Presidentes da República.

No mundo da literatura, das artes e na mídia já não é incomum ver rostos de indígenas. A maioria se identifica ainda como "descendentes" de índios. Mas até isso já é um avanço. É indígena o rosto, o talento e a graça adolescente da paraense Eunice Baia, dos filmes "Tainá" I e II. É indígena a beleza e o encanto da nordestina Suyane Moreira nas passarelas e capas de revistas da moda. Causou um bom impacto a presença e a divina voz da amazonense Márcia Siqueira, nas cidades por onde passou no Projeto Pixinguinha deste ano. Ela tem o vigor e a imponência de uma Mercedes Sosa. Sem esquecer do reconhecimento incontestável que merece a atriz de cinema, teatro e televisão Dira Paes.

Possivelmente os que virão depois já se dirão simplesmente "indígenas" e não "apenas descendentes" de índios, ou "índio-descendentes" (como equivocadamente defendem alguns na Bahia), o que no fundo ainda é uma forma de negar a sua indianidade. É como aqueles que falam "minha tataravó era índia, foi caçada a laço". Ou seja, meu passado longínquo é índio, mas eu não, sou apenas "descendente". Ora, filho de peixe é peixe também. E não se pode ser índio pela metade. Ou se é índio ou não é.

Mas tem gente que afirma que é índio com todas as letras. Isso é o que já vem fazendo muito bem no Brasil e na Europa, com vários livros publicados, o escritor e educador Daniel Munduruku. "Sou índio sim" é o discurso de Fidelis Baniwa, o Joe Karipuna da série Mad Maria, da TV Globo. O jovem estudante de História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que tem no currículo a participação em várias peças de teatro, cinema e comerciais na TV, foi selecionado entre dezenas de concorrentes, não somente por ser índio e bonito, mas pelo talento, que pôde ser comprovado na televisão.

O pioneirismo destes parentes, e de outros menos conhecidos, está elevando a auto-estima e o orgulho da até então envergonhada população indígena, que começa a sair do esconderijo. Afinal, é bonito ser índio ou índia. Nesse quesito, ainda estamos muitos anos atrás dos negros, mas a gente chega lá.

É muito reconfortante observar essa resistência e afirmação da identidade indígena. O Brasil não-indígena e pluricultural também ganha muito com isso. A sabedoria e espiritualidade desses povos é uma riqueza enorme, disponível não para a biopirataria e lucro de uns poucos, mas para favorecer o bem-estar de todos, índios e não-índios.

Mas é preciso se aproximar sem os arraigados preconceitos e discriminações. Os índios não são selvagens, preguiçosos, incapazes, inferiores ou superiores - são simplesmente diferentes. Não precisam da pena de ninguém, precisam sim de terra, solidariedade e respeito a seus direitos, à sua dignidade. É o que falta no Mato Grosso, no Nordeste e ainda em muitos rincões do Brasil.

É da sabedoria indígena a idéia de que, para além dos sofrimentos, nós jamais seremos derrotados, pois somos de uma ascendência milenar e divina, somos filhos do Sol e da Mãe Terra. Por isso dissemos em 2000: "Reduzidos sim, vencidos nunca!" Acreditamos também que temos a missão de evitar a destruição do mundo, as doenças e a morte das pessoas. Por isso cantamos e dançamos em nossos rituais. A dança é sagrada, traz saúde, rejuvenescimento, harmonia e união. Quando dançamos, Deus, os antepassados e os espíritos dançam com a gente. Os povos que pararam de dançar morreram.

Finalizo com o que disse o profeta Tupak Katari há mais de 200 anos no altiplano dos Andes, no auge da escravidão dos indígenas, após liderar uma rebelião sufocada de forma sangrenta pelos espanhóis: "Nós voltaremos e seremos milhões!" Senhoras e senhores, a viagem de volta já começou.

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