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Hora de falar sério

O Globo, Economia, p. 27
Autor: VIEIRA, Agostinho
02 de Out de 2014

Hora de falar sério

Agostinho Vieira

A julgar pelo resultado das últimas pesquisas, tudo indica que teremos um segundo turno. Resta saber se ele será entre Dilma e Marina ou entre Dilma e Aécio. Portanto, não dá para garantir ainda qual dos três será o próximo presidente do Brasil. Mas uma coisa é certa, seja quem for o vencedor, na segunda-feira, dia 27 de outubro, o país continuará inteiro, de pé, pronto para enfrentar os seus verdadeiros desafios.
Para alguns isso pode parecer uma obviedade, mas não é. Quem acompanhou a campanha de perto, os debates, os discursos e certas análises pode achar que, dependendo de quem for o escolhido, não restará pedra sobre pedra. Se você faz parte do grupo que acreditou que Marina Silva ia acabar com o programa Bolsa Família, que Aécio Neves privatizaria a Petrobras e que Dilma Rousseff transformaria a nação numa república bolivariana, pode relaxar. Nada disso vai acontecer. Não é assim que a banda toca. Não no mundo real.
Estamos indo para a nossa sétima eleição presidencial desde a redemocratização do país. São 25 anos de liberdade de escolha. Talvez esse tempo tenha feito alguns esquecerem a beleza do voto e a importância de respeitá-lo. É provável que até domingo ou até o final do segundo turno ainda se ouça alguém dizendo que o povo não sabe votar: "São uns ignorantes, manipulados". Não dá para levar isso a sério.
Uma das poucas unanimidades desta campanha é que ela se transformou numa das mais violentas da história. Com "tiros" e "pedras" partindo de todos os lados. O curioso é que sempre que alguém faz essa constatação, diz que só o seu candidato foi vítima de ataques sórdidos. Faz lembrar os jogadores que se contorcem em campo como se tivessem sido atropelados por uma jamanta. Em seguida, ao ver o cartão recebido pelo adversário, saem andando normalmente como se nada tivesse acontecido.
Na verdade, a única coisa que preocupada nesta eleição é exatamente o saldo desse campo de batalha. Entre mortos e feridos, quantos vão se salvar? Em tese, estamos queimando quase todas as caravelas. Por incrível que pareça, o que pode nos redimir é exatamente o cinismo da nossa classe política. Se fossem pessoas sérias, honradas, com sangue nas veias, não frequentariam mais os mesmos ambientes. Mas não é assim que funciona. Basta ver o clima cordial das antessalas dos debates.
E é com esse "espírito público" que devemos contar nos próximos quatro anos. É ele que nos fará seguir adiante. Com o fim da campanha podemos enfrentar, por exemplo, a enorme crise hídrica que se abate sobre o país. Por falar nisso, seria bom que o governador Geraldo Alckmin fosse mesmo eleito no primeiro turno em São Paulo. Só assim ele poderia começar já na segunda-feira o racionamento de água que deveria ter feito desde o final do ano passado.
O medo de perder votos fez com que ele brincasse de roleta russa com o abastecimento do maior estado do país. Será obrigado agora a usar a segunda e última parte do volume morto do Sistema Cantareira. São 106 bilhões de litros que vão durar pouco mais de dois meses. Os últimos verões foram secos e nada garante que o próximo não será também. Se São Pedro não mandar chuvas logo, e fortes, os paulistas vão conhecer de perto o drama que sempre marcou a vida dos sertanejos do Nordeste.
Aliás, as propostas ambientais dos três favoritos à presidência passam longe da seriedade desse tema. Dilma fala vagamente em priorizar a segurança hídrica, Aécio cita a redução do desperdício e Marina não toca no assunto. Estamos a três dias da eleição e quase não se tratou de saneamento. Não é só a terra da garoa que está ameaçada. A nascente do São Francisco secou pela primeira vez na história.
A maior parte dos nossos rios continua recebendo esgoto in natura do mesmo jeito que recebia quando os portugueses aportaram por aqui. A agropecuária cresce, ganha mais relevância internacional. Com ela cresce também o consumo de água e o desperdício. Precisamos de mais rigor na proteção das nascentes e das matas ciliares. Dificilmente escaparemos de uma cobrança pelo uso e de multas para aqueles que se acham no direito de esbanjar.
A economista Maria da Conceição Tavares diz que o povo não come PIB. Ele também não se alimenta de discussões sobre a independência do Banco Central e nem bebe votações antigas da CPMF. Já passou da hora de acabar com o disse me disse, as armadilhas e os dribles eleitorais. Não temos mais tempo a perder.

O Globo, 02/10/2014, Economia, p. 27

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